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Resenha crítica: A criação de um sistema (tripartide) de regulação das plataformas digitais - garantia do direito à liberdade de expressão

Análise crítica do PL 2.630/20 discute regulação das plataformas digitais, equilibrando liberdade de expressão e combate à desinformação.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Atualizado em 6 de agosto de 2025 11:26

Trata, o presente trabalho, de uma resenha crítica no campo do Direito Digital, especificamente sobre o texto do PL 2.630/20, que tem por objeto a instituição da lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet, popularmente conhecido como o "PL das Fake News".

O texto originário da proposta legislativa, após amplo debate e participação de atores do segmento, sofreu algumas modificações relevantes, com destaque para a retirada do denominado Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, que tinha por objetivo geral fiscalizar e dar efetivo cumprimento à legislação específica, além de realizar estudos, pareceres e recomendações sobre a liberdade, responsabilidade e transparência na internet, detendo competências específicas que passavam pela elaboração do código de conduta para as redes sociais e serviços de mensageria privada, pela avaliação de procedimentos de moderação, até estabelecer diretrizes e fornecer subsídios para a autorregulação e para as políticas de uso dos provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada. 

Sem prejuízo de sua competência, o Conselho, para sua imprescindível imparcialidade, precisava ser multisetorial, apartidário, com mandatos temporários e, sobretudo, autônomo, razão da composição sugerida contemplar representantes de diversos segmentos da sociedade, ainda que com a exclusão de atores importantes, como integrantes da OAB - Ordem dos Advogados do Brasil. Abaixo a relação dos representantes constantes no texto originário da proposta legislativa:

  • 1 (um) representante do Senado Federal; 
  • 1 (um) representante da Câmara dos Deputados; 
  • 1 (um) representante do Conselho Nacional de Justiça; 
  • 1 (um) representante do Conselho Nacional do Ministério Público; 
  • 1 (um) representante do Comitê Gestor da Internet no Brasil; 
  • 5 (cinco) representantes da sociedade civil; 
  • 2 (dois) representantes da academia e comunidade técnica; 
  • 2 (dois) representantes dos provedores de acesso, aplicações e conteúdo da internet; 
  • 2 (dois) representantes do setor de comunicação social; 
  • 1 (um) representante do setor de telecomunicações; 
  • 1 (um) representante do Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil; 
  • 1 (um) representante do Departamento de Polícia Federal; 
  • 1 (um) representante da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel); 
  • 1 (um) representante do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar).

Consigna-se, por oportuno, que os referidos representantes não seriam escolhidos diretamente por aqueles que se encontram no poder, devendo a aprovação de cada integrante ser aprovada pelo Congresso Nacional, similar ao que se opera com os dirigentes de outros órgãos regulatórios, cujos nomes, currículos e muitas vezes, por meio de sabatina, precisam ser aprovados pelo Senado.

Sem embargo dessa independência funcional, denota-se, pelas competências acima transcritas, que o referido Conselho, ou qualquer outro que venha a ser criado, não teria o condão de realizar qualquer tipo de controle ou censura prévia, até porque, como sabido, desde o julgamento da ADPF - Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 130 pelo STF, vigora a regra, ainda que hoje admita-se exceção, da prevalência da liberdade de expressão em relação aos demais direitos fundamentais. Assim se posicionou o STF na mencionada ADPF:

(...)

Noutros termos, primeiramente, assegura-se o gozo dos sobredireitos de personalidade em que se traduz a "livre" e "plena" manifestação do pensamento, da criação e da informação. Somente depois é que se passa a cobrar do titular de tais situações jurídicas ativas um eventual desrespeito a direitos constitucionais alheios, ainda que também densificadores da personalidade humana.

(...)

Com o que a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, assim como das notícias e informações, mas sem deixar de prescrever o direito de resposta e todo um regime de responsabilidades civis, penais e administrativas. Direito de resposta e responsabilidades que, mesmo atuando a posteriori, infletem sobre as causas para inibir abusos no desfrute da plenitude de liberdade de imprensa.

