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Ética em contexto de governança global: Estados Unidos, Mais Médicos, Cuba e dignidade humana

Revogação de vistos expõe violações éticas dos EUA e ignora a relevância do Mais Médicos para a saúde pública brasileira.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Atualizado às 07:50

A sucessão de atos praticados pelos Estados Unidos nos últimos dias e meses, seja em matéria de taxação de produtos que lhes são exportados, seja em matéria de sanções, cancelamentos e revogações de vistos de entrada em seu território, vem causando perplexidade no mundo civilizado, trazendo à memória coletiva dos que pensam racionalmente, diversas películas cinematográficas que pareciam distopias distantes ou mesmo impossíveis de se materializarem de modo palpável e real, ainda que estejamos vivendo em um ambiente global de pós-verdade e narrativas pautadas por falsas construções argumentativas ao sabor dos lunáticos e/ou mal intencionados de plantão.

A derradeira sandice, até que surja uma nova, foi a revogação do visto da esposa e da filha, de 10 anos, do ministro da Saúde, Alexandre Padilha e outros funcionários do governo brasileiro ligados ao programa Mais Médicos.

Mais Médicos que aliás, é descrito como "um golpe diplomático que explorou médicos cubanos, enriqueceu o regime cubano corrupto e foi acobertado por autoridades brasileiras e ex-funcionários da Opas [Organização Panamericana da Saúde]".

Antes de esclarecermos alguns pontos fulcrais sobre o programa Mais Médicos e sua importância em contexto de um país continental, com dificuldades de atuação de profissionais de saúde que atendam lugares distantes do seu território, comecemos por recordar alguns balizamentos centrais sobre ética na governança internacional, a partir da perspectiva do direito internacional público e dos princípios que norteiam a atuação dos Estados.

O princípio da boa-fé é um dos fundamentos mais relevantes da governança ética entre países. Está consagrado no art. 26 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) ("pacta sunt servanda"). Significa que os Estados devem cumprir suas obrigações internacionais de forma leal, sem recorrer a expedientes que desvirtuem os compromissos assumidos. A ética aqui se traduz na confiabilidade e previsibilidade nas relações internacionais.

O respeito aos Direitos Humanos, previsto na Carta da ONU (1945) e diversos tratados universais e regionais exigem que a atuação dos Estados se alinhe com a dignidade humana. Governança ética implica não apenas respeitar os direitos fundamentais internamente, mas também promovê-los na atuação externa, evitando políticas discriminatórias ou práticas que atentem contra a integridade das pessoas.

Já o princípio da Igualdade Soberana e da Não-Intervenção consagrado no art. 2º da Carta da ONU, impõe um limite ético à governança global: os Estados não devem manipular ou subjugar outros Estados em benefício próprio. A ética internacional exige que a soberania seja equilibrada com a solidariedade internacional, especialmente em temas globais como mudanças climáticas, comércio justo e saúde pública.

A perspectiva da Ética da Paz e da Cooperação no âmbito da governança ética, no plano do direito internacional, tem como norte a manutenção da paz e da segurança internacionais (art. 1º da Carta da ONU). Isso impõe limites à corrida armamentista, ao uso da força sem respaldo do Conselho de Segurança e às práticas unilaterais que fragilizam o multilateralismo.

Pois bem. Sigamos com a contextualização do Programa "Mais Médicos" e a participação cubana nesse programa que é representativo de uma política pública essencial no âmbito da saúde pública, o que tornará clara a compreensão da violação por parte dos Estados Unidos, por meio dos seus agentes públicos, de todos os princípios que anteriormente anunciamos.

O Programa Mais Médicos foi lançado em 8 de julho de 2013 pelo governo da presidenta Dilma Rousseff, sob coordenação do então ministro da Saúde, Alexandre Padilha. O objetivo central do programa era suprir a carência de médicos nas regiões mais remotas do Brasil, como municípios do interior e periferias de grandes cidades.

O programa foi lançado como solução emergencial, diante da dificuldade histórica de atração e fixação de médicos em áreas com déficit assistencial significativo e dividiu-se em dois eixos principais:

O provimento emergencial de médicos, priorizando brasileiros, seguido por formados no exterior e, em seguida, profissionais estrangeiros, especialmente de Cuba e a expansão da formação médica nacional, com abertura de novas vagas em universidades e residências (ex: "Mais Residência Médica") nos locais de maior necessidade.

A iniciativa bem sucedida do Programa fez com que em poucos meses ele superasse a meta inicial, sendo que em março de 2014, já havia cerca de 13.821 médicos atuando, incluindo muitos em municípios carentes e até 2017, registrou-se o pico de atuação: 18.240 médicos em 4.058 municípios, atendendo aproximadamente 63 milhões de pessoas. Todos esses dados são de domínio público.

A OPAS/OMS (PAHO/WHO) apoiou o programa, reconhecendo seu alinhamento com metas de cobertura universal e atenção básica no Brasil, com adesão progressiva ao Programa que contou com o apoio de mais 54% da população.

Após um período de desmonte do Programa no governo anterior, na gestão do presidente Lula (2023-presente), o Mais Médicos foi relançado, priorizando médicos brasileiros e ampliando o número de vagas para abarcar outras categorias da saúde, como enfermagem, odontologia e assistência social.

