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Consentimento adolescente e estupro de vulnerável: Por que a presunção absoluta precisa ser revista

CIDH critica decisões brasileiras que relativizam estupro de vulnerável e reforça dever de responsabilização penal sem exceções em casos com menores de 14 anos.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Atualizado às 14:57

No mês de maio de 2025, a CIDH - Comissão Interamericana de Direitos Humanos expressou preocupação com decisões judiciais brasileiras que afastam a responsabilização penal em casos de violência sexual contra meninas menores de 14 anos. No comunicado, a CIDH reforça que o Brasil deve garantir a responsabilização penal nesses casos, sem admitir exceções. A crítica recai sobre o uso da técnica do "distinguish", que permite ao Judiciário afastar a aplicação de precedentes consolidados com base nas peculiaridades do caso concreto.

Essa técnica tem sido manejada para afastar a aplicação da súmula 593 do STJ, aprovada 2017, que determina a configuração automática do crime de estupro de vulnerável quando há conjunção carnal com menores de 14 anos, independentemente de consentimento, experiência sexual ou relação amorosa. Ainda assim, entre 2024 e 2025, diversas decisões do STJ vêm relativizando essa presunção absoluta. Nos julgados, consideram-se elementos como pequena diferença de idade, relações afetivas duradouras, consentimento familiar e ausência de dano social relevante:

PROCESSO

RELATOR

CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO CONCRETO

AgRg no HC

897015 / PA

Min. Otávio de Almeida Toledo

Vítima com 13 anos de idade e réu maior de 18 anos; diferença de idade que não ultrapassa 5 anos; relação duradoura, 8 anos de relacionamento; advieram 4 filhos do relacionamento; atipicidade material;

AgRg no REsp 2107658 / SC

Min. Sebastião Reis Júnior

Vítima com 13 anos de idade e réu com 20 anos; manifestação de vontade da adolescente; aquiescência da mãe da menor; ausência de relevância social do fato;

AgRg no REsp 2045280 / SC

Min. Sebastião Reis Min. Min. Sebastião Reis Júnior

Vítima com 13 anos de idade e réu com 22 anos; condenação socialmente inútil; ausência de violação ao bem jurídico tutelado; consentimento da vítima e de seus familiares para o relacionamento;

AgRg no REsp 2101617 / TO

Min. Joel Ilan Paciornik

 Vítima com 13 anos de idade e réu com 19 anos; adveio uma criança da relação amorosa; ausência de violação ao bem jurídico tutelado diante da pequena diferença de idade entre os envolvidos; formação de núcleo familiar;

AgRg no REsp 2118545 / SC

Min. Joel Ilan Paciornik

Vítima com 13 anos e réu com 20 anos. conhecimento da família da vítima, adveio uma criança da relação amorosa. condenação do acarretaria efeitos mais gravosos para a vítima e para o nascituro;

AgRg no REsp 2029697 / MG

Min. Jesuíno Rissato

Vítima com 13 anos de idade e réu com 23 anos; relação amorosa consentida mutuamente; princípios da fragmentariedade, subsidiariedade e proporcionalidade do direito penal;

AgRg no AREsp 2652545 / MS

 Min. Antônio Saldanha Palheiro

Vítima menor de 14 anos de idade e réu com 20 anos; convivência marital; consentimento dos genitores; adveio uma criança da relação amorosa.

A flexibilização da norma penal como tem feito o STJ, nos moldes observados nos julgados acima, já foi objeto de crítica sob a ótica do ativismo judicial. Mendes e Silveira (2017), ao analisarem decisões do TJ/RS entre 2011 e 2017, apontam que, mesmo diante de norma penal fechada como o art. 217-A - que estabelece de forma clara a idade mínima de 14 anos para o exercício da sexualidade -, o tribunal passou a admitir, na prática, uma excludente de ilicitude com base no consentimento da vítima, contrariando a literalidade da norma e incorrendo em verdadeiro ativismo judicial.

A crítica à literalidade do art. 217-A do CP tem ganhado força doutrinária. Autores como Costa e Melo sustentam que a norma, ao desconsiderar a realidade afetiva, sexual e reprodutiva de adolescentes, acaba por afastar a proteção efetiva que pretende garantir. O foco puramente repressivo ignora direitos fundamentais dos adolescentes e acaba por criminalizar experiências consentidas, ainda que desaconselhadas.

O problema é complexo. De um lado, há a rigidez da norma penal; de outro, a realidade social dos adolescentes brasileiros, em que o início da vida sexual antes dos 14 anos é fato estatístico - e não exceção. Dados da PeNSE/IBGE indicam que 35,4% dos escolares de 13 a 17 anos de idade já tiveram relação sexual. Entre os adolescentes que já tiveram relação sexual, 36,6% deles tiveram a primeira relação sexual com 13 anos de idade ou menos. Como ignorar esse dado ao aplicar cegamente uma norma penal?

A jurisprudência nacional tem entendimento consolidado no sentido de conferir especial valor probatório à palavra da vítima, quando coerente e verossímil, isto porque os crimes sexuais, em sua maior parte, são cometidos de forma clandestina, sem testemunhas e sem deixar vestígios (STJ AgRg no AREsp 1.594.445/SP).

