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O direito de arrependimento nas compras online

Análise densa do direito de arrependimento nas compras online, unindo fundamentos legais, ética e jurisprudência para garantir equilíbrio no comércio eletrônico.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Atualizado às 11:44

Há institutos jurídicos que, mais do que simples previsões normativas, encarnam, em sua substância, uma função de reequilíbrio entre forças que, em regra, não se apresentam simétricas. O direito de arrependimento nas compras online, inscrito no art. 49 do CDC e detalhado pelo decreto 7.962/13, é um desses pontos de convergência entre a técnica legislativa e o imperativo ético-jurídico que tutela a parte vulnerável da relação de consumo. Ele não é apenas um prazo, não é apenas um procedimento: é uma manifestação concreta do reconhecimento de que, na arena do comércio eletrônico, o consumidor ingressa com desvantagem informacional e sensorial, e que, portanto, precisa de um espaço temporal - sete dias corridos - para refletir, desfazer ou confirmar a decisão tomada no instante da compra.

Assim como a Justiça, na metáfora clássica, atua como força centrípeta que busca recompor a ordem diante das tensões centrífugas da política e do mercado, o direito de arrependimento é um dispositivo que puxa de volta o equilíbrio, mitigando a velocidade impessoal das transações digitais com o tempo humano da reconsideração. A lei, nesse ponto, não atua como simples árbitro neutro: ela se insere como participante ativo da comunicação entre consumidor e fornecedor, impondo-lhe um canal de retorno, um contrafluxo à lógica unilateral da entrega e do pagamento.

A estrutura normativa é clara: o consumidor pode desistir do contrato no prazo de sete dias, contados da assinatura ou do recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial. A restituição deve ser imediata e integral, abrangendo o preço pago e os custos acessórios, como o frete. Aqui, a palavra "imediata" ganha releitura diante dos novos meios de pagamento, sobretudo o Pix, cuja instantaneidade expõe a inadequação de reembolsos morosos. A lógica integrativa exige que a velocidade da devolução acompanhe a do pagamento: se o dinheiro foi enviado em segundos, é eticamente e juridicamente exigível que retorne com a mesma celeridade.

A jurisprudência, nesse campo, tem reiterado o óbvio que, não raro, é contestado na prática: "O exercício do direito de arrependimento enseja o reembolso imediato e integral dos valores pagos, devidamente corrigidos" (STJ, REsp 930.351/SP). Os tribunais estaduais, por seu turno, têm reforçado que a responsabilidade não se fragmenta na cadeia de consumo: marketplaces, fornecedores e intermediadores financeiros se unem, sob a ótica objetiva e solidária, na obrigação de devolver ao consumidor o que dele receberam, direta ou indiretamente.

Mas a questão não se encerra no rito normativo. No plano ético e semântico, o direito de arrependimento é também um antídoto contra a conversão do comércio eletrônico em território de consumo irrefletido, impulsionado por estratégias de marketing que reduzem o tempo de decisão a cliques instantâneos. A possibilidade de desistência é, nesse sentido, uma reintrodução da temporalidade no processo de compra: um espaço para que o consumidor - liberto por sete dias da pressão econômica da irretratabilidade - possa comparar, avaliar, ou simplesmente recuar, sem que sobre ele paire a pecha de inadimplente ou inconsequente.

Esse espaço temporal é, em sua essência, a expressão de um princípio maior: o da confiança legítima. Ao permitir que o consumidor conheça o produto em condições reais, tocando-o, experimentando-o, a lei devolve à relação de consumo algo que a virtualidade havia subtraído. E, ao impor ao fornecedor o dever de reabsorver o bem e devolver o valor, restabelece o circuito da boa-fé objetiva, na qual ambas as partes reconhecem a legitimidade da revisão da vontade.

Não se pode esquecer que, ao descumprir essa regra, o fornecedor não apenas viola a lei, mas também incorre em prática abusiva e, em determinados casos, responde por danos morais, especialmente quando a resistência ao reembolso gera o que a doutrina contemporânea denomina desvio produtivo do consumidor: o desperdício de tempo útil na tentativa de solucionar administrativamente um problema que a lei já resolveu de antemão. Trata-se de um dano autônomo, reconhecido por diversos tribunais, que transcende o mero aborrecimento e ingressa na esfera do ilícito indenizável.

Diante desse panorama, a efetividade do direito de arrependimento exige mais do que a existência de norma e sanção: demanda a internalização, por parte dos fornecedores, de uma postura alinhada à ética das relações de consumo, em que a restituição célere e integral não é um favor, mas o cumprimento de um pacto legal e social. Do lado do consumidor, exige conhecimento e uso consciente do direito, não como instrumento de abuso, mas como salvaguarda legítima contra decisões precipitadas.

O comércio eletrônico, em constante expansão, é espaço de inovação tecnológica, mas também de riscos renovados. O direito de arrependimento, nessa arena, é o contrapeso que assegura que a velocidade não atropele a reflexão, que a técnica não sufoque a ética e que a conveniência não se sobreponha à Justiça. É, em suma, um lembrete normativo de que, mesmo no ambiente virtual, o consumo continua sendo uma relação humana - e, como tal, deve ser equilibrada, transparente e justa.

Paulo Vitor Faria da Encarnação

VIP Paulo Vitor Faria da Encarnação

Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.

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