Proliferação do dolo: Confusão conceitual e crise na imputação
Neste artigo, defendo que o dolo é apenas a vontade inequívoca de praticar o fato típico, rejeitando sua fragmentação em espécies e intenções presumidas.
terça-feira, 12 de agosto de 2025
Atualizado às 10:29
A dogmática penal parece ter assumido, em alguns de seus ramos, o compromisso de complicar o que a racionalidade jurídica exige que seja simples. Um dos exemplos mais notórios dessa tendência é a multiplicação das chamadas "espécies de dolo", criadas ao longo dos séculos como se fossem variações legítimas de um mesmo conceito. Ao invés de consolidar o dolo como expressão unívoca da vontade de praticar o fato típico, optou-se por classificá-lo em uma miríade de subtipos: dolo direto, indireto, determinado, indeterminado, de ímpeto, deliberado, genérico, específico, eventual, entre outros. A consequência disso não é apenas uma crise conceitual, mas uma verdadeira desestruturação do sistema de imputação.
A origem dessa proliferação está, em grande parte, na tentativa equivocada de explicar os motivos determinantes da ação como se fossem elementos estruturais do dolo. Essa confusão é perceptível, por exemplo, em autores como Enrico Ferri, que dedicou uma parte considerável de sua obra à distinção entre dolus bonus e dolus malus, dolo ordinário e dolo deliberado, dolo aberto e dolo dissimulado, dolo de dano e dolo de perigo. Todas essas categorias partem da mesma premissa: a de que é possível inferir nuances volitivas a partir do contexto fático ou moral da conduta.
Acontece que essas classificações não alteram, em nada, a natureza do dolo como vontade. Elas apenas desfiguram o conceito, submetendo-o à subjetividade do intérprete. A vontade de delinquir, e isso precisa ser dito com clareza, não admite gradação. Ou há vontade, ou não há. O dolo é um conceito jurídico-penal, e não psicológico. Ele não descreve estados emocionais, mas condições normativas da imputação. Portanto, os motivos determinantes, ainda que relevantes para a dosimetria da pena, não integram o dolo. Confundir esses planos é comprometer a própria estrutura do tipo penal.
Ferri, por exemplo, ao distinguir entre dolo de ímpeto e dolo premeditado, sugere que o primeiro revela menor periculosidade do que o segundo. Mas a periculosidade não define a natureza do dolo. Ela pode, no máximo, influenciar a resposta punitiva. O mesmo se aplica à distinção entre dolo determinado e indeterminado. Em ambos os casos, o que há é vontade. A forma como essa vontade se manifesta não altera sua essência como critério de imputação.
A multiplicação de espécies de dolo torna a imputação penal um terreno instável. Como o juiz deve decidir entre dolo direto ou indireto? Entre dolo específico ou genérico? Entre dolo deliberado ou de ímpeto? Essas categorias não oferecem critérios objetivos. Elas funcionam como cláusulas abertas, frequentemente usadas para legitimar decisões construídas a partir de juízos morais, e não da ação concretamente praticada. O Direito Penal deixa, assim, de operar com base na legalidade estrita e passa a navegar no oceano da casuística.
Ainda mais problemática é a ideia de que certos resultados acessórios, por decorrerem fisicamente de um ato doloso principal, também devem ser considerados dolosos. É o que denomino de "dolo osmótico": uma forma de imputar, por osmose, a vontade em relação a consequências que jamais foram queridas pelo agente. Esse é o erro central do dolo eventual, que transforma previsibilidade em intenção e, com isso, permite que condutas imprudentes sejam punidas como dolosas, bastando a suposição de que o agente "aceitou" o risco.
Ora, se o agente quis um resultado, há dolo. Se não quis, mas poderia ter previsto, há imprudência. O que não pode haver, sob pena de ruína da imputação penal, é a criação de um terceiro gênero: uma vontade presumida por consequência física. O Direito Penal não pode admitir imputações baseadas em projeções do que o agente "deveria ter assumido". A vontade é um dado normativo, não uma hipótese de intenção.
Essa multiplicação de espécies também fragiliza a atuação do Ministério Público e da defesa. Se o tipo penal exige dolo, mas a doutrina permite sua fragmentação em categorias fluídas, como será possível delimitar os elementos da acusação ou organizar uma estratégia defensiva clara? A segurança jurídica exige que os critérios de imputação sejam objetivos e verificáveis. A confusão conceitual gerada por essa proliferação dogmática compromete essa exigência de previsibilidade e mina a legitimidade do processo penal.
A Teoria Significativa da Imputação rejeita integralmente essa fragmentação. O dolo é, nela, entendido como a manifestação inequívoca da vontade de realizar a ação típica. Apenas isso. Ele não comporta gradações, subtipos ou intenções secundárias. Quando a conduta não revela essa vontade, ainda que o resultado fosse previsível, a imputação deve recair sobre a imprudência, e esta, sim, pode ser graduada conforme a gravidade do descuido. Mas tratar a vontade como variável não é apenas um erro teórico: é uma violação do princípio da culpabilidade.
É preciso retomar a simplicidade conceitual que deu origem ao Direito Penal. Como demonstro em minha obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación, o problema da imputação não está na vontade do agente, mas na tentativa da doutrina de moldá-la conforme expectativas sociais ou políticas criminais. Dolo não é moralidade. Dolo não é motivo. Dolo é vontade livre e consciente de realizar um fato típico. Qualquer outra concepção compromete a coerência do sistema e reforça a seletividade punitiva do Estado.
A proliferação das espécies de dolo, ao invés de iluminar o conceito, obscurece sua função. Ela é sintoma de uma dogmática que perdeu o compromisso com a objetividade e passou a confundir técnica com retórica. É hora de abandonar essas categorias artificiais e recuperar o dolo como o que ele sempre foi, e deve continuar sendo: a vontade clara de lesar um bem jurídico protegido.
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


