A constitucionalização do Direito Privado
O artigo analisa os impactos da constitucionalização do direito privado, defendendo equilíbrio entre valores constitucionais, autonomia contratual e segurança jurídica.
quarta-feira, 6 de agosto de 2025
Atualizado às 14:13
Introdução
A Constituição da República, ao absorver uma série de valores não patrimoniais, intervém diretamente nas esferas do negócio jurídico, da família, das relações de trabalho, da empresa e das relações de consumo. Esse fenômeno tem colocado em xeque o dogmatismo próprio da Escola da Exegese, notoriamente zelosa de sua neutralidade e pureza científica, que deliberadamente limitava os horizontes do direito civil às relações patrimoniais.
A excessiva constitucionalização de questões tradicionalmente pertencentes ao direito privado suscita um debate essencial sobre os limites da intervenção estatal e a preservação da autonomia dos indivíduos. A crescente integração de valores constitucionais nas relações privadas, embora bem-intencionada, levanta questões sobre a eficácia, a segurança jurídica e a autonomia contratual dos envolvidos. Esse fenômeno não apenas transforma a natureza dos contratos e da autonomia privada, mas também intensifica a judicialização das relações cotidianas, comprometendo a estabilidade das relações jurídicas.
O estudo da constitucionalização do direito privado é de extrema importância no contexto atual, marcado por transformações sociais e culturais que impactam diretamente as relações jurídicas. Com o aumento da diversidade de arranjos familiares e a evolução das tecnologias, surgem novos desafios que exigem uma reavaliação das normas existentes e da aplicabilidade dos princípios constitucionais no âmbito privado. Compreender os efeitos dessa constitucionalização é essencial para garantir que os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana, igualdade e justiça social sejam harmonizados com a preservação da autonomia privada e da segurança jurídica.
Este artigo tem como objetivo analisar os impactos da constitucionalização do direito privado no ordenamento jurídico brasileiro, destacando as principais conquistas e os desafios decorrentes dessa intervenção. Busca-se entender como a absorção dos valores constitucionais nas relações privadas afeta a liberdade contratual, a segurança jurídica e a distinção entre o direito público e o direito privado. Além disso, o estudo pretende oferecer uma reflexão crítica sobre a necessidade de um equilíbrio cuidadoso entre a proteção dos direitos fundamentais e a preservação da autonomia dos indivíduos nas relações privadas.
Para alcançar os objetivos propostos, a pesquisa adotará uma abordagem qualitativa, fundamentada em uma revisão bibliográfica detalhada. Serão analisadas fontes de informação acadêmicas, periódicos especializados, livros, dissertações e teses relacionadas ao tema da constitucionalização do direito privado. A metodologia seguirá as diretrizes propostas por Marconi e Lakatos (2022), permitindo uma análise crítica das fontes e a identificação de lacunas no conhecimento atual, além de fornecer uma base sólida para a discussão e interpretação dos resultados obtidos.
O presente artigo analisa as transformações históricas e legais que moldaram o reconhecimento dos relacionamentos não patrimoniais e a intervenção constitucional nas relações privadas. Ainda, será realizada uma análise detalhada da legislação pertinente, destacando os pontos de controvérsia em torno da constitucionalização do direito privado. Por fim, serão discutidas as perspectivas e desafios futuros dessa intervenção, considerando suas implicações patrimoniais e sucessórias.
Com essa estrutura, o artigo busca contribuir para uma compreensão mais clara e segura das relações privadas no contexto da constitucionalização, promovendo a segurança jurídica e a proteção dos direitos fundamentais sem comprometer a autonomia e a liberdade dos indivíduos.
A constitucionalização do Direito Privado: Impactos e desafios na interpretação jurídica
A Constituição da República Brasileira, ao incorporar uma série de valores não patrimoniais, exerce uma intervenção direta em diversas esferas do direito (Prata, 2023). Essa intervenção inclui os negócios jurídicos, a estrutura familiar, as relações de trabalho, o funcionamento das empresas e as interações de consumo.
