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O requisito da confissão no acordo de não persecução penal

O STJ decidiu que a confissão pelo investigado na fase de inquérito policial não constitui exigência para o cabimento de ANPP. Entenda.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Atualizado às 14:44

A crescente consolidação de instrumentos negociais no processo penal brasileiro tem colocado em tensão alguns dos mais tradicionais pilares do direito penal garantista. Entre esses instrumentos, o ANPP - acordo de não persecução penal, introduzido pelo art. 28-A do CPP pela chamada lei anticrime (lei 13.964/19), tornou-se um dos principais vetores de transformação da lógica acusatória. O ANPP passou a operar como uma alternativa formal à ação penal em hipóteses delimitadas, desde que presentes requisitos objetivos e subjetivos. Dentre esses, avulta a exigência da confissão formal e circunstanciada do fato como requisito para a propositura do acordo pelo Ministério Público.

A exigência da confissão - de origem legislativa, mas de contornos ainda pouco definidos - tem gerado múltiplas controvérsias interpretativas, sobretudo em torno do momento em que ela deve ocorrer: se na fase inquisitorial, como condição para o oferecimento da proposta, ou apenas no momento da formalização do acordo, como consequência do exercício da autonomia negocial. A depender da leitura adotada, a confissão pode assumir caráter de verdadeira cláusula de entrada para o benefício ou, ao contrário, ser compreendida como um dever negocial apenas após o conhecimento da proposta ministerial.

A decisão da 3ª seção do STJ, proferida sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.303), ao fixar a tese de que a confissão não precisa ser prévia nem realizada na fase do inquérito, insere-se nesse cenário e procura harmonizar o instituto do ANPP com o sistema de garantias constitucionais e convencionais.1 A tese reafirma o caráter negocial do acordo e evita que o silêncio ou a recusa do investigado em se autoincriminar, antes mesmo de qualquer proposta concreta, funcione como obstáculo absoluto ao benefício. Com isso, busca-se compatibilizar o modelo de justiça penal consensual com os direitos fundamentais da pessoa investigada.

Contudo, a decisão não é isenta de tensões. A aproximação entre o ANPP e institutos de justiça negociada impõe desafios relevantes à dogmática processual penal, sobretudo no que se refere ao papel do Ministério Público, à função da confissão, à autoincriminação e ao controle jurisdicional do acordo. A partir da análise do julgado e da fundamentação adotada pelo relator, desembargador convocado Otávio de Almeida Toledo - do TJ/SP -, pretende-se refletir sobre os limites e os potenciais riscos dessa interpretação, à luz do sistema acusatório e da matriz garantista do processo penal brasileiro.

Ao julgar o Tema 1.303 sob o rito dos recursos repetitivos, a 3ª seção do STJ fixou orientação que visa uniformizar o entendimento sobre um ponto nevrálgico da aplicação do acordo de não persecução penal: o momento em que deve ocorrer a confissão do investigado. A decisão, embora centrada em uma interpretação técnico-normativa do art. 28-A do CPP, assume papel relevante na delimitação dos contornos jurídicos do instituto e, sobretudo, na preservação de garantias fundamentais no contexto da justiça penal negocial.

A primeira tese fixada estabelece que não se pode exigir a confissão prévia, realizada ainda na fase de inquérito policial, como condição para o oferecimento do ANPP. Em outras palavras, o silêncio ou a negativa de confissão do investigado, em momento anterior à formulação de eventual proposta, não pode servir como fundamento para o indeferimento do benefício. A segunda tese vai além e afirma que a formalização da confissão pode ocorrer no momento da assinatura do acordo, perante o Ministério Público, com assistência técnica e após ciência da proposta. Ao fazê-lo, o STJ consagra a compreensão de que o ANPP está submetido a uma lógica estritamente negocial, sendo essa característica essencial para a sua aplicação legítima.

Essa interpretação, embora decorrente de uma leitura sistemática e teleológica da norma, responde a uma preocupação mais ampla: impedir que o ANPP se converta, na prática, em um instrumento de coerção indireta, em que a confissão se imponha como condição unilateral e antecipada, sem a necessária contraprestação estatal. É justamente o oferecimento da proposta que inaugura o espaço de negociação entre as partes. Antes disso, inexiste relação jurídica bilateral que permita exigir do investigado qualquer renúncia, ainda que parcial, a direitos fundamentais como o silêncio, a ampla defesa ou a não autoincriminação. A lógica do acordo pressupõe reciprocidade e equilíbrio entre obrigações e vantagens; qualquer antecipação dessa dinâmica transforma a confissão em ferramenta de seleção penal e reforça a assimetria entre acusação e defesa.

