Lei geral de licenciamento ambiental: O veto que aumentou a insegurança jurídica
Veto presidencial ao CAR pendente na lei de licenciamento ambiental deixa milhões de produtores rurais sem proteção legal enquanto aguardam análise estatal que pode levar anos.
quarta-feira, 13 de agosto de 2025
Atualizado às 13:34
A sanção da lei geral de licenciamento ambiental com veto ao dispositivo que dispensava licença ambiental para propriedades com CAR pendente de análise criou situação regulatória mais complexa e instável que o cenário anterior. O que deveria representar avanço na desburocratização transformou-se em fonte adicional de incerteza para o setor agropecuário brasileiro.
O Cadastro Ambiental Rural, criado em 2012 com o Código Florestal, constitui retrato dinâmico da propriedade rural. Diferentemente de documentos estáticos, o CAR exige atualização constante conforme a propriedade evolui em sua gestão territorial. Esta característica intrínseca ao sistema gera alternância permanente entre estados de homologação e pendência que a lei vetada desconsiderou completamente.
Pelo espírito inicial do legislador, a dispensa de licenciamento para as atividades previstas no art. 9º da nova norma decorreria da simples inscrição no CAR, com a responsabilização do declarante estabelecida pelos decretos 7.830/12 e 8.235/14. O sistema autodeclaratório prescindiria de homologação prévia para produzir seus efeitos jurídicos plenos, como já estava previsto nas normas. Entretanto, o veto presidencial à alínea 'a' do art. 9, inciso I, que dispensaria o licenciamento para cadastros pendentes de análise, evidencia a contradição administrativa: reconhece-se formalmente o caráter autodeclaratório do sistema, mas nega-se sua eficácia prática ao condicionar benefícios legais - dispensa de licença ou outros benefícios - à validação que o próprio Estado se mostra estruturalmente incapaz de realizar.
Tomemos exemplo concreto para evidenciar a irracionalidade criada. Um produtor rural possui propriedade com CAR devidamente homologado, conferindo-lhe dispensa de licenciamento ambiental nos termos do art. 9º da nova lei. Esta propriedade possui área de vegetação nativa passível de conversão legal para uso alternativo do solo. O produtor obtém autorização de supressão do órgão competente e realiza a conversão dentro dos parâmetros legais. Cumprindo sua obrigação, retifica o CAR para refletir a nova configuração territorial da propriedade. Automaticamente, o cadastro retorna ao status "pendente de homologação" para nova análise pelo órgão ambiental.
Neste momento, pela interpretação literal da lei vetada, a propriedade perde a proteção da dispensa de licenciamento. O mesmo produtor, na mesma propriedade, exercendo a mesma atividade agropecuária, passa a estar sujeito a embargo por ausência de licença ambiental. Não houve alteração na atividade produtiva, não surgiu novo risco ambiental, não se modificou o cumprimento das obrigações do Código Florestal. Mudou apenas o status burocrático de um cadastro em análise.
Esta oscilação entre regularidade e irregularidade conforme o momento processual do CAR revela incoerência fundamental do sistema criado. A propriedade transitará indefinidamente entre situações de dispensa e exigência de licenciamento conforme realize atualizações cadastrais rotineiras. Uma simples correção de coordenadas geográficas, ajuste de perímetro ou atualização de confrontantes pode deflagrar novo período de vulnerabilidade jurídica até que o órgão ambiental processe a alteração.
O veto agrava situação que já era problemática. Antes da lei, havia discussão doutrinária e jurisprudencial sobre necessidade de licenciamento para atividades agropecuárias básicas. Alguns Estados exigiam, outros dispensavam, outros tinham procedimento simplificado, criando ambiente de incerteza que demandava uniformização nacional. A nova lei pretendeu resolver esta questão estabelecendo dispensa expressa condicionada a critérios objetivos. Com o veto, criou-se sistema híbrido que amplia a insegurança ao estabelecer proteção intermitente baseada em variável processual alheia ao controle do produtor.
A decisão governamental de dispensar licenciamento para atividades rurais em propriedades com CAR homologado revela reconhecimento implícito pelo governo de que a verificação do cumprimento do Código Florestal satisfaz as necessidades de controle ambiental. O licenciamento ambiental tradicionalmente avalia potencial poluidor e degradador da atividade, estabelecendo medidas mitigadoras e compensatórias. Ao dispensá-lo para agricultura e pecuária em propriedades florestalmente regulares, o governo admite que estas atividades, quando respeitados os limites territoriais de APPs e reserva legal, não demandam controles adicionais, já possuindo o ordenamento mecanismos de controle efetivo.
