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O pêndulo da jurisprudência: A quem pertence a sombra da taxa de incêndio?

Análise da oscilação jurisprudencial do STF sobre taxa de incêndio: do rigor técnico-constitucional ao pragmatismo arrecadatório.

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Atualizado às 14:24

"A quem pertence a sombra de um asno?"

Certa vez, Demóstenes esforçava-se em vão para obter a atenção da assembleia ateniense sobre importantes negócios do Estado. Elevando a voz, anunciou que tinha uma história interessante a contar. Obteve assim o silêncio desejado.

"Um jovem alugou um burro para ir até Megara num dia quente de verão. No caminho, tanto ele quanto o dono do burro queriam descansar à sombra do animal. E começaram a empurrar-se mutuamente, cada um alegando que a sombra lhe pertencia. Dizia o burriqueiro que ele alugara o asno e não a sua sombra. Replicava o viajante que, tendo alugado o asno, alugara, por consequência, também a sua sombra."

A esta altura, Demóstenes se calou e fez menção de retirar-se. A multidão protestou, desejando ouvir o desfecho da história.

"Atenienses!", bradou então o orador, "que espécie de homens sois vós, que vos apegais à história da sombra de um burro e recusais tomar conhecimento de fatos graves que vos dizem respeito?"

Esta parábola ilustra o debate sobre a taxa de incêndio no STF. Enquanto nos perdemos em argumentos pragmáticos sobre necessidades arrecadatórias, deixamos de enfrentar a questão técnico-constitucional fundamental: a indivisibilidade do serviço público de combate a incêndios, elemento nuclear para a legitimidade da instituição de taxas no ordenamento jurídico brasileiro.

Introdução: O rigor técnico-constitucional em xeque

A trajetória jurisprudencial da taxa de incêndio no Supremo Tribunal Federal evidencia a tensão entre o pragmatismo arrecadatório e o rigor técnico-constitucional em matéria tributária. Este tributo, cobrado para custear serviços de prevenção e combate a incêndios, tornou-se o epicentro de um debate que questiona a própria integridade do conceito constitucional de taxa.

A Constituição Federal, em seu art. 145, II, estabelece os requisitos para a instituição de taxas: a prestação de serviços públicos específicos e divisíveis. Este último elemento - a divisibilidade - constitui o núcleo técnico da controvérsia e o ponto central sobre o qual o STF tem oscilado.

O presente artigo analisa as sucessivas mudanças de entendimento do STF sobre a constitucionalidade da taxa de incêndio, estruturando essa evolução em três fases distintas e demonstrando como o afastamento do rigor técnico-constitucional em favor de argumentos pragmáticos compromete a integridade do sistema tributário.

O ciclo pendular da jurisprudência: Três atos de uma mesma peça

Primeiro ato: Constitucionalidade Inicial e a Consolidação da Tese da Indivisibilidade (1999-2015)

Nossa análise inicia-se em 1999, quando o Plenário do STF, ao julgar o RE 206.777/SP, relatado pelo ministro Ilmar Galvão, manifestou-se pela constitucionalidade da cobrança da taxa de combate a sinistros. Naquele momento, a jurisprudência sinalizava a permissibilidade dessa exação, ainda que com ressalvas quanto à sua natureza jurídica.

Este entendimento evoluiu à medida que o Tribunal aprofundou a compreensão sobre os requisitos constitucionais para a instituição de taxas. A teoria clássica do Direito Tributário, representada por autores como Geraldo Ataliba e Roque Antonio Carrazza, estabelece que serviços públicos de caráter geral e indivisível devem ser custeados por impostos, não por taxas.

Em 2015, esse entendimento consolidou-se com o julgamento da ADI 1.942, relatada pelo ministro Edson Fachin:

"A jurisprudência do STF se consolidou no sentido de que a atividade de segurança pública é serviço público geral e indivisível, logo deve ser remunerada mediante imposto, isto é, viola o art. 145, II, do Texto Constitucional, a exigência de taxa para sua fruição." (ADI 1.942, rel. min. Edson Fachin, Plenário, Julgamento: 4/3/2015, DJe 26/5/2015).

Esta decisão unânime estabeleceu um marco interpretativo que aparentemente pacificava a questão, ao declarar a inconstitucionalidade da cobrança de taxas pelos serviços de combate a incêndios, em razão de sua natureza indivisível e seu evidente caráter genérico.