Com efeito, ainda que se trate de decisão proferida em sede de controle constitucional de direitos fundamentais, logo, com eficácia erga omnes e vinculante, não se pode usar do referido posicionamento jurídico como absoluto, sobretudo por conta da questão temporal, tanto a que se deu o julgamento (2009), quanto a que se referia o "objeto" julgamento (ditadura militar). Era inimaginável, para qualquer cidadão, por mais conhecedor e visionário no campo da tecnologia, informática e da comunicação social, que ferramentas tecnológicas pudessem alcançar proporções tão grandes que fossem capazes de se tornarem verdadeiros meios de comunicação e, com o seu mau uso, pudessem interferir, de alguma forma, nos processos democráticos que sustentam o Estado de Direito.

Em países que adotam o civil law, como é o caso do Brasil, há, portanto, uma maior possibilidade de se "interditar a palavra" quando se diz respeito ao controle da veracidade. Há, com base nessa relativização, um juízo de ponderação entre os direitos fundamentais para limitar, ainda que excepcionalmente, a "liberdade de se expressar", situação que ocorreria quando feita fora dos limites constitucionalmente permitidos - logo, não seria um direito tolhido e, sim, a prática de um ilícito. Essa teoria, denominada de intervencionista ou relativista, não é novidade para o ordenamento jurídico, mesmo após o julgamento da ADPF 130, já que houve julgados, em que o controle da liberdade de expressão se deu de forma prévia para prevenir direitos e salvaguardar danos imediatos que interferiam no Estado Democrático do Direito. Repise-se: ainda que se admita que o Brasil adote a teoria relativista, a interferência na liberdade de expressão se dá apenas em casos excepcionais e cujo direito violado ou ameaçado se sobreponha ao direito constitucional da liberdade de expressão e possa, obviamente, ser identificado, com fidedignidade, antes de sua exteriorização - situação, diga-se de passagem, de difícil comprovação.

Corroborando tal posicionamento jurídico, tem-se o enunciado 613 da VIII Jornada de Direito Civil que, ao enfrentar a discussões doutrinárias sobre o art. 12 do CC, destacou:

 - Art. 12: A liberdade de expressão não goza de posição preferencial em relação aos direitos da personalidade no ordenamento jurídico brasileiro.

No âmbito eleitoral tem-se, no mesmo sentido, o enunciado da ornada de Direito Eleitoral, com a seguinte ementa:

Não caracteriza mera crítica política a agressão ou o ataque a candidatos em sítios e aplicativos da internet com conteúdo calunioso, difamatório, injurioso, sabidamente inverídico ou que expresse ódio, desprezo ou diminuição em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência, orientação sexual ou identidade de gênero.

Sem a pretensão de esgotar o tema e ingressar nos diversos modelos e tipo de expressão (crítica, opiniões, protestos, dentre outros), a relativização da intervenção do expressar não é novidade no mundo jurídico. Em sua conhecida obra A Ironia da Liberdade de Expressão: Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública, Owen M. Fiss1 traz, sob a perspectiva do sistema jurídico americano, uma profunda reflexão sobre liberdade de expressão, igualdade e o limite de atuação/regulação estatal, sempre sob o manto da inconteste proteção do Estado Democrático.

O consagrado autor apresenta o desafio enfrentado pela Suprema Corte Americana ao julgar casos cuja causa de pedir envolva liberdade versus igualdade ou, sob a ótica legislativa estrangeira, 1ª Emenda Constitucional versus 14ª Emenda Constitucional que, em não raras oportunidades, entram em conflito.

Nesse sentido, ainda que haja uma variação de posicionamento, natural com a evolução social, a posição do Poder Judiciário Americano sempre refletiu, segundo narra FISS, numa ponderação de dois interesses em conflito, quais sejam: o valor da liberdade de expressão versus os interesses promovidos pelo Estado para sustentar a regulação (os chamados contravalores).

A liberdade de expressão, dentro de um limite de atuação constitucional, deve possuir um limite quando o discurso, no caso propagado e disseminado pelos meios digitais de comunicação, gerar um perigo iminente e manifesto (clear and preente danger) a um vital interesse estatal, que nada mais seria, no campo do Direito Constitucional brasileiro, que a preservação do interesse público e coletivo sobre o particular e individual. Mais do que uma análise da prevalência do interesse público, a regulação estatal visa combater desinformação e atos ilícitos que são diariamente perpetuados nas redes sociais e nos serviços de mensagerias privadas e que interferem, diretamente, nos pilares da democracia brasileira. 