Ao decidir que a confissão pode ser realizada apenas no momento da formalização do acordo, o STJ corrige práticas ministeriais que, em diversos estados, vinham condicionando o próprio oferecimento da proposta à existência de confissão anterior. Essa exigência operava como verdadeiro filtro de acesso ao benefício, criando uma etapa de autoincriminação desvinculada da lógica negocial e frequentemente desassistida por defesa técnica. Nesse modelo, a confissão deixava de ser instrumento de composição e se convertia em barreira de entrada, invertendo o desenho legal do instituto.

Além disso, a decisão do STJ alinha-se aos parâmetros convencionais estabelecidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, especialmente no que se refere à garantia de que ninguém pode ser obrigado a depor contra si mesmo ou a confessar-se culpado (art. 8.2.g). Essa diretriz não impede a confissão como parte do acordo, mas condiciona sua validade à existência de consentimento informado, liberdade de escolha e defesa qualificada. O reconhecimento do caráter facultativo da confissão, portanto, é pressuposto da validade do ANPP e não obstáculo ao seu oferecimento.

A afirmação do caráter negocial do ANPP também está em consonância com outras decisões da própria 3ª seção, como no julgamento do Tema 1.098, no qual se reconheceu a possibilidade de celebração do acordo mesmo após o recebimento da denúncia. Nessas ocasiões, o tribunal tem reiterado que o ANPP não constitui direito subjetivo do investigado, mas tampouco pode ser manejado como instrumento de controle comportamental precoce, mediante exigências não previstas em lei e que tensionam garantias constitucionais.

Em suma, a decisão representa importante reafirmação da centralidade do devido processo legal nas dinâmicas negociais do sistema penal. A confissão pode integrar o acordo como uma de suas condições, mas jamais ser imposta como condição prévia, desconectada da proposta e de seus termos. Trata-se de resguardar a dimensão bilateral do ANPP e evitar que a prática o converta em simulacro de acordo, com aparência de negociação, mas substantiva renúncia antecipada de direitos em troca de promessa incerta.

A decisão do STJ representa um necessário freio à expansão acrítica de práticas ministeriais que, sob o pretexto de eficiência, vinham naturalizando a exigência de confissão como pré-requisito à própria possibilidade de negociação. Ao reafirmar que a lógica do acordo de não persecução penal só se instaura com a formulação da proposta, o tribunal protege uma estrutura mínima de equilíbrio entre as partes e impede que a atuação estatal converta a confissão em moeda de entrada para um benefício que sequer foi oferecido.

Essa compreensão é coerente com a arquitetura garantista do processo penal e com a própria ideia de justiça penal consensual. Em um ambiente de assimetria estrutural entre acusação e defesa, toda antecipação de obrigações unilaterais, sobretudo quando envolvem renúncia a garantias fundamentais, tende a gerar desequilíbrios ilegítimos. Exigir que o investigado confesse o fato sem conhecer a proposta que lhe será apresentada, e antes mesmo da configuração de qualquer relação negocial, é transferir a ele o ônus da incerteza e subverter o conteúdo democrático do processo penal.

A confissão, como instrumento de aproximação entre o investigado e o Estado-acusador, deve ser uma escolha racional, informada e estrategicamente orientada. Não é apenas um ato de fala, mas um gesto jurídico de alta carga simbólica, que implica autoincriminação, renúncia ao direito ao silêncio e aceitação, ainda que parcial, da narrativa acusatória. Desvinculá-la da proposta formal do Ministério Público, e condicioná-la a esta, esvazia sua dimensão volitiva e enfraquece as garantias do contraditório e da ampla defesa. Afinal, como afirmar que houve adesão livre e consciente a um acordo se, para que ele fosse sequer cogitado, exigiu-se do investigado o sacrifício antecipado de sua estratégia defensiva?

A tentativa de "filtrar" os possíveis beneficiários do ANPP por meio da exigência de confissão no inquérito também revela uma tendência preocupante de seletividade informal. Ao excluir os que exercem legitimamente o direito ao silêncio ou aguardam orientação técnica para qualquer manifestação, cria-se uma categoria implícita de "réu colaborativo ideal", cuja disposição em confessar se sobrepõe à própria análise jurídica do caso. Isso reforça desigualdades materiais entre investigados e favorece soluções penais precoces, baseadas não na suficiência da prova ou no interesse público da composição, mas no perfil comportamental do suspeito.

