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A falácia da proibição de discussão de mérito nas medidas protetivas

A ideia de que medidas protetivas não comportam discussão de mérito é um artifício autoritário que impede o exercício do contraditório e esvazia o direito de defesa.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Atualizado às 13:21

1. Introdução

A lei Maria da Penha foi criada com o propósito louvável de proteger mulheres em situação de violência doméstica. No entanto, ao longo dos anos, sua aplicação passou a incorporar distorções interpretativas que culminaram em injustiças e arbitrariedades. Uma das mais graves é a construção retórica segundo a qual "medidas protetivas não comportam discussão de mérito". Essa frase, repetida como um mantra, serve como instrumento de silenciamento do homem intimado, impedindo-o de se defender de forma efetiva e digna, ainda que tenha provas concretas que desmintam a narrativa da suposta vítima. Este ensaio busca denunciar essa falácia jurídica e propor uma revisão honesta e crítica desse modelo autoritário.

2. A narrativa construída: O dogma da cognição sumária

O fundamento técnico-jurídico criado para justificar a ausência de debate sobre o mérito nas medidas protetivas é o conceito de "cognição sumária". Argumenta-se que o juiz, ao decidir sobre as medidas, deve agir com celeridade, com base em indícios mínimos, postergando a análise mais aprofundada para momento posterior. Todavia, na prática, esse "momento posterior" nunca chega. O contraditório é adiado indefinidamente - ou pior, é negado. A cognição sumária, portanto, tornou-se escudo para o autoritarismo, disfarçando a falta de disposição institucional em permitir o exercício da ampla defesa.

2.1. A expressão como mordaça institucional

A frase "não cabe discussão de mérito nas medidas protetivas" tornou-se um chavão legal e funcional. Repetida de forma automática pela lei e pelo sistema de justiça de forma generalizada (juízes, promotores e até defensores públicos), ela impede que o homem intimado de medidas protetivas tenha qualquer chance de repelir, com provas, as acusações contra si. Trata-se de uma fórmula mágica que serve para encerrar o debate antes mesmo que ele comece. Essa expressão, aparentemente técnica, é na verdade um instrumento de dominação simbólica, uma mordaça judicial que cala quem tenta falar.

2.2. O paradoxo: Provas ignoradas sob pretexto de celeridade

A consequência mais perversa dessa lógica é o desinteresse judicial pelas provas apresentadas pela defesa. Ainda que o homem junte e-mails, prints, áudios, laudos ou qualquer outra evidência que demonstre cabalmente que as alegações da suposta vítima são falsas ou distorcidas, muitos juízes, sob o manto da cognição sumária, afirmam não poder examinar o mérito, e mantêm as protetivas com base nesse artificialismo retórico. Ora, se há prova prima facie que desmente a narrativa da suposta vítima, ignorá-la não é apenas erro técnico - é a negação da própria jurisdição.

2.3. A retórica perversa que mascara o autoritarismo

Não discutir mérito virou justificativa para negar o direito de defesa. Trata-se de uma retórica obscena, montada com a pretensão de parecer neutra e protetiva, mas que esconde uma estrutura de poder que favorece a unilateralidade e o arbítrio. É uma prática que parte do pressuposto de que a sociedade é composta por indivíduos incapazes de senso crítico, que devem aceitar como dogma qualquer expressão rotulada como "jurisprudência pacífica". É, na essência, um modelo de subserviência jurídica disfarçado de proteção legal.

2.4. A farsa do contraditório "postergado"

A defesa costuma ser recebida apenas para cumprir formalidade. Não raras vezes, os juízes nem sequer leem as impugnações apresentadas. E quando as fazem, manifestam-se com frases prontas como: "nesta fase não se analisa o mérito". O contraditório, que deveria ser concreto e efetivo, transforma-se em ilusão de legalidade. Essa simulação de escuta serve apenas para validar uma aparência de justiça, quando o que há é o silenciamento da pessoa do intimado.

2.5. A negação da defesa como vício estrutural

Ao negar sistematicamente a apreciação das provas defensivas sob o argumento de que não é possível ingressar no mérito, o sistema de justiça incorre em vício estrutural que compromete a própria legitimidade das medidas protetivas. Essa prática viola os princípios constitucionais da ampla defesa, do devido processo legal e da dignidade da pessoa humana - que valem para todos, inclusive para o homem sob medidas protetivas. Ignorar essa perspectiva é admitir que há seres humanos com menos direitos em nome de uma suposta proteção prioritária.

2.6. Quando o juiz analisa a prova, ele entra no mérito - e tudo bem!

É preciso desmistificar: ao analisar se há risco atual, o juiz inevitavelmente ingressa no mérito. Avaliar se determinada mensagem é ou não ameaçadora, se houve ou não contato após o término, se a aproximação foi provocada pela própria vítima, são julgamentos que envolvem análise de mérito, ainda que mínima. Não há como decidir sobre medida protetiva sem essa incursão. Logo, dizer que não se analisa mérito é uma incoerência lógica, um artifício linguístico para evitar reconhecer que há desequilíbrio no sistema.

2.7. A imposição do silêncio e o papel da advocacia crítica

A manutenção dessa prática só é possível porque há conivência silenciosa de parte do sistema jurídico. Muitos operadores do Direito já perceberam a inconsistência dessa retórica, mas poucos têm coragem de confrontá-la publicamente. É papel da advocacia crítica denunciar esse estado de coisas e exigir o respeito das garantias fundamentais. O silêncio, neste caso, equivale à omissão diante de um sistema que naturaliza o arbítrio em nome da proteção.

3. Conclusão

A máxima de que "não cabe discussão de mérito nas medidas protetivas" é, em verdade, uma construção artificial voltada a impedir que o homem intimado exerça seu direito de defesa. Sustentada sob a falsa premissa de que a cognição sumária autoriza qualquer tipo de medida sem análise crítica, essa prática compromete os pilares do Estado de Direito. Defender o contraditório e a ampla defesa não é se opor à proteção da mulher - é garantir que o processo penal não seja convertido em instrumento de vingança, manipulação ou injustiça. Que se rompa, pois, essa retórica cínica e autoritária. Que a verdade possa, ao menos, ter chance de ser ouvida.

Júlio Cesar Konkowski da Silva

VIP Júlio Cesar Konkowski da Silva

Advogado especializado na defesa na LEI MARIA DA PENHA e em MEDIDAS PROTETIVAS, com atuação em todo o Brasil.

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