A desinformação (conceito mais sutil para intencional e deliberada alteração de verdade) é uma violação à liberdade de expressão e do acesso à informação confiável, plural e diversa. A desinformação é, portanto, um problema contemporâneo e que tem trazido repercussões negativas em inúmeros indicadores democráticos. As redes sociais e os serviços de mensagerias, ainda que possuam natureza privada, exercem, hoje, a verdadeira função da comunicação social e, por isso, a sua regulação, para além da preservação das bases democráticas, encontra-se no limite do conceito da intervenção mínima do Estado nas relações privadas.

Aliás, sob a ótica da comunicação social, as redes sociais, serviços de mensageria privada e a internet propriamente dita, passaram a ter um papel crucial na transmissão de ideias e no exercício liberdade de expressão. Pode-se dizer, inclusive, que os meios tradicionais de comunicação social, como rádio e televisão, perderam espaço e, sobretudo, protagonismo, para as redes sociais, o que traz a necessidade de discussão do seu uso, abuso e eventual controle/regulação, sem que isso, obviamente, interfira no fundamental e constitucional direito à liberdade de expressão, tão caro para o Estado Democrático e Social de Direito. Grandes empresas, que antes lançavam suas propagandas e informações pelos meios tradicionais de comunicação, hoje se valem, também, das redes sociais, cujo alcance é, a depender do público alvo, muito mais eficiente.

Como bem explicitado por DE LAURENTIIS e THOMAZINI, no artigo científico titulado Liberdade de Expressão: Teorias, Fundamentos e Análise de Casos2, as redes sociais transformaram toda e qualquer pessoa em potenciais veículos de comunicação, criando um novo meio de difusão, que se torna grave, quando se trata de discursos de ódio ou engano na transmissão daquilo que não é verdadeiro. Esse fato, contudo, somente pode ser contornado, se houver uma regulação capaz de reenquadrar a liberdade de expressão à nova realidade de comunicação social e da tecnológica.

Há, nesse sentido, como bem destacado por João Brant, diretor da Instituto da Cultura e Democracia3, uma necessária separação entre as funcionalidades de comunicação interpessoal e a comunicação viral ou de massa - esta última que deve ser alvo de regulação.

A regulação pretendida pela proposta legislativa não tem o condão de cercear o fundamental e indisponível direito à liberdade de expressão, mas, apenas, estipular regras e limites que garantam o legítimo exercício desse constitucional direito fundamental e o Estado Democrático de Direito. Não se pode conceber a ideia, por exemplo, que uma pessoa, sob o posicionamento pessoal, propague e instigue a volta de um estado autoritário/ditatorial ou que o nazismo jamais existiu4. É a democrática, com todos os seus valores, que, ao fim e ao cabo, é protegida com a regulação pretendida.

A guisa de exemplificação, segundo estudo realizado pelo MIT, citado no relatório do relator do substitutivo ao referido PL, 1% das notícias falsas mais vistas pode atingir uma média de 100.000 pessoas, enquanto as verdadeiras raramente atingem mais de 1.000 pessoas. Esse dado relevante comprova que o combate à desinformação é, ao final, a luta pela liberdade de expressão.

O eminente professor Gilmar Mendes5, em sua obra Curso de Direito Constitucional, traz como norte do conceito e ou limite da liberdade de expressão, o princípio da proteção do núcleo essencial, ou seja, em nenhum caso poderá o direito fundamental ser violado em sua essência. Esse princípio tem por objetivo preservar as garantias institucionais, segundo o qual, determinados direitos são colocados como instituições jurídicas e, como tal, devem ter o mínimo de sua essência garantido constitucionalmente.

Citando o doutrinador Harry Kalven, que traz uma relevante reflexão sobre a demasiada liberdade de expressão e os interesses estatais, FISS, em obra já citada, destaca, no mesmo caminho citado pelo ministro e professor Gilmar Mendes, que a liberdade de expressão não é uma "liberdade civil de luxo", devendo as Cortes Constitucionais atentarem para os denominados contravalores. Denota-se, pelas passagens do texto de FISS, que a ausência de uma regulação estatal impõe que o controle, limites, alcances e responsabilidades fique à cargo do Poder Judiciário, não obstante vigorar, em nosso ordenamento jurídico, a separação dos poderes como base do regime democrático. 

A propositura legislativa, a despeito da preservação da liberdade de expressão em sentido amplo, visa reduzir, inclusive, a atuação do Poder Judiciário que, chamado à resolução de conflitos, acaba por empregar interpretações a partir do direito positivado existente, mesmo que não se trate de legislação especial que, se existente, traria maior segurança jurídica, ainda que não se vede, por preceito constitucional imutável, o acesso ao Judiciário.

