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Responsabilidade das instituições financeiras por fraudes digitais

O artigo analisa a responsabilidade civil bancária por fraudes digitais via pix, unindo Direito, ética e jurisprudência para defender segurança e proteção efetiva ao consumidor.

sábado, 16 de agosto de 2025

Atualizado em 15 de agosto de 2025 10:37

Cumpre iniciar pela constatação de que o Direito - à semelhança da gramática, entendida esta não como mero compêndio de regras estanques, mas como o sistema vivo que representa, em sua tessitura linguística, a identidade de um povo - não pode ser apartado das realidades sociotécnicas que o circundam.

Entre essas realidades, a revolução dos meios de pagamento eletrônico, com destaque para o sistema pix, irrompeu como fenômeno ao mesmo tempo catalisador e desestabilizador de estruturas tradicionais, impondo ao intérprete jurídico a tarefa de ressignificar, no espaço virtual, princípios cuja gênese remonta a paradigmas muito mais antigos.

Nessa arena - e não por acaso se evoca aqui a imagem ancestral de lugar de lutas, onde a igualdade formal e a desigualdade concreta se entrechocam sob o crivo do tempo -, consumidores e instituições financeiras se defrontam.

De um lado, o indivíduo comum, portador de vulnerabilidade estrutural e informacional; de outro, o aparato bancário, cuja função, para além da intermediação financeira, inclui o dever ético-jurídico de assegurar a integridade das operações que patrocina.

Tal dever, plasmado no art. 14 do CDC, não se reduz a um imperativo normativo, mas traduz, em chave semântica, a exigência de que a prestação do serviço inclua a segurança como elemento intrínseco, e não acessório, de sua completude.

A compreensão dessa obrigação demanda, portanto, uma leitura que não se restrinja à letra da lei, mas que alcance a fenomenologia subjacente: no ecossistema digital, a transação financeira não é mero deslocamento de valores, mas ato comunicacional complexo, cujo sentido se constrói no entrelaçamento de códigos técnicos, protocolos de segurança, confiança social e expectativas legítimas do usuário.

A falha em qualquer desses elos configura não apenas inadimplemento, mas quebra da confiança pública no sistema bancário como um todo - confiança esta que, uma vez erodida, afeta a própria coesão social.

Não se trata, pois, de responsabilizar o banco como bode expiatório por infortúnios inevitáveis, mas de reconhecer que, ao operar no mercado de consumo, a instituição financeira assume - voluntária e conscientemente - os riscos inerentes à sua atividade.

É a teoria do risco do empreendimento que ilumina esse raciocínio: quem aufere os frutos do negócio deve também suportar os ônus decorrentes de sua operação, salvo se provar a ocorrência de causa excludente inequivocamente demonstrada, como a culpa exclusiva do consumidor ou o fato de terceiro inevitável.

Sob a ótica jurisprudencial, o STJ tem reiterado que o nexo causal, no âmbito das fraudes eletrônicas, se estabelece quando a vulnerabilidade explorada pelo fraudador decorre, ainda que parcialmente, da insuficiência das barreiras de segurança providas pelo banco. A mera alegação de que o cliente "agiu de forma imprudente" não se basta como excludente, pois, na lógica protetiva do CDC, o ônus de provar tal conduta recai sobre a instituição - e essa prova há de ser robusta, sob pena de converter-se em subterfúgio retórico.

Essa dialética entre segurança tecnológica e tutela do consumidor não pode ser dissociada de uma dimensão ética mais ampla.

O aparato bancário, dotado de recursos técnicos e financeiros incomensuravelmente superiores aos do usuário comum, encontra-se na posição de guardião de um bem que transcende o patrimônio individual: a estabilidade e a credibilidade do sistema financeiro nacional.

Falhar nesse papel implica não apenas reparação monetária, mas restauração simbólica da confiança, cujo déficit corrói silenciosamente a tessitura social.

É aqui que se entrelaçam Direito, semântica e política, no sentido aristotélico de gestão do convívio.

A política dos meios de pagamento digitais não se reduz à fixação de normas e protocolos: envolve a conciliação entre a força centrífuga da inovação tecnológica - que expande possibilidades, mas também riscos - e a força centrípeta da justiça - que busca preservar a coesão e a previsibilidade das relações.

Nesse equilíbrio dinâmico, a responsabilidade civil das instituições financeiras por golpes online emerge não como mero mecanismo indenizatório, mas como instrumento de reafirmação da ordem jurídica diante de novos desafios.

Se a "ecologia profunda" de que falam Næss e Capra se ocupa de harmonizar homem e natureza, uma ecologia jurídica profunda deve preocupar-se em harmonizar tecnologia e dignidade humana.

No campo dos pagamentos eletrônicos, isso significa projetar, implementar e fiscalizar sistemas que não tratem a segurança como custo a ser minimizado, mas como núcleo essencial de sua existência.

O contrário equivaleria a instaurar, no espaço digital, um estado de natureza hobbesiano, onde cada usuário é deixado à própria sorte contra o engenho cada vez mais sofisticado dos fraudadores.

Em conclusão, a responsabilidade civil bancária por fraudes digitais não é mero instituto de direito privado, mas expressão concreta de um pacto social implícito: o de que a modernização dos instrumentos de pagamento não pode significar regressão na proteção do consumidor.

O banco que, diante de um golpe, se furta a ressarcir o cliente - salvo prova cabal de excludente - não apenas viola a lei, mas rompe o fio de confiança que sustenta a própria ideia de sistema financeiro.

É dever do intérprete e do aplicador do Direito, portanto, preservar esse fio, conscientes de que nele se entrelaçam não só interesses patrimoniais, mas a própria estabilidade ética, semântica e política da sociedade.

Paulo Vitor Faria da Encarnação

VIP Paulo Vitor Faria da Encarnação

Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.

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