Não é sobre soberania, é sobre o futuro da democracia no Brasil
A crescente atuação do STF além dos limites constitucionais levanta alertas sobre o equilíbrio entre os Poderes e os riscos à democracia no Brasil contemporâneo.
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Atualizado em 31 de julho de 2025 14:57
A democracia brasileira vive um momento delicado, que exige não apenas prudência das instituições, mas também coragem para fazer as perguntas que muitos evitam: estamos de fato, respeitando os limites constitucionais? Ou estamos presenciando a transformação silenciosa do STF em um novo poder moderador, agora sem coroa, mas com toga? Devemos discutir soberania nacional ou democracia?
A Constituição de 1988 foi concebida sob o signo do equilíbrio entre os Poderes. Inspirada no modelo clássico de Montesquieu, estabeleceu freios e contrapesos para evitar a centralização do poder e garantir que cada Poder da República atuasse nos limites de sua competência. Surgiu assim a democracia moderna que vivemos nos dias atuais. Porém, o que se vê na prática é um processo gradual e inquietante de ampliação da atuação do STF em áreas que deveriam ser de responsabilidade dos Poderes Legislativo e Executivo.
A judicialização da política, é bem verdade, não é novidade. O fenômeno é estudado em diversas democracias constitucionais. No entanto, o que diferencia a realidade brasileira contemporânea é a intensidade, o alcance e a natureza das intervenções promovidas pelo Supremo. E mais, ausência de autocontenção por parte de seus ministros e o uso reiterado de medidas monocráticas em temas de alta complexidade política e social.
O inquérito das chamadas "fake news" (Inq. 4.781) é um dos exemplos. Iniciado de ofício, sem provocação do Ministério Público, rompe com o princípio acusatório e coloca nas mãos de um único ministro os papéis de vítima, investigador, acusador e julgador. Trata-se de um inquérito que se arrasta há mais de seis anos, com medidas restritivas de direitos aplicadas sem sentença, com base em fundamentos amplos e difusos que beiram a subjetividade, como "ataques à democracia".
Outro episódio recente foi a decisão do STF que invalidou a tese do marco temporal para demarcações de terras indígenas. A reação do Congresso foi rápida que aprovou uma lei restabelecendo o critério. O Supremo, no entanto, suspendeu liminarmente a nova norma, reiterando sua posição anterior e ignorando o pronunciamento do Poder Legislativo. Fica evidente, nesse movimento, uma tentativa não apenas de interpretar a Constituição, mas de legislar ou, pior, de suprimir a vontade popular expressa por seus representantes eleitos.
Em outro caso que mostra claramente esse poder moderador que não tem previsão constitucional foi quando, um único ministro autorizou a manutenção de um decreto presidencial que elevava alíquotas do IOF, contrariando decisão anterior do Congresso. A medida, tomada de forma liminar, produziu efeitos orçamentários imediatos e impôs ao país uma política fiscal sem debate parlamentar. O episódio evidenciou, mais uma vez, a assimetria de poder entre um julgador solitário e o Parlamento inteiro. A crítica dos legisladores foi imediata, e com razão, como aceitar que decisões unilaterais interfiram diretamente em políticas públicas sensíveis sem qualquer respaldo do voto popular?
Esses exemplos se somam a um dos episódios mais sensíveis e inquietantes do período atual, o julgamento dos acusados por tentativa de golpe de Estado, em 8 de janeiro de 2023. Sob a justificativa de defender a ordem democrática, o STF assumiu a condução de um processo que, segundo inúmeros juristas e observadores imparciais, tem violado garantias fundamentais. O mais alarmante é que a Corte está julgando, no mesmo processo, o ex-presidente da República que não detém mais foro por prerrogativa de função e cidadãos comuns, sem qualquer função pública, com penas desproporcionais e sem a participação efetiva do Ministério Público como protagonista processual.