Com esse posicionamento, DE LAURENTIIS e THOMAZINI, cuja obra já foi citada, destacam, exatamente, a oscilação de jurisprudência do STF, fruto, seguramente, da ausência de uma regulação específica. Abaixo o trecho do artigo científico:

A jurisprudência brasileira revela que o papel da liberdade de expressão na sociedade brasileira ainda é um tema em aberto. O STF vacila e até hoje ainda não estabeleceu qual é a real função da liberdade de expressão no sistema constitucional brasileiro. Ora o Tribunal privilegia a expressão, ora a mutila, tudo isso com base em critérios imprecisos e na conveniência política. Essa incerteza da jurisprudência constitucional revela que não há um comprometimento a coerência da proteção dos direitos fundamentais. Nesse clima de insegurança quem perde é a liberdade de expressão, pois o cidadão amedrontado tende a permanecer calado. Ainda há tempo para se mudar de rumo. E, nesse caminho, revitalizar a liberdade de expressão seria o primeiro e mais urgente passo.

Em recente julgamento, o ministro Gilmar Mendes, do STF6, ao tratar do dos limites à liberdade de expressão e a sua incompatibilidade com os discursos dolosos manifestamente difamatórios, destacou que mesmo diante da cláusula constitucional que assegura a livre manifestação de pensamento, é possível estabelecer limites objetivos para a liberdade de expressão, pautados na necessidade de inibir a prática de infrações penais e atentados contra a honra de terceiros. Ampliando o referido posicionamento jurídico, tem-se que é perfeitamente possível, por não dizer necessário, que esses limites devem ser fixados de forma positivada, seja para segurança jurídica, seja, por consequência, para a preservação do Estado Democrático de Direito.

É importante salientar, conforme exposto pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil7, em oficio remetido ao relator do PL - deputado Orlando Silva, que a regulação de plataformas e a governança dos fluxos de comunicação e de informação digital perpassam e tangenciam temas variados, que vão desde a comunicação pública digital, passando pelo impacto dessas tecnologias e desses serviços em face do jornalismo profissional, até debates sobre direito da concorrência e proteção de dados pessoais. 

Logo, a implementação de um sistema verdadeiramente democrático da esfera pública digital não deveria, por uma questão de governança, concentrar o poder decisório em um único ator, razão de ter sido proposto a construção de um Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais tripartite, com instâncias decisórias dotadas de composição plural e, obviamente, autônoma, já que não se trata de órgão ou entidade política à disposição daqueles que estão no Poder.

Na proposta apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, assinada por consagrados juristas, como a professora e doutora Laura Schertel Ferreira Mendes, o sistema tripartite dar-se-ia da seguinte forma:

  1. CPD - Conselho de Políticas Digitais, órgão deliberativo plural responsável pela fiscalização e pela aplicação das diretrizes legalmente estabelecidos e das obrigações regulatórias a cargo das plataformas digitais, composto por membros indicados pelos três Poderes da República, além da indicação da Anatel, Cade, ANPD e OAB Federal; 
  2. CGI.br - Comitê Gestor da Internet no Brasil, com o encargo de promover o debate sobre o tema no Brasil mediante a realização de estudos, recomendações e diretrizes; 
  3. Entidade de autorregulação, pessoa jurídica de direito privado com a responsabilidade de deliberar sobre casos concretos de moderação de conteúdo no âmbito das plataformas digitais;

Confere-se, pela proposta apresentada, que as competências anteriormente destinadas ao Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet foram repartidas em três entidades distintas e autônomas, como forma de assegurar, inclusive, o acompanhamento do avanço tecnológico e social do país, que caminha a passos largos e em velocidade infinitamente superior à tramitação de qualquer proposta ou atualização legislativa.

A centralização de todas as atribuições em um único determinado Conselho, como proposto no texto originário, já se mostrou, em oportunidades outras, ineficiente e, o tema em análise requer de todos os atores envolvidos, uma verdadeira vigilância no cumprimento da importante lei que se pretende aprovar, afinal, há um linha tênue entre a regulação, vedação à censura e liberdade de expressão.

