Remição de pena pela amamentação: O cuidado como trabalho
STJ reconhece amamentação e os cuidados maternos prestados por mulheres presas a seus filhos constituem formas legítimas de trabalho para fins de remição de pena.
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
Atualizado às 13:30
A 3ª seção do STJ, por maioria, reconheceu, a pedido da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que a amamentação e os cuidados maternos prestados por mulheres presas a seus filhos constituem formas legítimas de trabalho para fins de remição de pena (HC 920.980/SP, j. 13/8/25). A decisão, ainda que não vinculante, representa um marco interpretativo na execução penal brasileira, por ampliar o conceito de trabalho previsto no art. 126 da LEP - Lei de Execução Penal e integrá-lo à perspectiva da economia do cuidado e da igualdade de gênero.
O voto condutor, proferido pelo ministro Sebastião Reis Júnior, parte da premissa de que o cuidado materno, especialmente em contextos excepcionais em que a mãe permanece com o bebê no cárcere, configura atividade contínua, extenuante e indispensável ao desenvolvimento saudável da criança. Nessas situações, a mulher encarcerada frequentemente é privada de atividades educacionais ou laborativas formais, perdendo oportunidades de remição que estão disponíveis à população prisional masculina ou feminina sem filhos sob seus cuidados.
A decisão sustenta-se em interpretação extensiva do termo "trabalho" contido no art. 126 da LEP, alinhada às normas constitucionais que asseguram a proteção à maternidade e à infância (art. 6º, art. 7º, XVIII e art. 227 da CF), aos compromissos internacionais como a Convenção sobre os Direitos da Criança (art. 24) e a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (art. 11, §2º), que garantem medidas de apoio ao aleitamento materno e à proteção laboral da mulher, bem como aos precedentes do próprio STJ que já flexibilizaram o conceito de trabalho para abranger atividades não expressamente previstas na LEP, como leitura, artesanato e cursos à distância.
Além disso, o relator invoca a noção de "hipermaternidade", caracterizada pela dedicação integral e ininterrupta da mãe ao filho recém-nascido no cárcere, e a diretriz do Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero do CNJ, para enfatizar a necessidade de eliminar estereótipos que invisibilizam ou desvalorizam o trabalho de cuidado.
Do julgamento, extraem-se três teses centrais: (1) a interpretação extensiva do termo "trabalho" no art. 126 da LEP para incluir os cuidados maternos; (2) o reconhecimento da amamentação e dos cuidados maternos como formas de trabalho aptas a gerar remição, considerando seu impacto direto no desenvolvimento infantil; e (3) a necessidade de considerar as desigualdades de gênero nas decisões judiciais, afastando estereótipos que influenciem negativamente a aplicação do direito.
A divergência, inaugurada pelo ministro Joel Ilan Paciornik e acompanhada por outros dois julgadores, defendeu a estrita legalidade na execução penal. Para esse entendimento, a ampliação do conceito de trabalho deveria ser feita pelo legislador, sob pena de insegurança jurídica. Apontou-se também a dificuldade de comprovação e quantificação do tempo efetivamente dedicado à amamentação e aos cuidados, elementos que, segundo essa visão, inviabilizariam a remição com segurança.
Entende-se, contudo, que a decisão do STJ dialoga com a agenda internacional de valorização da economia do cuidado - conjunto de atividades, remuneradas ou não, voltadas à reprodução social e à manutenção da vida. O cuidado materno no cárcere, historicamente invisibilizado e não remunerado, é aqui reconhecido como trabalho socialmente relevante, rompendo com a lógica que o reduz a mero dever natural da mãe.
No plano de gênero, a decisão corrige distorção histórica: enquanto homens e mulheres sem filhos no cárcere podem acessar oficinas laborais ou cursos de estudo para remição, mães que cuidam de seus bebês permanecem excluídas dessas oportunidades. A inclusão do cuidado materno como trabalho equaciona essa desigualdade e reafirma o princípio da equidade no acesso a direitos executórios.
No campo dos direitos da criança, a medida se alinha à diretriz da proteção integral (art. 227 da CF), ao reconhecer que o vínculo afetivo e o aleitamento materno são essenciais nos primeiros meses de vida. Ao estimular que a mãe permaneça junto ao bebê, reforça-se a política pública de primeira infância mesmo em contexto prisional.
A decisão insere-se em um movimento mais amplo de expansão das hipóteses de remição para atividades não tradicionais, como já acolhido pelo CNJ (resolução 44/13, portarias 204/20 e 205/20). Sob esse prisma, a remição não deve se restringir a trabalho remunerado ou escolarização formal, mas alcançar atividades compatíveis com a condição de encarceramento e que promovam valores constitucionais relevantes - educação, cultura, esporte e, como agora reconhecido, cuidado.
Embora desafios de mensuração e regulamentação existam, tais dificuldades não superam a necessidade de concretizar direitos fundamentais, especialmente diante de barreiras estruturais que afetam mulheres em privação de liberdade.
A decisão da 3ª seção do STJ não apenas amplia o alcance do art. 126 da LEP, mas também afirma um paradigma de execução penal sensível ao gênero e à infância. Ao reconhecer a amamentação e os cuidados maternos como formas legítimas de trabalho, o tribunal promove justiça de gênero, reforça o valor social do cuidado e contribui para a humanização do cumprimento de pena.
A medida, contudo, exige regulamentação administrativa que defina critérios objetivos para apuração do tempo de cuidado e sua conversão em dias de remição, prevenindo insegurança jurídica e assegurando a uniformidade da aplicação.
Em síntese, trata-se de avanço normativo e simbólico: o cuidado, ainda que não monetizado, é trabalho que sustenta a vida. Reconhecê-lo no cárcere é passo decisivo para que o sistema de justiça penal reflita, também, a realidade e as necessidades das mulheres e crianças que nele estão inseridas.