A justiça penal negocial, para não se converter em mecanismo de domesticação do acusado, deve preservar sua base consensual e não prescindir da paridade de armas. Isso exige que o investigado tenha pleno conhecimento dos termos do acordo antes de decidir se irá ou não confessar o fato. A própria natureza contratual do ANPP impõe essa ordem lógica: primeiro se apresenta a proposta, com seus encargos e benefícios, depois se avalia a possibilidade de adesão, inclusive mediante confissão. Inverter essa ordem é impor ao vulnerável o dever de confiar no arbítrio do Estado, o que contradiz frontalmente os postulados do processo penal democrático.

Importa destacar que a jurisprudência do STJ, ao vedar a exigência de confissão prévia, não elimina a função que a confissão pode exercer no contexto do ANPP. Ao contrário, apenas lhe atribui o devido lugar dentro da dinâmica do acordo. A confissão continua sendo um requisito legal, mas seu cumprimento deve ocorrer no momento próprio - isto é, após o oferecimento da proposta e com o devido acompanhamento da defesa técnica. Essa leitura preserva tanto a estrutura normativa do art. 28-A quanto as garantias fundamentais da pessoa investigada.

Por fim, cabe uma advertência. A consolidação jurisprudencial de entendimentos como o fixado no Tema 1.303 só será eficaz se acompanhada de um controle efetivo sobre as práticas ministeriais. O risco é que, na prática forense, se continue a condicionar informalmente o ANPP à prévia confissão, com o respaldo tácito do poder investigativo do Ministério Público e a conivência de defensores pressionados pela urgência da negociação. A legalidade do acordo depende, portanto, não apenas de decisões paradigmáticas, mas de sua internalização institucional e do fortalecimento de uma cultura processual comprometida com o devido processo legal.

A decisão do STJ no julgamento do Tema 1.303 representa um marco relevante na consolidação de parâmetros normativos e garantistas para a aplicação do acordo de não persecução penal. Ao afirmar que a confissão não constitui requisito prévio à proposta ministerial e pode ser formalizada apenas no momento da assinatura do acordo, o tribunal recoloca o ANPP em seu devido lugar: um instrumento de justiça penal consensual, submetido à lógica negocial e condicionado ao respeito ao contraditório, à ampla defesa e à voluntariedade do investigado.

Essa compreensão evita que a confissão seja instrumentalizada como mecanismo de filtragem precoce e coercitiva de réus "colaborativos", preservando o conteúdo democrático do processo penal e a sua função garantidora. Não se trata de negar o valor da confissão como condição legal para o acordo, mas de delimitar seu momento e sua função dentro da lógica procedimental adequada. Exigir a autoincriminação antes mesmo da configuração da relação negocial não apenas subverte a ordem jurídica do instituto, como contraria princípios convencionais e constitucionais elementares, entre eles o direito ao silêncio, a não autoincriminação e o devido processo legal.

Mais do que uma discussão hermenêutica sobre a interpretação do art. 28-A do CPP, o que está em jogo nesse debate é o modelo de justiça penal que se quer afirmar no país. A expansão de mecanismos negociais não pode se fazer à custa de garantias processuais fundamentais, nem sob a retórica da eficiência punitiva. O processo penal brasileiro, historicamente marcado por assimetrias e seletividades, exige freios normativos e jurisprudenciais que impeçam a consolidação de práticas informais autoritárias, ainda que sob roupagem consensual.

Como dito anteriormente, a consolidação do entendimento firmado pelo STJ deve ser acompanhada de mecanismos efetivos de controle institucional, notadamente por parte dos magistrados oficiantes na homologação de tais acordos, e de compromisso da defesa técnica com a preservação da autonomia e da liberdade do investigado. Afinal, o que se pretende proteger não é apenas a forma do acordo, mas a substância da liberdade que lhe dá legitimidade.

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1. A confissão pelo investigado na fase de inquérito policial não constitui exigência do art. 28-A do Código de Processo Penal para o cabimento de Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), sendo inválida a negativa de formulação da respectiva proposta baseada em sua ausência.

2. A formalização da confissão para fins do ANPP pode se dar no momento da assinatura do acordo, perante o próprio órgão ministerial, após a ciência, avaliação e aceitação da proposta pelo beneficiado, devidamente assistido por defesa técnica, dado o caráter negocial do instituto.

STJ. 3ª Seção. REsp 2.161.548-BA, Rel. Min. Otávio de Almeida Toledo (Desembargador convocado do TJSP), julgado em 12/3/2025 (Recurso Repetitivo - Tema 1303) (Info 843).

Erica do Amaral Matos

Erica do Amaral Matos

Mestre e bacharel em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), pós-graduada pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal e autora do livro "Cárcere e Trabalho" (Revista dos Tribunais).

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