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A responsabilidade civil pelo vazamento de dados pessoais

Análise jurídico-hermenêutica da responsabilidade civil por vazamento de dados, com base na LGPD e precedentes do STF e STJ, entre 2023 e 2025.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

Atualizado às 11:22

1. Introdução

A consagração constitucional da privacidade e do sigilo de dados, especialmente nos incisos X e XII do art. 5.º da Constituição da República, representa um marco normativo que, no contexto contemporâneo, revela-se insuficiente sem o acréscimo de uma disciplina jurídica específica para o tratamento de informações pessoais. O advento da lei 13.709/18 (LGPD) materializa essa resposta normativa, atribuindo densidade operativa ao direito fundamental à proteção de dados.

Não obstante, a mera positivação legislativa não elimina a necessidade de reconfiguração hermenêutica para integrar o novo regime ao estilo jurídico brasileiro, de matriz romano-germânica, centrado na lei como fonte primária.

A responsabilidade civil por vazamento de dados emerge, assim, como campo privilegiado para observar as tensões entre tradição e inovação normativa, bem como os desafios para estabilizar interpretações à luz da integridade do sistema jurídico.

2. Historicidade e problematização conceitual

No cenário pré-LGPD, a tutela contra vazamentos de dados ancorava-se em dispositivos constitucionais, na lei 12.965/14 (marco civil da internet) e nas cláusulas gerais de responsabilidade civil dos arts. 186 e 927 do CC. Essa dispersão normativa favorecia soluções casuísticas e, por vezes, contraditórias.

A LGPD, ao positivar deveres específicos de segurança e transparência e ao instituir um regime sancionatório próprio, desloca o eixo interpretativo para a lógica da prevenção e da reparação integral. A responsabilidade objetiva do controlador, prevista no art. 42, reforça a ideia de que a ocorrência do vazamento, associada ao nexo causal, basta para legitimar a indenização, dispensando a comprovação do prejuízo moral - entendimento consolidado no Tema 1.199 do STJ.

Todavia, esse modelo, embora tecnicamente robusto, carece de sedimentação hermenêutica que o compatibilize com a tradição brasileira de tratamento do dano moral. O risco reside em transpor, de modo acrítico, conceitos da doutrina estrangeira sem a devida adaptação ao contexto normativo-cultural, gerando interpretações assimétricas e instabilidade jurisprudencial.

3. Análise normativa e jurisprudencial recente

A Constituição da República, ao garantir a inviolabilidade da intimidade e do sigilo de dados, estabelece o fundamento axiológico da proteção informacional. A LGPD concretiza esse mandamento, definindo dados pessoais e sensíveis, disciplinando seu tratamento e impondo obrigações ao controlador, inclusive a adoção de medidas de segurança aptas a prevenir incidentes (art. 46).

O STJ, no julgamento do Tema 1.199/DF (2025), fixou tese no sentido de que a comprovação do vazamento e do nexo causal autoriza a indenização por danos morais, individuais ou coletivos, independentemente da demonstração do efetivo prejuízo, por se tratar de dano in re ipsa. O STF, na ADIn 6.387/DF (2023), reconheceu a constitucionalidade integral da LGPD, reafirmando a vedação ao retrocesso na proteção à privacidade.

Essa convergência jurisprudencial fortalece a integridade do sistema, conferindo previsibilidade às decisões e reforçando o caráter fundamental do direito à proteção de dados. Ao mesmo tempo, impõe ao intérprete a tarefa de harmonizar a aplicação da responsabilidade objetiva com o devido processo legal e com os parâmetros de proporcionalidade na fixação do quantum indenizatório.

Considerações finais

A responsabilidade civil por vazamento de dados, tal como delineada na legislação e na jurisprudência recentes, representa um avanço substantivo na proteção de direitos fundamentais na sociedade da informação. Entretanto, a consolidação desse paradigma exige mais que a mera aplicação literal da LGPD: requer a internalização hermenêutica de seus princípios à luz da tradição jurídica nacional, evitando transposições automáticas de categorias alienígenas e garantindo decisões fundamentadas que expressem coerência, estabilidade e integridade.

A experiência recente demonstra que a efetividade da tutela de dados não depende apenas do aparato sancionatório, mas do compromisso institucional com a motivação qualificada das decisões, que deve espelhar não apenas a letra da lei, mas a melhor interpretação possível para o caso concreto, em conformidade com os princípios constitucionais e com a integridade do sistema jurídico.

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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 8 ago. 2025.

BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 59, 15 ago. 2018.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema 1.199/DF. Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Julgado em 27 maio 2025. Disponível em: . Acesso em: 8 ago. 2025.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 6.387/DF. Rel. Min. Rosa Weber. Julgado em 10 mar. 2023. Disponível em: . Acesso em: 8 ago. 2025.

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Responsabilidade civil. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.

Paulo Vitor Faria da Encarnação

VIP Paulo Vitor Faria da Encarnação

Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.

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