Segundo ato: A Inconstitucionalidade Reforçada (2015-2020)

O segundo momento deste ciclo jurisprudencial foi marcado pelo reforço da tese da inconstitucionalidade. Em 2020, no julgamento da ADI 4.411, sob relatoria do ministro Marco Aurélio, o STF reafirmou que:

"A atividade desenvolvida pelo Estado no âmbito da segurança pública é mantida ante impostos, sendo imprópria a substituição, para tal fim, de taxa." (ADI 4.411, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Julgamento: 7/8/2020 a 17/8/2020, DJe 24/9/2020)

Esta decisão consolidou a premissa da indivisibilidade do serviço de combate a incêndios, inviabilizando sua cobrança via taxa. O fundamento central residia na impossibilidade de individualizar o beneficiário do serviço, característica essencial para a instituição de taxas conforme o art. 145, II, da Constituição Federal.

Neste período, o STF também fixou a tese do Tema 16 da repercussão geral:

"A segurança pública, presentes a prevenção e o combate a incêndios, faz-se, no campo da atividade precípua, pela unidade da Federação, e, porque serviço essencial, tem como a viabilizá-la a arrecadação de impostos, não cabendo ao município a criação de taxa para tal fim." (RE 643.247, rel. min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 1/8/2017, DJe 19/12/2017)

Terceiro ato: A Nova Virada Jurisprudencial - Tema 1.282

O cenário de aparente pacificação foi abalado em 2025, com o julgamento do Tema 1.282 de repercussão geral: "Constitucionalidade das taxas de prevenção e combate a incêndios, busca, salvamento ou resgate instituídas por estados-membros".

O ministro Dias Toffoli, como relator do RE 1.417.155, propôs e viu prevalecer o entendimento pela constitucionalidade dessas taxas, em uma inversão da jurisprudência anteriormente consolidada. Em seu voto, apresentou argumentos que se distanciam do critério técnico-constitucional:

i) Fundamentação para novo julgamento: O ministro justificou a revisitação do tema pela "apertada maioria" da decisão anterior (Tema 16) e pela "substancial" mudança na composição da Corte. Esta contextualização evidencia um afastamento do princípio da segurança jurídica, subordinando a interpretação constitucional à composição momentânea do Tribunal.

ii) Interpretação pragmática: O voto recorreu a dados estatísticos e indicadores socioeconômicos. A menção à reportagem do Fantástico, à realidade dos Corpos de Bombeiros no Brasil (número de municípios sem unidades, carência de efetivo e equipamentos) serviu para construir uma narrativa de "necessidade premente" de arrecadação:

"A tributação é a principal fonte de receita do Estado e a manutenção das taxas questionadas é importantíssima para que o Corpo de Bombeiros... mantenha condições de prestar à população ou deixar à sua disposição seus relevantes serviços."

A tese fixada para o Tema 1.282 foi:

"São constitucionais as taxas estaduais pela utilização, efetiva ou potencial, dos serviços públicos de prevenção e combate a incêndios, busca, salvamento ou resgate prestados ao contribuinte ou postos a sua disposição pelos corpos de bombeiros militares."

Esta tese flexibiliza o conceito de divisibilidade para abarcar serviços que, por sua natureza, beneficiam indistintamente toda a coletividade.

O contraponto técnico-constitucional: A voz da divisibilidade

Em meio a essa guinada jurisprudencial, a voz do ministro Flávio Dino, embora vencida no Tema 1.282 juntamente com a da ministra Cármen Lúcia, articulou argumentos que representam a defesa da integridade constitucional do conceito de taxa:

a) A divisibilidade como critério constitucional inafastável

O cerne da divergência do ministro Dino residiu na inflexibilidade do conceito de divisibilidade:

"Não ponho em dúvida a importância dos bombeiros ou da sua renovação, porém me parece que isso não é suficiente para ultrapassar este problema. Para existir uma taxa, é preciso que haja compatibilidade com a Constituição. Esbarramos, a meu ver, em um ponto: o da divisibilidade. Podem existir taxas no Corpo de Bombeiros, desde que os serviços sejam divisíveis. Esse é o ponto. O debate não é se o Corpo de Bombeiros pode cobrar taxa ou não."

b) A "canibalização" do orçamento público e a subversão do sistema tributário

O ministro alertou para o "perigo fiscal" de se permitir que "serviços gerais passem a ser custeados por taxas", gerando uma "canibalização" do conceito de orçamento público. Esta observação evidencia como a flexibilização do conceito de divisibilidade pode comprometer a lógica do sistema tributário constitucional.

c) A regressividade como consequência da subversão técnica

A crítica mais incisiva do ministro Dino apontou para as consequências práticas da subversão técnico-constitucional. Ele argumentou que a taxa de incêndio, tal como instituída em muitos estados, com base em critérios como o tamanho do imóvel, tem "viés de imposto" e é regressiva:

"Do ponto de vista tributário, isso é regressivo, é contra os pobres. Imposto é, por sua índole, mais suscetível à progressividade do que taxa, porque não se afere a capacidade contributiva. É um serviço; e, tendencialmente, todos pagam a mesma coisa, significa dizer que os mais ricos pagam menos. Por isso, por um ditame de justiça fiscal, creio que devemos prestigiar o conceito tradicionalíssimo, na doutrina e na jurisprudência, de que serviços de caráter geral só podem ser custeados por impostos."