Essa abrangência constitucional desafia o dogmatismo característico da Escola da Exegese, que se orgulhava de sua suposta neutralidade e pureza científica, restringindo deliberadamente o direito civil às relações patrimoniais. A Escola da Exegese, surgida no século XIX, tinha como fundamento a interpretação literal e rígida das leis, sem considerar os contextos sociais e valores morais subjacentes. Este enfoque limitava o direito civil às questões estritamente patrimoniais, negligenciando os aspectos humanos e sociais das relações jurídicas. No entanto, com a promulgação da Constituição de 1988, houve uma transformação significativa na abordagem jurídica brasileira (Caetano, 2023).
A Constituição de 1988 introduziu princípios e valores que transcendem as meras relações econômicas, enfatizando a dignidade da pessoa humana, a igualdade, a justiça social e a solidariedade. Esses princípios repercutiram diretamente na interpretação e aplicação do direito civil, que passou a ser visto sob uma ótica mais ampla e inclusiva. O direito de família, por exemplo, não é mais analisado apenas sob a perspectiva patrimonial, mas também considera os aspectos afetivos e os direitos fundamentais dos indivíduos envolvidos (Caetano, 2023).
No âmbito das relações de trabalho, a Constituição assegura direitos que vão além do contrato de trabalho tradicional, reconhecendo a importância de condições dignas e justas de trabalho. A proteção ao trabalhador e a valorização do trabalho humano são princípios constitucionais que influenciam diretamente as leis trabalhistas e as decisões judiciais, refletindo uma visão mais humanizada e menos centrada no capital (Matos, 2021).
O mesmo ocorre nas relações de consumo, onde a Constituição promove a proteção do consumidor como parte vulnerável na relação de consumo, garantindo direitos que buscam equilibrar a relação entre consumidores e fornecedores. As empresas, por sua vez, devem observar não apenas os aspectos econômicos de suas atividades, mas também os impactos sociais e ambientais, em consonância com os valores constitucionais (Matos, 2021).
Portanto, a intervenção da Constituição nas diversas áreas do direito demonstra um movimento de expansão e humanização do direito civil. Ou seja, ao incorporar valores não patrimoniais, a Constituição promove uma visão mais holística e inclusiva das relações jurídicas, desafiando a rigidez e a limitação imposta pela Escola da Exegese. Esse movimento reflete uma evolução jurídica que busca harmonizar as normas com os valores e princípios fundamentais de uma sociedade democrática e justa, garantindo que o direito sirva como instrumento de promoção da dignidade humana e do bem-estar social (Tepedino, 2013)
De acordo com Tepedino:
Verifica-se a introdução, na ordem pública, de valores não patrimoniais, de natureza social, voltados para a proteção da pessoa humana, aos quais devem ser funcionalizadas as relações jurídicas privadas, justamente para atender aos objetivos do Estado interventor. A funcionalização das situações jurídicas patrimoniais a valores não patrimoniais, atinentes à pessoa humana e à sua personalidade, torna-se postulado imperativo da ordem jurídica, introduzida pouco a pouco pela legislação especial e consagrada, no caso brasileiro, pela Constituição da República de 5 de outubro de 1988 (Tepedino, 2013, p. 16).
A primeira mudança reside na identificação do caráter relativo e histórico dos conceitos jurídicos, anteriormente percebidos como neutros e absolutos. Essa relativização decorreu da compreensão de que o direito é um fenômeno histórico e social, moldado pela tensão dialética entre a norma e o fato (Tepedino, 2013)
A segunda alteração da cultura jurídica contemporânea consiste na superação da rígida dicotomia entre o direito público e o direito privado. A emergência de uma série de institutos, no âmbito das novas tecnologias, do direito bancário, da bioética e do biodireito, assim como os desafios relativos à responsabilidade civil, revelou a insuficiência das classificações tradicionais. Estes novos institutos não podem ser confinados exclusivamente ao campo do direito público ou do direito privado. Ademais, a funcionalização das relações patrimoniais aos valores constitucionais já havia começado a subverter a antiga dicotomia (Tepedino, 2013).
Por fim, a terceira alteração manifesta-se na absorção definitiva, pelo Texto Constitucional, no Brasil e em outros lugares, dos valores que regem a iniciativa econômica privada, a família, a propriedade e demais institutos do direito civil. Isso demonstra que tais matérias não se limitam mais ao âmbito privado, mas se inserem na ordem pública constitucional, que antes se preocupava exclusivamente com questões do direito público, circunscritas às relações entre o cidadão e o Estado (Tepedino, 2013).
