Crise na SAF do Botafogo: Poder, veto e conflito de interesses
Disputa na SAF do Botafogo expõe os limites do modelo: Veto, poder e conflito de interesses entre Textor, Eagle e o clube originário em um embate jurídico-institucional.
terça-feira, 12 de agosto de 2025
Atualizado às 13:22
A partir de alegações ainda em apuração pelas mídias jornalísticas,1 a disputa entre Textor, Eagle Football Holding e a associação civil Botafogo levanta questionamentos sobre abuso de controle, conflito de interesses e o papel do voto afirmativo.
I. Introdução - Um clube dividido ao meio
Imagine uma companhia (Eagle) que deixou de confiar em seu antigo controlador (John Textor). Agora, imagine esse mesmo controlador tentando reaver o comando, amparado por parte do stakeholder institucional da Sociedade Anônima do Futebol (Botafogo - Clube Originário). É nesse cenário inusitado que se encontra hoje a SAF do Botafogo, em meio a uma disputa societária entre John Textor e a Eagle, em um dos episódios mais emblemáticos da recente história da SAF - Sociedade Anônima do Futebol.
Desde 2022, o Botafogo passou a operar sob o modelo da SAF, com o empresário norte-americano John Textor à frente da operação, por meio do grupo Eagle. Considerada uma das SAF's mais promissoras, tendo conquistado o título da Libertadores e Campeonato Brasileiro de 2024, o projeto enfrenta embate interno monumental, a Eagle, então sócia-controladora da SAF, estaria manifestando interesse em afastar John Textor da operação, após este se retirar do outro time do grupo, o Lyon, impedindo o rebaixamento para a 2ª Divisão da Liga Francesa;2 Textor, por sua vez, busca recomprar o clube com o apoio do Clube Originário (titular do chamado voto afirmativo).
O problema é que a Eagle não quer vender para Textor, enquanto a associação não aceitaria que a venda ocorra para qualquer outro terceiro. A Eagle não confia no ex-gestor no ramo de futebol e deseja sua exclusão total; já Textor, junto ao Clube Originário, manifesta receio de que sua saída definitiva represente a captura da SAF, de modo que a Eagle tome o controle totalmente.
O caso, que já vinha se desenrolando com tensões crescentes entre a Eagle e o empresário norte-americano John Textor - idealizador e primeiro gestor da SAF do Botafogo -ganhou contornos ainda mais surpreendentes com informações de que, segundo reportagens jornalísticas, há alegações de que John Textor estaria buscando recursos dando como garantia ações da SAF, o que, se confirmado, levantaria dúvidas sobre o uso de ativos do próprio clube em benefício pessoal; bem como a recente decisão judicial da 4ª vara empresarial do Rio de Janeiro. No último dia 1/8, o juiz congelou as ações da Eagle na SAF por conta de uma dívida de R$ 150 milhões com o clube, impedindo a empresa de vender ou transferir sua participação até que a pendência seja regularizada.
Nesse cabo de guerra, estão em jogo não apenas os rumos do Botafogo, mas também levanta questionamentos sobre o modelo da SAF: será que há poder demais concentrado em instrumentos pouco regulados e limites pouco definidos entre interesse econômico, função social e identidade institucional?
II. A SAF e o modelo do voto afirmativo: Proteção ou engessamento?
Criada pela lei 14.193/21, a SAF foi concebida como um modelo que aliaria governança corporativa, racionalidade financeira e responsabilidade institucional ao futebol brasileiro. Um dos seus pilares foi a concessão de um poder especial ao clube originário, o chamado voto afirmativo, que lhe permite vetar mudanças sensíveis, como a alteração de nome, escudo, cores, sede e até operações societárias estratégicas.3
No caso do Botafogo, em razão da negociação para constituição da SAF, esse voto afirmativo aparenta ter sido implementado, ampliando os direitos já concedidos na lei da SAF, nos termos do §5º do art. 2º, da lei da SAF.4
Ao tempo que o §3º do art. 2º, da lei da SAF, determina que haverá voto afirmativo do Clube Originário "enquanto as Ações de Classe A corresponderem a pelo menos 10% (dez por cento) do capital social votante ou do capital social total"; o Estatuto Social da SAF do Botafogo garante, observada a forma estabelecida no acordo de acionistas, o voto afirmativo ao Clube Originário enquanto ele detiver ao menos 1 ação ordinária de classe A em diversas matérias, incluídas, aquelas descritas no §3º do art. 2º, da lei da SAF.5
A importante decisão do legislador em garantir o voto afirmativo foi no intuito de preservar a identidade do clube frente a decisões que poderiam descaracterizá-lo. Ocorre que, no cenário atual da SAF do Botafogo, o poder de veto poderá se tornar um ponto de estrangulamento, eis que, pelas notícias circuladas, o Clube Originário pretende travar qualquer tipo de alienação de controle da SAF que não seja para John Textor.