Apesar da jurisprudência conferir especial valor probatório à palavra da vítima nos crimes sexuais, esse reconhecimento parece ser negado quando o depoimento aponta para o consentimento da relação. Em outros termos, se a narrativa da vítima - quando acusa - é suficiente para fundamentar a condenação, por que sua palavra deixa de ter relevância quando afirma que a relação foi consentida? A condição etária, por si só, seria suficiente para invalidar completamente sua manifestação de vontade, ainda que coerente e verossímil? 

Essa assimetria não apenas revela uma seletividade no uso da palavra da vítima, mas também contraria princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito ao livre desenvolvimento da personalidade (art. 5º) e a proteção integral da criança e do adolescente como sujeitos de direitos (art. 227).

A flexibilização da súmula 593 do STJ, por meio da adoção da vulnerabilidade relativa em substituição à presunção absoluta de violência, permitiria uma análise individualizada da maturidade psicológica, da experiência sexual prévia e da intenção do adolescente, relativizando o critério etário, resguardando a autonomia e o desenvolvimento do adolescente sem estigmatizações indevidas. Essa abordagem harmoniza-se com os princípios da adequação social e da intervenção mínima, evitando a criminalização de condutas consensuais que não lesam o bem jurídico tutelado.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos já reconheceu, no caso Angulo Losada vs. Bolívia, que o consentimento pode ser válido quando claramente manifestado. Ignorar a vontade da vítima, inclusive quando esta afirma que consentiu e não se sentiu violada, é um contrassenso jurídico e uma ofensa ao princípio do contraditório.

Em atenção a esse precedente da Corte IDH fica evidente a centralidade do consentimento nas normativas penais relativas à violência sexual, portanto, a jurisprudência brasileira, ao ignorar qualquer vestígio de vontade ou relacionamento afetivo saudável de adolescentes, cria uma dissonância com essa perspectiva, que busca proteger e não criminalizar relações onde não há exploração ou dano.

A experiência de outros países revela que a fixação de uma idade mínima para o início da vida sexual não é uniforme e, em alguns casos, admite certa relativização normativa. Saraiva e Gondran (2021), ao compararem os ordenamentos brasileiro e argentino, apontam que a legislação brasileira - pela leitura da lei 12015/09 - como marco para o consentimento sexual a idade de 14 anos, na Argentina, a idade é de 13 anos.

No contexto norte-americano, se destaca a chamada "exceção Romeu e Julieta", que está prevista na legislação de diversos estados dos Estados Unidos da América. Essa exceção permite mitigar a aplicação estrita da norma de estupro em situações de proximidade etária entre os envolvidos. Em geral, essas normas que variam por Estado, preveem uma margem de idade - usualmente entre dois e quatro anos - na qual a criminalização é afastada ou atenuada, para evitar desproporcionalidades e injustiças.

Rocha e Rudnicki (2022) ao analisarem a possibilidade da adoção desse tipo de relativização no Brasil, concluem que seria possível se o caso concreto demonstrasse características de uma relação saudável, consensual, com pequena diferença de idade entre os jovens.

É preciso coragem institucional para rever o critério etário absoluto do art. 217-A. Reconhecer a vulnerabilidade relativa não é retroceder na proteção infantojuvenil. É, ao contrário, garantir proporcionalidade, justiça e alinhamento com os compromissos internacionais de direitos humanos.

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BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no AREsp 2652545/MS. Relator: Min. Antônio Saldanha Palheiro. Brasília, DF, 01 jul. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_aresp_2652545. Acesso em: 30 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 897015/PA. Relator: Min. Otávio de Almeida Toledo. Brasília, DF, 12 dez. 2023. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_hc_897015. Acesso em: 30 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 2029697/MG. Relator: Min. Jesuíno Rissato. Brasília, DF, 20 jun. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_resp_2029697. Acesso em: 30 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 2045280/SC. Relator: Min. Sebastião Reis Júnior. Brasília, DF, 25 mar. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_resp_2045280. Acesso em: 30 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 2101617/TO. Relator: Min. Joel Ilan Paciornik. Brasília, DF, 10 abr. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_resp_2101617. Acesso em: 30 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 2107658/SC. Relator: Min. Sebastião Reis Júnior. Brasília, DF, 18 fev. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_resp_2107658. Acesso em: 30 jul. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 2118545/SC. Relator: Min. Joel Ilan Paciornik. Brasília, DF, 05 mai. 2024. Disponível em: https://www.stj.jus.br/portal/processo/e/agrg_resp_2118545. Acesso em: 30 jul. 2025.

COSTA, S. F. DA et al. Contradições acerca da violência sexual na percepção de adolescentes e sua desconexão da lei que tipifica o "estupro de vulnerável". Cadernos de saúde pública, v. 36, n. 11, 2020. Disponível em: https://www.scielosp.org/pdf/csp/v36n11/1678-4464-csp-36-11-e00218019.pdf. Acesso em: 27 jul. 2025.

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Bethânia Silva Santana

Bethânia Silva Santana

Advogada criminalista. Professora de Direito Penal e Processo Penal. Doutoranda em Direito Constitucional pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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