Esta admissão tácita torna ainda mais incompreensível o veto ao CAR pendente. Se o governo reconhece que a conformidade florestal é suficiente para dispensar o licenciamento, por que condicionar esta dispensa à velocidade de processamento administrativo dos órgãos estaduais? O produtor com CAR pendente há cinco anos está cumprindo as mesmas obrigações florestais que aquele com CAR homologado. A diferença reside exclusivamente na capacidade operacional do órgão analisador, variável completamente dissociada do risco ambiental da atividade. Além de gerar quebra de isonomia entre entes e administrados, aumenta a insegurança jurídica.
A nova sistemática prejudica especialmente produtores que buscam adequação ambiental progressiva. Propriedades com passivos sendo regularizados através de PRADAs, recomposição de APPs ou reconstituição de reserva legal precisarão atualizar constantemente seus CARs conforme avancem na recuperação. Cada atualização gerará novo período de pendência e consequente perda de proteção legal. O produtor que busca regularização ambiental ativa será mais penalizado que aquele que mantém situação estática, mesmo que irregular.
Estados com maior déficit de análise acumularão prejuízos econômicos crescentes. Mato Grosso possui aproximadamente 150 mil CARs aguardando homologação. Pará ultrapassa 350 mil. Amazonas sequer divulga números confiáveis dado o atraso processual. Produtores destes Estados permanecerão indefinidamente vulneráveis a embargos enquanto produtores de Estados com melhor estrutura administrativa gozarão de segurança jurídica plena. Esta disparidade federativa gera distorções concorrenciais que afetam a competitividade regional.
O impacto no acesso ao crédito rural será devastador. Instituições financeiras exigem garantias de regularidade ambiental para liberação de financiamentos. Com CAR pendente e possível ausência de licença, bancos restringirão crédito ou elevarão taxas para compensar risco jurídico adicional. O custo do veto será repassado ao produtor através de spreads bancários maiores, reduzindo margem de lucro e capacidade de investimento do setor.
Contratos de arrendamento e parcerias rurais enfrentarão obstáculos adicionais. Arrendatários evitarão propriedades com CAR pendente dado o risco de embargo durante a vigência contratual. Proprietários terão dificuldade em valorizar economicamente suas terras enquanto aguardam homologação que pode nunca ocorrer dado o estoque crescente de processos nos órgãos ambientais.
A comercialização da produção sofrerá restrições progressivas. Tradings e agroindústrias implementam políticas de rastreabilidade que exigem comprovação de origem legal da produção. Propriedades com CAR pendente enfrentarão dificuldades para integrar cadeias produtivas que demandam certificação ambiental. O veto criou categoria de produtores em limbo regulatório que não conseguem comprovar regularidade mesmo cumprindo todas as obrigações legais.
O cenário internacional agrava as consequências. Mercados importadores europeus e asiáticos intensificam exigências de conformidade ambiental. O Regulamento Europeu de Produtos Livres de Desmatamento demanda comprovação de legalidade da produção. Propriedades com CAR pendente não conseguirão atender requisitos de certificação, perdendo acesso a mercados premium que remuneram melhor a produção sustentável.
A judicialização será caminho inevitável. Produtores prejudicados buscarão tutela judicial através de mandados de segurança preventivos, ações declaratórias de regularidade e indenizações por embargo indevido. O Judiciário será sobrecarregado com demandas que poderiam ser evitadas com solução legislativa adequada. Decisões conflitantes entre diferentes tribunais ampliarão insegurança jurídica que a lei deveria eliminar.
O veto representa vitória do formalismo burocrático sobre a racionalidade regulatória. Mantém-se ficção de controle ambiental através de controle rígido e burocrático sobre as propriedades do Brasil, que somam quase 8 milhões. Produtores cumpridores da lei são penalizados pela ineficiência estatal enquanto degradadores reais permanecem impunes pela mesma incapacidade fiscalizatória que impede análise dos CARs.
A mensagem transmitida ao setor produtivo é a mesma: o governo reconhece que atividades agropecuárias em conformidade florestal não necessitam licenciamento, mas condiciona esta dispensa a variável processual fora do controle do produtor: a homologação que está na mão do Estado. Cria-se loteria regulatória onde a segurança jurídica depende da sorte de estar o Estado com capacidade administrativa adequada e do momento processual do cadastro quando da fiscalização.
O resultado final contraria completamente os objetivos declarados da lei. Ao invés de simplificação e racionalização, obteve-se complexificação e irracionalidade. Ao invés de segurança jurídica, ampliou-se incerteza. Ao invés de desburocratização, criou-se burocracia intermitente mais nociva que a anterior. O veto transformou avanço potencial em retrocesso efetivo, perpetuando e agravando problemas que a lei deveria resolver.