O relator do projeto de lei, que inicialmente se mostrou favorável à proposta apresentada pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, para além de não acatar a mencionada sugestão, optou por retirar no substitutivo apresentado, o próprio Conselho de Transparência e Responsabilidade de Políticas Digitais (que constava no texto originário), transferindo suas atribuições ao já existente Comitê Gestor da Internet, ignorando, por conseguinte, a ideia da tripartição de competências ou, minimamente, da criação de um novo Conselho especifico para a referida regulação. 

Registra-se, com relevo extraordinário, que essa decisão não foi, ao que tudo indica, lastreada em questões técnicas-jurídicas-legislativas, mas, sim, por uma posição exclusivamente política, até porque, em todas as audiências públicas realizadas, não houve qualquer apontamento negativo significante quanto à criação de um novo Conselho ou quanto à tripartição dessas competências, nos moldes sugeridos pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. 

Explica-se, dentro da análise do processo legislativo, o que se acredita ter sido o posicionamento do relator: No sistema político brasileiro é comum - e muitas vezes necessário - que partidos e parlamentares que integram os blocos da situação e da oposição, negociem pontos de seus respectivos interesses em determinados projetos legislativos, de forma que os anseios daqueles que estes representam, possam ser, minimamente, preservados. Em outras palavras, a oposição, por mais que possa ser contrária a um determinado projeto de lei, sabe que pelo quórum existente, determinado projeto de lei será aprovado e, por isso, valendo-se das previsões regimentais, cria embaraços (legais) para que suas pretensões mínimas, se existentes, sejam atingidas. Lado outro, a situação sabe que os referidos embaraços criados pela oposição, além de desgastar a relação do governo com o Poder Legislativo, enfraquece a sua imagem perante a sociedade, o que afeta a sua avaliação e, a depender do objeto e alcance, a sua própria governabilidade. 

Há de se lembrar, ainda nesse raciocínio, que todo grupo político possui um projeto de perpetuação no poder e, por isso, o seu enfraquecimento por meio de derrotas legislativas, é algo indesejado e precisa ser, ao máximo, evitado. É comum, dentro de um modelo de presidencialismo de coalizão8, que grupos da situação, oposição e os denominados "independentes", negociem, republicanamente, temas e questões de seus respectivos interesses e, o governo, diante da temperatura do momento, avança ou recua em determinados pontos que entende menos relevantes ou que possam ser tratados em projeto de lei específico, como acredita-se que foi o caso do Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet ou da proposta de criação do Conselho de Políticas Digitais. 

Fato é que mesmo a coalizão governista possuindo meios institucionais necessários à promoção da cooperação entre o Legislativo e o Executivo, neutralizando o comportamento individualista dos legisladores e oposição que são contrários aos projetos legislativos9, acredita-se que a opção do relator(governo) foi de postergar a discussão da tripartição das competências do Conselho para outra etapa legislativa e, com isso, concentrou, no atual texto em discussão, todas as competências em um único órgão já existente, o CGI.br - Comitê Gestor da Internet, aumentando a suas atribuições legais, o que provavelmente implicará na ineficiência de seu objetivo legal. Não se sabe, obviamente, qual será o texto final, mas o fato é que essa discussão legislativa precisa avançar para assegurar, por meio do direito positivado, segurança jurídica que hoje aflige a população brasileira e afeta, ao fim, o Estado Democrático de Direito.

Não se desconhece que essa forma de negociação política-legislativa, ao contrário de uma equivocada percepção mediana, é salutar para o processo democrático, pois, todos os grupos políticos e, consequentemente, os grupos sociais que estes representam, passam a ter voz mesmo sendo minoria nas casas legislativas. Situação e oposição não podem ser (ou ao menos não deveriam) antagonistas por natureza, sobretudo quando o que se está em questão é a preservação do Estado Democrático e Social de Direito e o tão caro direito à liberdade de expressão.

O debate, a discussão, as concessões e até as manobras legais regimentais são salutares e devem fazer parte de todo e qualquer processo democrático, sob pena de um processo legislativo fictício e o retorno do autoritarismo, o que é indesejado, inclusive no campo da regulação pretendida no PL em análise. 

Ao que tudo indica, no projeto de lei das "Fake News", foi identificado que a criação de um órgão ou entidade, ainda que autônomo, poderia ser um entrave político com os demais partidos de oposição e com o denominado "Centrão", que também apresentava certa resistência à criação do órgão multisetorial, mesmo que, com isso, concentre-se parte das decisões nas mãos do Poder Judiciário. 