Assim, quando o voto afirmativo é utilizado não como cláusula de proteção, mas como instrumento de favorecimento de um agente específico, surge os questionamentos: há risco de desvirtuamento do voto afirmativo contrário ao interesse da companhia? O que deveria servir à proteção institucional do futebol poderia se tornar mecanismo para forçar uma operação potencialmente sob efeitos da anulabilidade, em razão do potencial conflito de interesses?
III. O jogo duplo do conflito de interesses
No âmbito jurídico, há de se questionar se as acusações trocadas entre Eagle e John Textor, caso forem verdadeiras e comprovadas, poderiam gerar um verdadeiro conflito de interesses. Isso porque, a Eagle alega que John Textor, enquanto esteja à frente da operação da SAF do Botafogo, poderia macular números e prejudicar a avaliação da SAF no intuito de recomprar o controle da SAF. Diante disso, para negociar uma possível alienação de controle da SAF para John Textor, a Eagle estaria requerendo o afastamento dele do dia a dia da SAF.
Já Textor, afastado das decisões estratégicas na Eagle, denuncia uma suposta manobra da Eagle para excluí-lo definitivamente da SAF do Botafogo e facilitar negociações com terceiros para uma alienação de controle.
No meio desse impasse, o Clube Originário, que deveria atuar como garantidora institucional da identidade do clube, segundo reportagens, passaria a desempenhar um papel político: vetar qualquer transação que não envolva a recompra por John Textor.
Analisando os fatos levantados nas notícias, sobre os motivos da Eagle, de fato, poderia existir atuação conflituosa de Textor, atual Diretor da SAF, eis que, nos termos do art. 156, da lei das S.A., não poderia intervir em qualquer operação que estiver conflitado, o que, inicialmente, aparece ocorrer no presente caso. Contudo, é de se lembrar, ao analisar o art. 115 da lei das S.A., a Comissão de Valores Mobiliários decidiu que o conflito de interesses deveria ser comprovado, não podendo ser presumido.6
Dessa forma, a CVM se posicionou pelo conflito de interesses material, em que o mérito da deliberação deve ser analisado. Não se ignora que o art. 115 da lei das S.A. trata sobre conflito de interesses por acionistas, porém, o próprio § 1º do art. 156, da lei das S.A., também traz esse entendimento quando permite que o administrador poderia contratar com a companhia em condições "razoáveis ou equitativas, idênticas às que prevalecem no mercado ou em que a companhia contrataria com terceiros".
Assim, caberia à Eagle primeiramente demonstrar que John Textor estaria intervindo na operação de compra e venda das ações, bem como que os valores negociados não estariam razoáveis ou equanimes, com o valor de mercado. Por outro lado, não já estaria conflitado John Textor, quando, supostamente, estaria angariando fundos para comprar o Botafogo com os próprios ativos da SAF?
No caso do argumento de John Textor, que possuiria o apoio do Clube Originário, a preocupação seria que o afastamento da Diretoria seria a forma como a Eagle poderia afastar completamente Textor da operação. É de se questionar se tal posicionamento seria em conflito de interesses, tendo em vista que, caso a Eagle concorde em vender a sua participação para John Textor, poderá abrir uma margem para se discutir o potencial conflito de interesses na operação, decorrendo em um negócio jurídico feito sob vício de consentimento. Dessa forma, estaria sendo priorizado o dever de diligência tanto do diretor, quanto do controlador, para a realização de operação societária.
Contudo, caso esse movimento, conforme alegado por Textor, seja apenas para retirá-lo do dia a dia da SAF, haveria espaço para alegação de má-fé ou do próprio conflito de interesses, em que os administradores da Eagle atuaram de forma a priorizar os seus interesses ao da SAF e/ou da própria Eagle.
Por fim, sobre o posicionamento do Clube Originário, que travaria qualquer alienação de poder que não envolvesse a aquisição das ações da SAF pelo John Textor, analisando os últimos anos do Botafogo, embora compreensível do ponto de vista simbólico, dada a associação de John Textor a um ciclo vitorioso recente, a vinculação institucional entre o Clube Originário e um gestor sob questionamentos pode comprometer a neutralidade e a credibilidade de sua atuação como guardião da identidade do clube.
