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A ilegalidade embalada: Inconstitucionalidade da lei das sacolas no RJ

Lei das sacolas no RJ transfere custo ao consumidor sem eficácia ambiental, violando CDC e princípios constitucionais, configurando inconstitucionalidade material parcial e desvio de finalidade.

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Atualizado às 11:07

Aprovada sob o manto do discurso ambiental e travestida de progresso ecológico, a lei estadual 8.473/19 do Rio de Janeiro impôs aos consumidores o ônus econômico do fornecimento de sacolas plásticas biodegradáveis, com o argumento de desestimular o uso dessas embalagens. Contudo, passados mais de quatro anos de sua vigência, é inegável a desconexão entre a finalidade pública anunciada e os efeitos práticos da norma.

A promessa era clara: fomentar a substituição das sacolas plásticas convencionais por modelos menos agressivos ao meio ambiente e estimular a cultura do reuso. O que se viu, na prática, foi a manutenção do mesmo padrão de consumo de sacolas, com a única alteração de que agora o consumidor paga por elas - e o supermercado lucra com o que antes era custo.

1. A perda de objeto da norma ambiental

A finalidade ambiental da norma se esvaziou completamente. O art. 1º da lei 8.473/19 dispõe que a substituição das sacolas plásticas visaria sua reintegração ao ciclo de reciclagem e a proteção ambiental. No entanto, os dados empíricos - facilmente observáveis nas rotinas dos grandes centros - demonstram a ineficácia da norma em desestimular o consumo.

A lei determinou a cobrança "pelo preço de custo" das sacolas biodegradáveis (art. 2º, §2º), mas na prática tal controle inexiste. O consumidor, por sua vez, não teve alternativas viáveis, tampouco incentivo real à adoção de sacolas reutilizáveis. Resultado: pagamento compulsório, continuidade do hábito de consumo e lucro ao comerciante.

Esse descolamento entre objeto jurídico e resultado prático deslegitima a eficácia da norma e configura perda superveniente de objeto, uma vez que a cobrança deixou de servir ao fim público e passou a produzir apenas enriquecimento sem causa de entes privados, violando inclusive a função social da norma ambiental.

2. A crítica não é à pauta ambiental: é à fraude social

É preciso deixar claro: não se trata de negar a importância da agenda ambiental - ao contrário, trata-se de protegê-la da retórica vazia. O que se critica é a transformação de uma proposta legítima em um mecanismo inócuo e distorcido.

A norma não foi acompanhada de qualquer programa educacionalincentivo fiscalcompensação ecológica ou orientação à população. O Estado se limitou a transferir a conta para o consumidor e lavar as mãos.

Mais grave ainda é o absoluto silêncio legislativo quanto à indústria alimentícia, que segue utilizando plásticos em larga escala, sem exigência de composição biodegradável, sem fiscalização ativa e sem metas de redução. A consequência é clara: o pequeno consumidor virou o vilão ambiental, enquanto o grande gerador de resíduos continua imune.

A desproporcionalidade é evidente: aplica-se restrição severa ao uso de plástico no varejo final, mas permite-se o uso indiscriminado nas embalagens primárias de alimentos industrializados. Ou seja, não há coerência ambiental, mas sim seletividade legal e omissão estratégica.

3. A inconstitucionalidade material parcial: violação ao CDC e à Constituição

O vício da norma não está no seu propósito ambiental - que é louvável e, no aspecto da composição biodegradável das sacolas (art. 2º, §1º), plenamente válido e constitucional. O ponto de ruptura é outro: a cobrança pelas sacolas em contexto de continuidade do consumo e ausência de contrapartida ambiental.

Ao impor ao consumidor o ônus pelo fornecimento das embalagens utilizadas no transporte de mercadorias, sem qualquer possibilidade de escolha ou modulação efetiva de conduta, a lei incorre em:

  • Violação ao art. 6º, IV, do CDC, ao impor ao consumidor o ônus de um insumo que anteriormente integrava o custo do fornecedor, mascarando transferência de responsabilidade sob falsa roupagem ambiental;
  • Inversão da lógica da boa-fé objetiva, na medida em que o fornecedor converte um dever legal e socioambiental em oportunidade de lucro, subvertendo a função protetiva da norma e violando o equilíbrio nas relações de consumo;
  • Ofensa ao princípio da vedação ao retrocesso social, ao permitir que, sob o pretexto de sustentabilidade, se implemente prática ineficaz do ponto de vista ecológico e onerosa ao consumidor, degradando a política pública de proteção ambiental pela via da omissão legislativa e da distorção funcional do mercado.
  • Desvio de finalidade, Verifica-se desvio de finalidade administrativa quando um instrumento de política ambiental - a restrição ao uso de sacolas plásticas - é desvirtuado para funcionar como meio de arrecadação privada. A prática transfere ao consumidor um custo originalmente do fornecedor, sem eficácia ambiental comprovada. Configura violação ao art. 37, § 6º, da CF/88, que impõe responsabilidade objetiva ao Estado e a concessionárias de serviço público, e afronta os princípios da legalidade, moralidade, eficiência e boa-fé nas relações de consumo.
  • Inconstitucionalidade material por perda de objeto, uma vez que a cobrança persiste mesmo após a completa frustração do resultado que a justificaria. A medida, concebida sob a lógica ambiental, perde sua razão de ser quando não há impacto ambiental relevante, tornando-se exação sem causa legítima - o que afronta os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e finalidade administrativa.

4. A tese: inconstitucionalidade material parcial da lei 8.473/19-RJ

A tese, portanto, não é de revogação total da norma. A parte que obriga a composição das sacolas com 51% de material proveniente de fontes renováveis (art. 2º, §1º) se alinha aos parâmetros constitucionais do desenvolvimento sustentável e da proteção ambiental (art. 225 da CF/88).

O vício reside na manutenção da cobrança compulsória sem resultado ambiental comprovado. Essa cobrança, que deveria ter caráter pedagógico e transitório, virou permanente, incontrolada e sem qualquer vínculo com o comportamento ecológico dos consumidores.

Impõe-se, portanto, reconhecer a inconstitucionalidade material parcial da norma, limitada à cobrança pelas sacolas nos moldes em que se realiza, por:

  • perda superveniente de objeto,
  • violação à função ambiental da norma,
  • e afronta aos direitos do consumidor.

5. Considerações finais: direito ambiental exige eficácia real

A legitimidade das normas ambientais depende de sua capacidade de produzir efeitos concretos e justos. Quando se perde o nexo entre meio e fim, a lei se torna um instrumento inócuo ou, pior, um meio de transferência de riqueza injustificada, como se vê neste caso.

A crítica aqui não é à pauta ambiental - é, justamente, uma defesa séria da verdadeira legislação ambiental. O que se espera do legislador é técnica, coerência e compromisso com o interesse público. A lei 8.473/19, nesse ponto específico, falhou em todos os aspectos.

Wilson Martins Filho

Wilson Martins Filho

Advogado pós-graduado em Direito Civil, com especialização em Direito do Consumidor. Atuante na defesa dos direitos do consumidor e na resolução de demandas cíveis complexas.

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