A resistência ao órgão foi notoriamente apoiada pelas denominadas big techs que, segundo a imprensa tradicional, disseminou a ideia (equivocada) que o Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet, ou a proposta de tripartição, seria como um Ministério da Verdade10, censurando as redes sociais, fato este que, de certa forma, acabou por ser decisivo para sua retirada do PL em análise.

As plataformas digitais, em que pese entidades privadas, acabaram por assumir a função de mediadores e propagadores da comunicação pública e, em que pese não possuírem, diretamente, responsabilidade na elaboração do conteúdo, nos termos do marco civil da internet, é por ela que este (conteúdo) é disseminado, o que lhe impõe, segundo recente posição do STF, responsabilidade especificas.

Em junho de 2025, o STF, ante a ausência de uma regulamentação mais contemporânea sobre as redes sociais, declarou a inconstitucionalidade parcial do art. 19 do MCI - Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), que condicionava a responsabilidade civil das plataformas digitais à existência de prévia ordem judicial par remoção do conteúdo tido como ilegal11.

Segundo a recente decisão, proferida no âmbito dos Recursos Extraordinários 1.037.396 e 1057258, ambos com repercussão geral (Temas 987 e 533), os provedores poderão ser responsabilizados, mesmo sem decisão judicial, em diversas hipóteses, com destaque para os casos de conteúdos impulsionados ou pagos e nas hipóteses de circulação em massa de conteúdos graves como atos antidemocráticos, terrorismo, indução ao suicídio, pornografia infantil, dentre outros.

 O dispositivo declarado parcialmente inconstitucional exigia o descumprimento de ordem judicial específica para que os provedores de aplicações de internet fossem responsabilizados civilmente por danos causados por conteúdo publicado por terceiros. Por maioria de votos, prevaleceu o entendimento de que essa norma já não é suficiente para proteger os direitos fundamentais e a democracia.

As plataformas digitas, por serem entidades privadas, têm o direito de elaborar as regras de conduta próprias nos chamados termos de serviços e políticas de comunidade (poder quasi-legislativo) e também de aplicação dessas próprias regras em seus ambientes (poder quasi-judicial e quasi-executivo)12, razão de serem consideradas entidades autorreguladas. Por essa razão, o STF também estabeleceu que todos os provedores deverão implementar a autorregulação obrigatória (com sistemas de notificação, devido processo e relatórios de transparência); canais acessíveis de atendimento à usuários e terceiros; possuir representação jurídica no Brasil, com poderes plenos para responder judicial e administrativamente13.

Sem ingressar no mérito se a decisão da Suprema Corte foi ou não acertada - alvo de outro artigo a ser elaborado, fato é que toda essa discussão e obrigações que foram impostas pelo Poder Judiciário, deveriam estar atreladas ao denominado Sistema Brasileiro de Regulação das Plataformas Digitais, onde os seus integrantes não seriam, apenas, juristas e cuja discussão, certamente, seria mais técnica e aprofundada, ainda que se chegasse à mesma conclusão. E, para existência desse sistema, é preciso que o Poder Legislativa retome, com cautela, evidências e imparcialidade, a discussão sobre a regulação.

Não há, em nosso ordenamento jurídico, uma vedação absoluta à regulação estatal que não possa (ou não se deva) conjugar direitos constitucionais com outros direitos/valores ou contravalores que, de certa forma, possam conflitar ou necessitar de uma interpretação teleológica.

Não se pretende, num verdadeiro Estado Democrático de Direito, inibir o direito de liberdade de expressão, entretanto, muitas vezes, para se garantir esse direito, é preciso, exatamente, a sua regulação. Ainda que isso possa parecer um paradoxo, a regulação das plataformas digitais pelo Estado se dá, exatamente, para preservar a legítima liberdade de expressão.

O conceito, ou porque não dizer, o direito à liberdade de expressão, implica numa concepção organizada e estruturada de liberdade que reconhece certos limites quanto ao que deve ser incluído e excluído, logo, a sua regulação visa promover, exatamente, valores democráticos subjacentes ou inerentes a este direito, sem que isso precise ser definido pelo Poder Judiciário ante a ausência regulamentação própria e específica. 