A princípio, não há ilícito que o Clube Originário utilize do seu voto afirmativo para travar alienação de controle, inclusive, para conseguir negociação que beneficie a SAF e o Botafogo. Contudo, o voto afirmativo utilizado em contrário ao interesse da companhia e para apoiar interessado que está, supostamente, colocando em risco a operação da própria SAF, pode ser inválido, em decorrência de abuso de minoria.
IV. Abuso de controle, abuso de minoria e poder econômico: Quem protege a companhia?
A lei das S.A., em seu art. 117, estabelece que o acionista controlador deve exercer seus poderes com lealdade, respeitando os interesses da companhia. O abuso de controle ocorre quando esse poder é utilizado de forma a favorecer interesses próprios em detrimento da sociedade, o que pode se manifestar por ações ou omissões.
No caso em análise, tanto a Eagle quanto Textor estão sob suspeita de condutas conflituosas: um por tentar negociar a venda sem transparência e possivelmente desfigurar o projeto esportivo; outro por tentar manter-se no controle apesar do desgaste institucional e possíveis irregularidades. Ambos têm interesse econômico direto no desfecho da disputa.
E o papel do Clube Originário? Pode uma entidade sem fins lucrativos, que, dentre suas responsabilidades, é preservar o futebol como patrimônio cultural, condicionar o futuro da SAF a uma única figura (o próprio diretor que está sendo contestado)?
Essa é, talvez, a tensão estrutural mais profunda do modelo da SAF: a tentativa de compatibilizar stakeholders orientados pelo lucro, como investidores e grupos empresariais, com stakeholders sem fins lucrativos, como as associações civis originárias, cuja atuação está ligada a dimensões afetivas, históricas e culturais do futebol. Enquanto os primeiros têm metas financeiras e horizontes de retorno, os segundos recebem outros estímulos, por exemplo da sua torcida, guiados por pertencimento, identidade coletiva e função social.
Esse arranjo, embora promissor, exige um desenho de governança bem atento à natureza assimétrica dos interesses em jogo. A experiência recente do Botafogo, somada a casos como o impasse na venda da SAF do Cruzeiro e a disputa societária entre Clube Originário e investidor na SAF do Vasco, demonstra que a ausência de mecanismos de mediação institucional eficazes pode resultar em crises de legitimidade e bloqueios operacionais que vão além do jurídico e tocam o simbólico.
V. Considerações finais: O futebol como ativo cultural e econômico
Assim, o caso Botafogo demonstra que apesar das evoluções na governança proporcionadas pela SAF, esta ainda é vulnerável à captura política, econômica e simbólica. A disputa entre Textor, Eagle e Clube Originário mostra que o poder na SAF não é apenas um dado jurídico: é um fenômeno social, construído por alianças, percepções e manipulações de legitimidade.
Ao mesmo tempo, o episódio traz uma lição importante: a governança do futebol não pode ser reduzida a cláusulas contratuais ou a poderes estatutários. O futebol é um fenômeno cultural de impacto nacional e internacional, sendo que sua estruturação empresarial deve refletir essa complexidade.
A associação civil Botafogo não deve se converter em obstáculo à operação da SAF, tampouco pode se tornar apêndice de um controlador. Ela deve exercer seu poder com responsabilidade institucional, mediando os interesses privados em nome do bem coletivo.
O desafio agora é encontrar um novo equilíbrio: onde o time não seja refém nem de águias, nem de velhos donos.
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1 Contexto fático retirado das notícias:
SANTANA, Sergio. Textor oficializa proposta para recomprar o Botafogo e separar o clube da Eagle. Globo Esporte, Rio de Janeiro, 30 jul. 2025. Disponível em: site da Globo. Acesso em: 7 ago. 2025
MIGALHAS. Juiz congela ações da Eagle por dívida de R$?150 milhões com Botafogo. Quentes - Migalhas, 1 ago. 2025. Disponível em: Migalhas. Acesso em: 7 ago. 2025
XAVIER, Guilherme. Afinal, o Botafogo é de John Textor ou da Eagle? Entenda o imbróglio. CNN Brasil, 3 ago. 2025. Disponível em: CNN Brasil. Acesso em: 7 ago. 2025
2 SANTANA, Sérgio. Textor renuncia ao comando do Lyon, nomeia executivos e decide dar mais atenção ao Botafogo. Globo, 30 jun. 2025. Disponível em: site da Globo. Acesso em: 7 ago. 2025.