As principais diferenças entre o Estado Liberal e o Estado Social podem ser sintetizadas nas palavras de Sérgio Alves Gomes:
Se por um lado Estado liberalpecou pelo excessode omissão perante as reais desigualdades entre os indivíduos, deixando de adotar qualquer instrumento adequado à compensação destas disparidades, o Estado social evidenciou forte tendência a transformar-se em estado 'socialista', autoritário, capaz de ver apenas os interesses grupais, as necessidadesda 'classe trabalhadora'mas não osde cada indivíduo,sujeito multidimensional por natureza, enquanto pessoa humana (Gomes, 2005, p. 75).
Segundo Gomes (2005), o Estado liberal e o Estado social apresentam falhas distintas em sua abordagem às desigualdades e aos interesses dos indivíduos. O Estado liberal, por um lado, é criticado por sua inércia diante das desigualdades reais entre os indivíduos. Essa inércia se manifesta na falta de ações e medidas adequadas para compensar as disparidades sociais e econômicas, resultando em uma omissão excessiva que deixa os indivíduos vulneráveis às desigualdades sistêmicas sem qualquer forma de apoio ou compensação estatal.
Por outro lado, o Estado social, que surgiu como uma resposta às falhas do liberalismo, tende a se transformar em um Estado "socialista" autoritário. Nesse modelo, o foco se desloca para os interesses de grupos específicos, particularmente a classe trabalhadora, em detrimento dos interesses individuais. O Estado social, assim, prioriza as necessidades grupais e coletivas, mas muitas vezes negligencia os direitos e necessidades dos indivíduos como seres humanos multidimensionais. Essa abordagem pode resultar em um autoritarismo que não reconhece a individualidade e a diversidade dos sujeitos dentro da sociedade.
Portanto, enquanto o Estado liberal é criticado por sua passividade e falta de intervenção nas desigualdades, o Estado social é criticado por sua abordagem autoritária e por focar excessivamente nos interesses coletivos, sem considerar adequadamente as necessidades individuais. Gomes sugere que ambos os modelos falham em encontrar um equilíbrio adequado entre os interesses coletivos e individuais, o que é essencial para um Estado que realmente promove a justiça e o bem-estar de todos os seus cidadãos.
Os limites da intervenção estatal: Debates sobre a constitucionalização excessiva do Direito Privado e a autonomia individual
Entretanto, a excessiva constitucionalização de questões tradicionalmente pertencentes ao direito privado suscita debates relevantes sobre os limites da intervenção estatal e a preservação da autonomia dos indivíduos. Essa tendência, observada na Constituição da República e em práticas legislativas contemporâneas, reflete uma tentativa de harmonizar valores constitucionais com as relações privadas, mas não sem trazer à tona certas preocupações (Copi;Nalin; Pavan, 2021)
Primeiramente, é crucial reconhecer que a constitucionalização de matérias de direito privado, como a família, a propriedade e a iniciativa econômica privada, visa garantir que os princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a justiça social, permeiem todas as esferas das relações jurídicas.
No entanto, de acordo com Copi; Nalin e Pavan (2021), essa intervenção extensiva pode desvirtuar a natureza dos contratos e da autonomia privada. A liberdade contratual, por exemplo, é um pilar essencial das relações privadas, permitindo que as partes envolvidas ajustem seus interesses de maneira flexível e personalizada. A sobreposição de normas constitucionais pode restringir essa liberdade, impondo obrigações e limitações que nem sempre refletem as necessidades específicas dos indivíduos envolvidos.
Além disso, a ingerência constitucional nas questões privadas pode levar a uma judicialização excessiva das relações cotidianas. Ao constitucionalizar direitos e deveres, aumenta-se a probabilidade de conflitos serem levados ao Judiciário para interpretação e aplicação desses direitos. Isso não só sobrecarrega o sistema judiciário, como também introduz um grau de incerteza nas relações privadas, uma vez que as decisões judiciais podem variar e, muitas vezes, são imprevisíveis (Turra, 2022).