O próprio ex-ministro do STF, Marco Aurélio Mello, declarou publicamente: "a história cobrará", referindo-se aos abusos cometidos no processo e à extrapolação dos limites constitucionais pelo tribunal. Sua fala reflete a preocupação não apenas com os réus, mas com o futuro institucional do país. Quando um tribunal constitucional se converte em instância de julgamento ordinário, processando sem observar as balizas do foro adequado, instala-se o precedente perigoso da exceção judicializada.
Essa atuação expansiva do STF se aproxima perigosamente do que, na época do Império, foi chamado de Poder Moderador. A Constituição de 1824 previa expressamente esse quarto poder, concentrado na figura do Imperador, com a função de manter o equilíbrio entre os demais. O Imperador dissolvia Câmaras, nomeava ministros, interferia na organização dos Poderes conforme julgasse ser "para o bem do Estado". O paralelismo é inevitável pois hoje, o STF se coloca como árbitro supremo e incontestável das tensões institucionais, muitas vezes extrapolando os limites que a Constituição de 1988 lhe impôs.
É importante destacar que o Supremo não é um poder neutro quando abandona sua função de guarda da Constituição para exercer protagonismo político. A Constituição não o autoriza a governar, legislar ou punir como instância de exceção. Não lhe confere o papel de regulador da moral pública, tampouco de tutor da democracia. Defender a Constituição não é usá-la como instrumento de combate ideológico, mas como limite jurídico para todas as formas de poder, inclusive o judicial.
O que se vê, porém, é o crescimento de um sentimento preocupante, de que as decisões do STF não estão mais sujeitas ao controle social, ao crivo político ou ao debate técnico. A Corte fala por meio de decisões que se impõem com força normativa, muitas vezes ignorando a necessidade de diálogo com os demais Poderes. E o resultado disso é um país institucionalmente tensionado, socialmente dividido e democraticamente fragilizado.
Não por acaso, o Congresso Nacional tenta reagir por meio de propostas de emenda à Constituição. A PEC 8/21, por exemplo, busca limitar as decisões monocráticas do Supremo e estabelecer prazos para sua apreciação colegiada. Já a PEC 28/24 pretende autorizar o Parlamento a suspender, por maioria qualificada, atos que exorbitem a competência da Corte. Tais iniciativas não são, como alguns sugerem, ataques ao Judiciário, mas tentativas de reequilibrar um jogo que há muito deixou de ser equitativo.
A crise institucional brasileira já não é percebida apenas dentro do país. Recentemente, o governo dos Estados Unidos anunciou restrições de visto a autoridades brasileiras envolvidas em atos de censura, sob o argumento de defesa da liberdade de expressão. Também foram impostas tarifas sobre exportações brasileiras, em um recado claro de mundo está atento à forma como lidamos com as liberdades fundamentais. Isso, por si só, deveria ser suficiente para acender um alerta vermelho entre nós. Um país soberano não pode permitir que um Poder extrapole tanto suas funções a ponto de provocar represálias externas.
O risco de ruptura institucional não é mera retórica alarmista. Quando um único Poder começa a concentrar prerrogativas e a invadir competências dos demais, rompe-se a harmonia do sistema. O Estado Democrático de Direito não admite essa concentração, ainda que travestida de defesa da legalidade. A democracia brasileira, se quiser sobreviver, precisa resgatar urgentemente o valor do equilíbrio, da moderação e do respeito à separação dos Poderes.
A nós, operadores do direito, cabe não o silêncio cúmplice, mas a crítica construtiva. Defender o STF é também apontar seus excessos. Defender a democracia é exigir que todos, inclusive os ministros da Suprema Corte, se submetam à Constituição. Fora dela, como dizia Rui Barbosa, não há legalidade. E sem legalidade, não há justiça. Nem democracia.
Thiago Massicano
Especialista em direito empresarial. Sócio-fundador do escritório Massicano Advogados & Associados.



