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A imprudência consciente como categoria classificável

Classificar a imprudência consciente em graus garante justiça penal, evita ficções como o dolo eventual e mantém critérios objetivos entre previsibilidade e responsabilidade.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Atualizado às 15:14

A distinção entre dolo e imprudência é um dos pilares mais antigos e fundamentais da dogmática penal. Contudo, enquanto o dolo deve ser compreendido como uma categoria unitária - indivisível por natureza, pois é expressão da vontade livre e consciente de realizar o tipo penal - a imprudência, por sua vez, admite uma classificação legítima e necessária. A razão é simples: a imprudência consciente não possui vontade, mas previsibilidade. E a previsibilidade, diferentemente da intenção, é passível de gradação.

Ao longo da história, os penalistas buscaram distinguir os comportamentos imprudentes conscientes com base na intensidade da omissão do cuidado devido. Essa preocupação já era perceptível nos romanos, que dividiam a culpa em ex ignorantia e ex lascivia, e se intensificou com autores como Carrara, que sistematizou a imprudência em três graus: grave, leve e levíssima. Essa tripartição, baseada na capacidade de previsão do resultado, é um exemplo de como a imprudência consciente pode - e deve - ser classificada conforme os critérios da diligência esperada.

A ausência de vontade não impede a imputação penal, mas exige outro tipo de aferição: o grau de violação ao dever de cuidado. Enquanto o dolo pressupõe liberdade, a imprudência consciente repousa na falha da cautela, que pode variar conforme o contexto. Por isso, a classificação da imprudência consciente está em perfeita sintonia com as exigências de um Direito Penal racional e democrático: permite mensurar a gravidade da conduta sem recorrer a ficções subjetivas.

Essa sistematização objetiva da imprudência consciente é, inclusive, essencial para a justiça penal. Não é justo tratar da mesma forma o motorista que ultrapassa em alta velocidade e causa acidente, e o profissional da saúde que, por cansaço, negligencia um protocolo. Ambos agiram sem dolo. Mas a intensidade da imprudência consciente, o grau de previsibilidade do dano, a natureza do risco assumido - tudo isso precisa ser considerado. Classificar a imprudência consciente, nesse sentido, não é um artifício teórico, mas uma exigência de justiça material.

Ao contrário do que ocorre com o dolo - que foi indevidamente fragmentado em múltiplas "espécies" - a classificação da imprudência consciente responde a critérios verificáveis. Mezger, por exemplo, distingue entre imprudência consciente e inconsciente: na primeira, o sujeito prevê o resultado, mas confia que ele não ocorrerá; na segunda, sequer o prevê, mas deveria. Essa distinção é funcional, objetiva e útil. Ela ajuda a determinar não apenas o tipo penal aplicável, mas também a intensidade da resposta punitiva.

Em minha obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025), proponho uma ampliação desse modelo, com base na Teoria Significativa da Imputação. Parto da premissa de que toda conduta penalmente relevante deve ser imputada a partir da significação de seus elementos. Quando a vontade está ausente - e, portanto, não se trata de dolo - devemos analisar os "caracteres significativos" da ação imprudente: sua previsibilidade, o risco assumido, o dever violado, a relevância do bem jurídico e a consciência possível do resultado.

Com base nesses critérios, proponho uma classificação da imprudência consciente em três níveis: gravíssima, grave e leve. A imprudência consciente gravíssima ocorre quando qualquer pessoa, em qualquer circunstância, seria capaz de prever o resultado danoso, tido como certo, concreto. É o caso, por exemplo, de quem planta um artefato explosivo num avião para matar um dignitário, tendo certeza de que todos os demais passageiros também morrerão. A imprudência consciente grave exige um grau de atenção elevado, mas ainda dentro dos padrões ordinários de diligência. Ela pode ser verificada quando se tem o fenômeno da indiferença diante da previsibilidade de um resultado danoso. Já a imprudência consciente leve corresponde a situações em que apenas uma conduta extraordinariamente cuidadosa teria evitado o dano. Não há aceitação nem indiferença, ao contrário, há uma não-aceitação do resultado previsto.

Essa sistematização não visa aumentar o poder punitivo do Estado. Ao contrário: busca conferir à imputação penal critérios claros, objetivos e proporcionais. O problema da dogmática penal contemporânea é que, ao abandonar essa lógica, passou a recorrer à figura do dolo eventual e outros tipos de dolo, para sancionar condutas que são, essencialmente, imprudentes conscientes. O resultado é a punição por presunção de vontade, com base em juízos morais e não em fatos.

Quando se abandona a classificação da imprudência consciente e se amplia o conceito de dolo para abarcar condutas meramente descuidadas, perde-se o eixo normativo da imputação. Ao presumir a aceitação do risco, o Estado passa a imputar vontade onde só há previsibilidade. Isso rompe o vínculo entre conduta e culpabilidade, e transforma o processo penal em um julgamento sobre o caráter do agente - e não sobre sua ação.

Por isso, insistir na unidade do dolo e na classificabilidade da imprudência consciente é, ao mesmo tempo, um compromisso teórico e constitucional. O Direito Penal, para ser legítimo, deve distinguir com rigor entre condutas dolosas e imprudentes conscientes, e tratar cada uma segundo sua própria lógica. No caso da imprudência consciente, isso significa abandonar a retórica do dolo eventual e assumir, com clareza, que o agente não quis o resultado - mas que sua conduta, conforme o grau de descuido, pode justificar a punição.

Essa concepção é coerente com a tradição jurídica ocidental, que desde o período romano reconhece a diferença entre intenção e descuido. Na Lex Numae, por exemplo, já se distinguia entre o homicídio doloso - punido com morte - e o homicídio imprudente - compensado com a entrega de um carneiro à família da vítima. A racionalidade dessa distinção permanece atual: ela respeita a autonomia da vontade e pune, com justiça, as falhas de cuidado que ofendem o bem jurídico.

A Teoria Significativa da Imputação retoma essa tradição, mas a reconstrói com base na filosofia da linguagem e na análise normativa da ação. Propõe uma estrutura de imputação fundada nos sentidos que as condutas expressam socialmente, e não em ficções subjetivas. Nessa estrutura, a imprudência consciente se torna o lugar adequado para imputar condutas com alto grau de previsibilidade, mas sem intenção manifesta. E sua classificação objetiva permite distinguir com clareza entre condutas socialmente reprováveis e aquelas que exigem sanção exemplar.

A imputação penal não pode ser um campo de arbitrariedades. Ela deve se basear em critérios racionais, objetivos e fundados na Constituição. Classificar a imprudência consciente é parte desse esforço. Mas classificar o dolo - fragmentando a vontade - é trair o próprio fundamento da responsabilidade penal. Em tempos de expansão do punitivismo e de colapso da confiança social no sistema de justiça, essa distinção nunca foi tão urgente.

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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá

VIP Antonio Sanches Sólon Rudá

Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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