Ou seja, a segurança jurídica, fundamental para a estabilidade das relações privadas, pode ser comprometida quando normas constitucionais amplas e, por vezes, vagas são aplicadas a contextos específicos e variados (Turra, 2022).
Outro ponto de reflexão é a dicotomia entre os valores constitucionais e a eficácia prática das normas no direito privado. A funcionalização das relações patrimoniais aos valores constitucionais, embora bem-intencionada, pode encontrar desafios na aplicação prática. Institutos como a família e a propriedade possuem nuances complexas que não são facilmente capturadas pela letra da Constituição. A tentativa de regular esses institutos de maneira uniforme pode ignorar as particularidades e a diversidade das situações concretas, resultando em uma aplicação superficial ou inadequada dos princípios constitucionais (Zanini, 2021)
Ademais, ao absorver questões do direito privado, a Constituição pode enfraquecer a distinção necessária entre o público e o privado, fundamental para a ordem jurídica. A clara demarcação entre essas esferas permite uma organização mais eficiente do sistema legal e uma distribuição mais adequada das competências. A confusão entre os campos pode gerar conflitos de competência e dificuldades na aplicação das normas (Zanini, 2021).
Portanto, embora a constitucionalização das questões de direito privado tenha o mérito de alinhar os valores fundamentais com as práticas jurídicas cotidianas, é necessário um equilíbrio cuidadoso. É imperativo assegurar que essa intervenção não comprometa a autonomia privada, a segurança jurídica e a funcionalidade prática das normas. Preservar a distinção entre o direito público e o direito privado, respeitando a especificidade de cada campo, é essencial para manter a eficiência e a justiça no sistema jurídico (Pamplona Filho; Hora Neto, 2021).
Conclusão
A constitucionalização das questões de direito privado representa uma mudança paradigmática no ordenamento jurídico brasileiro, influenciando profundamente as relações contratuais, familiares e patrimoniais. Esse fenômeno reflete a absorção de valores constitucionais como a dignidade da pessoa humana, igualdade e justiça social nas esferas tradicionalmente reservadas à autonomia privada. Contudo, essa integração, embora necessária para a proteção dos direitos fundamentais, suscita importantes debates sobre os limites da intervenção estatal e a preservação da liberdade contratual.
Ao longo deste estudo, ficou evidente que a Constituição da República, ao inserir valores não patrimoniais nas relações privadas, desafia o dogmatismo da Escola da Exegese e sua visão restrita das normas de direito civil. A superação da rígida dicotomia entre direito público e privado é uma das principais conquistas da cultura jurídica contemporânea, que agora reconhece a interseção entre essas esferas em face de novos desafios sociais e tecnológicos. Institutos emergentes como o biodireito, a bioética e as novas tecnologias exigem uma abordagem jurídica mais flexível e inclusiva, que não se limite aos compartimentos tradicionais.
A análise jurídica revelou que, embora a intervenção constitucional nas relações privadas busque promover a equidade e a proteção dos direitos individuais, ela também impõe desafios significativos. A funcionalização das relações patrimoniais aos valores constitucionais pode, por vezes, subverter a autonomia privada e gerar insegurança jurídica. Portanto, é crucial encontrar um equilíbrio cuidadoso que permita a coexistência dos princípios constitucionais com a liberdade contratual e a segurança jurídica.
A constitucionalização do direito privado, embora promova a inclusão de valores fundamentais nas relações jurídicas, deve ser aplicada com cautela para evitar a excessiva judicialização e a insegurança jurídica. O ordenamento jurídico brasileiro precisa evoluir para acomodar essa nova realidade, equilibrando a proteção dos direitos fundamentais com a preservação da autonomia e da liberdade contratual.
Em conclusão, este estudo sublinha a importância de uma abordagem equilibrada e crítica na aplicação dos princípios constitucionais ao direito privado. É imperativo que o direito evolua para refletir as mudanças sociais e tecnológicas, mas sem comprometer os fundamentos da segurança jurídica e da autonomia dos indivíduos. Ao promover uma maior compreensão das implicações da constitucionalização, este artigo contribui para o desenvolvimento de um arcabouço legal mais justo, inclusivo e adequado às demandas da sociedade contemporânea.
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Referências
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