Não se pode admitir que, individualmente ou, até, coletivamente, se assegure, sob o pretexto do direito de liberdade de expressão, discursos que coloquem em  "xeque" o Estado Democrático de Direito ou direitos fundamentais e, aqui, não se conceitua a liberdade de expressão apenas quanto à voz ou o direito de falar, mas, também, tudo aquilo que, "nos bastidores", impulsiona, financia ou sustenta qualquer discurso que flerte com sistemas totalitários e ou coloquem e risco, direta ou indiretamente, a democracia. Comportamentos decorrentes da liberdade de expressão que, mesmo que indiretamente, interfiram em outros diretos fundamentais, somente serão tolhidos, ou ao menos minimizados, com a regulação estatal.

Nesse horizonte, a regulação com a criação de um novo "conselho tripartite", nos moldes sugeridos pela Ordem dos Advogados do Brasil, não traz qualquer risco de censura prévia ou ao regime democrático. Ao contrário, a sua existência, na forma proposta de tripartição de competência, anula a concentração de poder em um único ator ou no próprio Poder Judiciário e, consequentemente, traz maior eficiência nas competências especificadas para cada "partição". 

Conforme exposto na sugestão de tripartição apresentado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, "nenhum órgão, setor ou agente tem demonstrado que, sozinho, poderia desempenhar essa função no Brasil. Isso, porque a regulação de plataformas e a governança dos fluxos de comunicação e de informação digital perpassam e tangenciam temas variados que vão desde a comunicação pública digital, passando pelo impacto dessas tecnologias e desses serviços em face do jornalismo profissional até debates sobre direito da concorrência e proteção de dados pessoais"

De certo que a regulação responsiva, que leve em consideração os impactos e os riscos envolvidos, a fim de estabelecer as condições necessárias para a garantia de direitos no ambiente digital, em especial quanto à privacidade, à proteção de dados pessoais, à liberdade de expressão e ao direito à informação, com base em parâmetros objetivos14, é condição indispensável para o exercício da liberdade de expressão e da preservação dos pilares democráticos. 

Para que esta regulação seja efetiva, cumprida e, permanentemente aprimorada, é imprescindível que haja a criação do Sistema CPD - Conselho de Políticas Digitais, ou outro nome que venha a ser dado pelo Poder Legislativo, mantendo no Comitê Gestor da Internet as competências que já lhe são próprias. Somente com a tripartição dessas competências ou com algo que se assemelhe a esta ideia, é que a regulação pretendida (e necessária) poderá ser efetivamente alcançada para a preservar do indisponível direito de liberdade de expressão, inclusive analisando e ouvindo todos os atores envolvidos, como o caso das denominadas big techs.

Não sendo este o caminho adotado pelo Poder Legislativo brasileiro, continuar-se-á a submissão de tais casos específicos ao Poder Judiciário que, por sua vez, diante da complexidade e contingência da sociedade, terá a difícil e talvez impossível tarefa de "controlar/regular" os eventos de comunicação social. 

Cita-se, em reforço à ideia ora apresentada, o posicionamento externado pelo professor doutor Ulisses Viana, em sua tese de doutoramento, titulada "Horizontes das Justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico"15. Guardadas as devidas e distintas abordagens científicas, VIANA destaca que o exponencial aumento da complexidade e da contingência da sociedade, torna praticamente impossível a ideia de controle dos eventos de comunicação social (aqui trazendo para o campo da liberdade de expressão e regulação) por meio do sistema jurídico. Nesse corrimão é que, conjugando-se os raciocínios apresentados, pode-se afirmar que soluções político-legislativas devem, após o franco debate imparcial e qualificado, ser o caminho mais adequado para a preservação dos valores e contravalores, sempre tendo como norte o texto constitucional e a preservação do Estado Democrático de Direito.

Não há dúvida, portanto, que a regulação e a criação de um Sistema de Regulação, tem por objetivo assegurar o Estado Democrático de Direito e impedir que determinada força política tenha qualquer flerte ou diálogo com autoritarismo - exatamente por isso o Conselho tripartite, multisetorial, nomeado por diversos segmentos da sociedade, aprovado pelo Congresso Nacional, com mandato e, sobremaneira, autônomo entre si e perante o governo ou grupo político, é componente indispensável no texto legislativo.

