Acórdão 1.490/25 do TCU: Ausência de política sancionadora integrada
Comentários acerca do acórdão 1490/25, do Tribunal de Contas da União, sob a perspectiva da insegurança jurídica produzida pela ausência de uma política sancionadora integrada.
segunda-feira, 11 de agosto de 2025
Atualizado às 14:19
A Constituição Federal de 1988 emerge como um marco do processo de redemocratização em um contexto histórico que atravessou diversos países, especialmente na Europa, após a Segunda Guerra Mundial, ao longo do século XX. Este fenômeno é representado pelo constitucionalismo, que se caracteriza pela criação de normas jurídicas fundamentadas em princípios que orientam a aplicação das leis, positivando direitos humanos e estabelecendo o Estado como seu principal garantidor.
Os princípios, elevados à categoria de direitos fundamentais pela Constituição, adquiriram força normativa, estabelecendo disposições e valores imperativos que devem ser observados, sob pena de incorrerem em ilegalidade. No âmbito do Direito Sancionador, em sua concepção ampla, começaram a surgir correntes doutrinárias que visam à institucionalização de seu regime jurídico, com especial ênfase nos princípios aplicáveis ao exercício do poder punitivo estatal.
No contexto do direito europeu, a teoria predominante é a da unidade do ius puniendi estatal, a qual propugna pela inexistência de diferenças substanciais entre as normas de Direito Penal e de Direito Administrativo Sancionador. Esta teoria defende a aplicação de princípios comuns a ambos os ramos do Direito, uma construção teórica que, desenvolvida pelos Tribunais Superiores europeus, rapidamente alcançou os Tribunais Constitucionais e, por fim, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos.1
No Brasil, o debate sobre a matéria ainda é incipiente. Embora o país esteja assistindo a uma expansão do poder punitivo, seja por meio do Direito Penal ou do Direito Administrativo, observa-se a ausência de um desenvolvimento teórico que estabeleça as bases para a aplicação do direito positivo, tornando pouco claros os princípios que orientam a ação estatal e as limitações materiais e processuais à atividade sancionadora.2
A ausência de uma teoria geral que norteie a aplicação das normas administrativo-sancionadoras vem acompanhada, no Brasil, por uma independência quase absoluta entre as instâncias de responsabilização, o que também é responsável por provocar fissuras no sistema de exercício do poder punitivo estatal e, ainda, produzir inseguranças jurídicas, notadamente pelo tratamento diverso que pode ser conferido a um mesmo fato.
Exemplo disso pode ser extraído do acórdão 1490/25, do Tribunal de Contas da União, a seguir ementado:
Responsabilidade. Declaração de inidoneidade. Documento falso. Atestado de capacidade técnica. Dolo. Fraude.
A mera apresentação de atestado de capacidade técnica com conteúdo falso caracteriza o ilícito de fraude à licitação, pois basta a evidenciação de dolo genérico da licitante para a declaração da inidoneidade com base no art. 46 da lei 8.443/1992, diferentemente do que ocorre na esfera penal, em que o crime de uso de documento falso exige dolo específico.3
No julgado, recentemente proferido, resta expressamente consignada a opção da Corte Federal de Contas pela independência das instâncias sancionadoras, fixando a dispensabilidade da comprovação do dolo específico para tipificação da infração administrativa de fraude à licitação, punida com penalidade de declaração de inidoneidade, ao contrário do que ocorre na esfera penal.
Isso porque, para a punição na esfera penal, deverá restar comprovado que a apresentação de atestado de capacidade técnica com conteúdo falso foi realizada especificamente com o intuito de fraudar a licitação, exigindo-se, portanto, um animus específico para a responsabilização.
Sem a pretensão de se aprofundar na discussão acerca da opção legislativa e jurisprudencial pela rejeição à teoria da unidade do ius puniendi estatal, fato é que a ausência de uma política sancionadora integrada pode levar, por exemplo, à absolvição na esfera penal concomitantemente à condenação na seara administrativa.
A insegurança jurídica provocada por essa situação, por sua vez, é tremenda. Não apenas por se desalinhar com o movimento constitucionalista que estabelece limites ao exercício do poder punitivo, como também por estar em desacordo com outras normas administrativo-sancionadoras, como é o caso da lei 8.429/1992, que assim dispõe, nos parágrafos do seu art. 21:
§ 3º As sentenças civis e penais produzirão efeitos em relação à ação de improbidade quando concluírem pela inexistência da conduta ou pela negativa da autoria.
§ 4º A absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no art. 386 do decreto-lei 3.689, de 3 de outubro de 1941 (CPP).
Vê-se que a lei de improbidade administrativa, por sua vez, consigna a interdependência entre as instâncias, prevendo expressamente a prejudicialidade externa das ações penais em face das ações de improbidade. No final, então, está-se diante de três tratamentos distintos capazes de serem dados para um mesmo fato, o que, para além da possível hiperpenalização, promove, invariavelmente, grave insegurança jurídica.
As discussões acerca da aplicabilidade da teoria da unidade do ius puniendi estatal no Brasil são, portanto, necessárias, assim como é urgente a elaboração de uma teoria geral do Direito Administrativo Sancionador, devendo-se refletir, futuramente, sobre a adoção de uma política sancionadora unificada, na tentativa de alinhamento aos ditames constitucionais e democráticos.
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1 OSÓRIO, Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, 5 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
2 COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito administrativo sancionador e direito penal: a necessidade de desenvolvimento de uma política sancionadora integrada. Direito administrativo sancionador, (Coord.) Luiz Mauricio Souza Blazeck; Laerte I. Marzagão Júnior, São Paulo: Ed. Quartier Latin do Brasil, 2014.
3 BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão 1490/2025. Plenário, Relator Ministro Benjamin Zymler. 09 jul. 2025.