ESPN BRASIL. Lyon reverte decisão com plano de R$?1,2 bilhão e não será rebaixado no Campeonato Francês. ESPN Brasil, 9 jul. 2025. Disponível em: site da ESPN Brasil. Acesso em: 7 ago. 2025
3 Art. 2º, da Lei da SAF. A Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:
§ 3º Enquanto as ações ordinárias da classe A corresponderem a pelo menos 10% (dez por cento) do capital social votante ou do capital social total, o voto afirmativo do seu titular no âmbito da assembleia geral será condição necessária para a Sociedade Anônima do Futebol deliberar sobre:
I - alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pessoa jurídica original para formação do capital social;
II - qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse;
III - dissolução, liquidação e extinção; e
IV - participação em competição desportiva sobre a qual dispõe o art. 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998.
§ 4º Além de outras matérias previstas no estatuto da Sociedade Anônima do Futebol, depende da concordância do titular das ações ordinárias da classe A, independentemente do percentual da participação no capital votante ou social, a deliberação, em qualquer órgão societário, sobre as seguintes matérias:
I - alteração da denominação;
II - modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e
III - mudança da sede para outro Município.
4 Art. 2º, da Lei da SAF ... § 5º O estatuto da Sociedade Anônima do Futebol constituída por clube ou pessoa jurídica original pode prever outros direitos para o titular das ações ordinárias da classe A.
5 Artigo 9º, do Estatuto Social da S.A.F. Botafogo. ... Parágrafo Segundo: A aprovação das seguintes matérias dependerá do voto afirmativo do detentor de ações ordinárias classe A, enquanto o BFR for detentor de ao menos 1 (uma) ação ordinária classe A, na forma estabelecida no Acordo de Acionistas:
(i) Alteração da denominação da Companhia;
(ii) Modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional gerida pela Companhia, incluindo escudo, bandeira, flâmula, símbolo, brasão, marca, alcunha, hino, cores e uniformes;
(iii) Mudança (a) da sede da Companhia para outro município e/ou (b) da sede da equipe de futebol profissional gerida pela Companhia para outro município, exceto em relação à Região Metropolitana do Rio de Janeiro;
(iv) Alteração do objeto social da Companhia;
(v) A destituição, substituição ou indicação, pelo BFR, do(s) membro(s) do Conselho de Administração, e do membro do Conselho Fiscal, indicados pelo BFR, conforme previsto no Acordo de Acionistas;
(vi) Alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido, cedido e/ou licenciado pelo BFR para formação do capital social da Companhia na forma do Acordo de Acionistas;
(vii) Qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade pela Companhia, incorporação da Companhia por outra sociedade;
(viii) Dissolução, liquidação e extinção da Companhia, ou qualquer pedido de falência ou reorganização judicial ou extrajudicial pela Companhia;
(ix) Participação em competição desportiva sobre a qual dispõe o art. 20 da Lei nº 9.615/98;
(x) Aumentos de capital oriundos de Outras Contribuições antes da quitação integral das Parcelas Futuras pelo Investidor (conforme definições de "Other Fundings" e "Future Installments" no Acordo de Acionistas);
(xi) Qualquer alteração nos direitos ou características das ações atualmente emitidas pela Companhia;
(xii) A emissão ou criação de novas classes ou espécies de ações com direitos preferenciais sobre dividendos vis-à-vis os direitos a dividendos das ações ordinárias classe A;
(xiii) Qualquer distribuição de dividendos de forma diversa da regra prevista no Acordo de Acionistas;
(xiv) Qualquer transformação da Companhia de uma Sociedade Anônima do Futebol em outro tipo societário;
(xv) Qualquer alteração no número de membros que compõem o Conselho de Administração, nas funções e competências do Conselho de Administração, nas matérias sujeitas à aprovação do Conselho de Administração, ou nas regras relativas à convocação e realização de reuniões do Conselho de Administração que prevejam períodos mais curtos que as regras em vigor;
(xvi) Qualquer redução de capital, resgate ou amortização de ações; e
(xvii) A prestação, pela Companhia ou qualquer de suas Controladoras (conforme definição de "Control" no Acordo de Acionistas), de garantias ou outros colaterais em relação a obrigações de terceiros (exceto obrigações da Companhia ou de suas Controladas).
6 PAS CVM SEI 19957.003175/2020-50 e PAS CVM SEI 19957.004392/2020-67.