A provocação retórica é precisa: "Mas Dona Maria, que mora na Rocinha, onde não entra nem caminhão de bombeiro, pagará taxa? Realmente não me parece razoável."

As implicações do abandono do rigor técnico-constitucional

A flexibilização do conceito de divisibilidade no julgamento do Tema 1.282 compromete a integridade do sistema tributário brasileiro. O art. 145, II da Constituição Federal, complementado pelo art. 79 do CTN, estabelece requisitos objetivos para a instituição de taxas, entre os quais a divisibilidade figura como elemento nuclear.

O serviço de combate a incêndios, por sua natureza, beneficia indistintamente toda a coletividade circundante ao sinistro, caracterizando-se como serviço uti universi. A impossibilidade de individualização precisa dos beneficiários específicos evidencia sua incompatibilidade estrutural com o regime jurídico das taxas, que pressupõe referibilidade direta entre o serviço prestado e o contribuinte.

A oscilação jurisprudencial do STF nesta matéria compromete a segurança jurídica e a previsibilidade das relações tributárias. O princípio da proteção da confiança resta vulnerado quando alterações interpretativas são motivadas mais por considerações pragmáticas de ordem arrecadatória do que pela fidelidade ao texto constitucional.

A abordagem adotada no voto condutor do Tema 1.282 aproxima-se da controversa 'interpretação econômica' do Direito Tributário, subordinando a juridicidade do sistema a considerações metajurídicas. Este pragmatismo, ao flexibilizar conceitos técnico-constitucionais para atender demandas financeiras contingentes, compromete a coerência interna do sistema tributário constitucional.

A distinção entre tributos vinculados e não-vinculados constitui elemento estruturante do sistema tributário brasileiro. Sua relativização, ainda que motivada por finalidades aparentemente legítimas, subverte a lógica constitucional tributária. Como alertou o ministro Dino em seu voto divergente, a utilização de taxas para custear serviços indivisíveis gera distorções regressivas, penalizando desproporcionalmente os contribuintes economicamente menos favorecidos.

Conclusão: O imperativo do rigor técnico-constitucional

A trajetória jurisprudencial do STF sobre a taxa de incêndio evidencia os riscos do afastamento do rigor técnico-constitucional em favor de argumentos pragmáticos. A recente reviravolta jurisprudencial no Tema 1.282, motivada mais por considerações de ordem prática do que pela fidelidade ao texto constitucional, compromete a integridade do sistema tributário.

Retornando à parábola de Demóstenes, não podemos nos perder na discussão sobre "a sombra do asno" (as necessidades arrecadatórias momentâneas), negligenciando a "substância" (o rigor técnico-constitucional que deve nortear a interpretação do art. 145, II, da CF/88).

As vozes divergentes no Tema 1.282 constituem a defesa da técnica jurídica e da fidelidade ao texto constitucional. Suas advertências sobre a indivisibilidade intrínseca do serviço de combate a incêndios e as consequências sistêmicas da flexibilização desse conceito merecem atenção da comunidade jurídica.

A necessidade de financiamento adequado dos serviços públicos essenciais não pode justificar o desvirtuamento dos conceitos constitucionais. Alternativas dentro do marco constitucional, como a adequada distribuição das receitas de impostos ou mesmo a criação de contribuições específicas, devem ser exploradas antes de se comprometer a integridade técnica do sistema.

A divisibilidade, como requisito constitucional para a instituição de taxas, não é negociável. Sua observância rigorosa é condição para a preservação da coerência do sistema tributário e para a própria justiça fiscal.

__________

Referências

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005.

ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016.

BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Noeses, 2018.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 32ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1942/PA. Relator: Min. Edson Fachin. Tribunal Pleno. Julgamento: 18/12/2015. Publicação: 15/02/2016.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4411/MG. Relator: Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Julgamento: 18/08/2020. Publicação: 24/09/2020.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 206777/SP. Relator: Min. Ilmar Galvão. Tribunal Pleno. Julgamento: 25/02/1999. Publicação: 30/04/1999.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 1417155/RN. Repercussão Geral - Mérito (Tema 1282). Relator: Min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Julgamento: 26/03/2025. Publicação: 29/05/2025.

TIPKE, Klaus. Moral Tributária do Estado e dos Contribuintes. Tradução de Luiz Dória Furquim. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2012.

Jose Marcello Monteiro Gurgel

VIP Jose Marcello Monteiro Gurgel

Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Sócio do Marins Bertoldi Advogados.

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