A exclusão desse novo Conselho ou Sistema do texto legal, fruto de um possível acordo político realizado para tramitação do PL, poderá culminar numa regulação sem a necessária eficiência e efetividade e, ao fim, o que poderia/deveria ser resolvido no âmbito administrativo com a agilidade do desenvolvimento tecnológico, voltará às raias do Poder Judiciário.

___________________

1 FISS, Owen M. A ironia da Liberdade de Expressão. Estado, Regulação e Diversidade na Esfera Pública. Capítulo '. 33-65. 

2 DE LAURENTIIS, Lucas Catib; THOMAZINI, Fernanda Alonso. Liberdade de Expressão: Teorias, Fundamentos e Análise de Casos - publicado no https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/44121 

3 Transcrição de sua participação na 6ª Audiência Pública, realizada no dia 24/08/2021 - constante no relatório do substitutivo.

4 STF. HC 82424, Rel. p. Acórdão Min. Maurício Corrêa - Caso Elllwanger

5 BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 18ª Edição. São Paulo. Ed. Saraiva. 2022

6 (STF - ARE: 1347443 RJ, Relator: GILMAR MENDES, Data de Julgamento: 16/02/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-031 DIVULG 17/02/2023 PUBLIC 22/02/2023)

7 https://static.poder360.com.br/2023/05/proposta-pl-fake-news-oab.pdf 

8 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 201

9 LIMONGI, Fernando. Modelos de Legislativo: o Legislativo brasileiro em perspectiva comparada. Plenarium, ano 1, n.1, p. 41-56, 2004. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/alesp/biblioteca-digital/obra/?id=20979 

10 https://projetocolabora.com.br/ods16/pl-das-fake-news-divergencia-sobre-orgao-regulador-trava-votacao/

11 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.pdf 

12 https://portal.fgv.br/artigos/responsabilidade-e-transparencia-pratica-aprimoramentos-necessarios-ao-pl-26302020 

13 https://www.migalhas.com.br/quentes/433462/stf-redes-respondem-por-posts-mesmo-sem-ordem-judicial-veja-tese 

14 Manifestação da ANPD - https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/contribuicao-preliminar-para-o-debate-publico-sobre-a-lei-de-liberdade-responsabilidade-e-transparencia-na-internet 

15 https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-11062014-110504/publico/Tese_Horizontes_da_Justica_Ulisses_Schwarz_Viana.pdf

REFERENCIAS

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BRANCO, Paulo Gustavo Gonet; MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 18ª Edição. São Paulo. Ed. Saraiva. 2022.

DE LAURENTIIS, Lucas Catib; THOMAZINI, Fernanda Alonso. Liberdade de Expressão: Teorias, Fundamentos e Análise de Casos - publicado no https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/44121

FISS, Owen M. A ironia da liberdade de expressão: estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e prefácio de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.

LIMONGI, Fernando. Modelos de Legislativo: o Legislativo brasileiro em perspectiva comparada. Plenarium, ano 1, n.1, p. 41-56, 2004. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/alesp/biblioteca-digital/obra/?id=20979

OLIVEIRA, Wagner Vinicius. Resenha Crítica sobre o texto A ironia da liberdade de expressão: Estado, regulação e diversidade na esfera pública. Tradução e prefácio de Gustavo Binenbojm e Caio Mário da Silva Pereira Neto. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 - http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_informativo/bibli_inf_2006/Rev-FD-UFU_v.44_n.02.08.pdf   

STF. HC 82424, Rel. p. Acórdão Min. Maurício Corrêa - Caso Elllwanger

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STF - Inq: 4923 DF, Relator: ALEXANDRE DE MORAES, Data de Julgamento: 18/01/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-009 DIVULG 19/01/2023 PUBLIC 20/01/2023

STF - RE 1.037.396 e RE057258 (Temas 987 e 533) Relatores: DIAS TOFFOLI e LUIZ FUX, Data de Julgamento: 26/06/2025 - Informação à Sociedade constante no arquivo https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/Informac807a771oa768SociedadeArt19MCI_vRev.pdf 

VIANA, Ulisses Schwarz. Horizontes da justiça: complexidade e contingência no sistema jurídico. Orientador Tércio Sampaio Ferraz Jr. - São Paulo, 2013 - https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2139/tde-11062014-110504/publico/Tese_Horizontes_da_Justica_Ulisses_Schwarz_Viana.pdf 

Vinicius Barros Rezende

Vinicius Barros Rezende

Advogado. Sócio do escritório Ferreira e Chagas Advogados.

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