Não é difícil concluir, ao menos para aqueles que dele necessitam ou para quem exerce a empatia e a alteridade, que o Programa Mais Médicos representou uma política pública inovadora de interiorização da saúde, com impacto relevante em cobertura e acesso, com período de grande importância para o seu sucesso e que se deu com a participação de médicos cubanos, hoje, vivendo uma nova etapa, buscando consolidar saberes acumulados, com foco nacional e integração à formação permanente no SUS.

Ou seja, o Mais Médicos representou presença contínua em áreas com alto índice de vulnerabilidade social e no período de (2013-2017) foi decisivo para reduzir vazios assistenciais, especialmente no Norte e Nordeste, em que a forte presença de médicos cubanos foi essencial para o a sua implementação exitosa.

Então, qual o verdadeiro sentido, senão um mero exercício retórico e vazio, do fundamento1 utilizado pelos Estados Unidos para revogar os vistos de familiares e daqueles que implementaram um Programa social de grande relevância, que assegura, especialmente, a saúde pública de milhões de brasileiros?

É público e notório o contingente de profissionais cubanos de saúde destacados em resposta a crises globais - um exemplo emblemático da diplomacia médica de Cuba.

Traçando-se um breve panorama da "Ajuda Médica Cubana Internacional", desde a Revolução de 1959, Cuba mantém um extenso programa de cooperação médica internacional. Estima-se que, ao longo dessas décadas, mais de 600 mil trabalhadores de saúde cubanos atuaram em cerca de 160 países2. Em 2020, cerca de 30.000 médicos estavam presentes em mais de 60 países.

A título meramente ilustrativo, milhares de profissionais de saúde cubanos atuaram e atuam em países da África como Angola, Guiné-Bissau, Etiópia e outros. Em crises como o surto de Ebola na África Ocidental, Cuba enviou cerca de 500 profissionais de saúde.3

Na América Latina e Caribe, Cuba enviou contingentes médicos para diversos países, como Chile, Honduras, Guatemala, Nicarágua, Haiti, e durante emergências, para a Venezuela no contexto do "oil-for-doctors" (Misión Barrio Adentro e Operación Milagro).

Na Ásia e Oceania, Cuba enviou missões de socorro após o tsunami asiático (2004) e regiões como Timor-Leste após o conflito, além de assistência a pequenas ilhas do Pacífico - como Kiribati, Tuvalu e Ilhas Salomão - com redução de mortalidade infantil e oferta de formação médica. (Ver Wikipédia)

Na Europa e Oriente Médio, Cuba enviou profissionais para combater a pandemia de COVID-19 em lugares como Itália (Lombardia), Andorra e Oriente Médio; também houve atendimento contínuo a vítimas de Chernobyl.

Resumo das atuações recentes de Cuba em matéria de saúde pública global:

- Covid-19: Cuba enviou brigadas para pelo menos 17 países, incluindo Itália (Lombardia) e várias nações da América Latina, Caribe e África4. Caribe: Atualmente, cerca de 24.180 médicos atuam em 56 nações, fornecendo cuidado essencial em regiões com poucos recursos. Países como Jamaica, Trinidad e Tobago e St. Vincent & Grenadines. Tudo isso com autoridades locais resistindo a pressões dos Estados Unidos5.

- Misión Barrio Adentro / Operación Milagro: Cooperação com Venezuela com trocas de petróleo por serviços médicos; milhões de cirurgias oftalmológicas realizadas em diversos países latino-americanos.

- ELAM - Escuela Latinoamericana de Medicina: Escola de formação médica com foco em desigualdade social, capacitando estudantes de diversas origens.6

Resumidamente, Cuba se destaca na arena internacional por sua diplomacia médica solidária, atuando em contextos de desastre, epidemias e carências estruturais, em dezenas de países de todos os continentes. Desde programas duradouros até missões imediatas de emergência, os profissionais cubanos levam saúde e apoio em países pobres e regiões remotas.

Nenhuma discussão ideológica pode ofuscar o impacto real e o valor simbólico dessa estratégia de cooperação internacional de Cuba em prol da saúde pública global, que apesar de suas pequenas dimensões territoriais e uma série de embargos econômicos, exerce um papel gigantesco na efetivação da dignidade humana em escala universal.

Em conclusão, não há fundamento substancial, apenas formal e desassistido de legalidade, para a revogação dos vistos dos funcionários públicos idealizadores do Programa Mais Médicos, muito menos dos seus familiares, seja diante da relevância dos serviços por eles prestados à saúde pública brasileira, seja diante dos princípios e normativos referenciais de direito internacional público violados pelos Estados Unidos com a sua medida de força, contrariando a Ética em contexto de governança global e a própria e dignidade humana em âmbito global, em sentido amplo e estrito.

___________

1 O fundamento de que o programa "Mais Médicos" seria "um golpe diplomático que explorou médicos cubanos, enriqueceu o regime cubano corrupto e foi acobertado por autoridades brasileiras e ex-funcionários da Opas [Organização Panamericana da Saúde]".

2 Cornell SC Johnson+12Wikipedia+12rcpbml.org.uk+12Agência Brasil

3 TIME+7Wikipedia+7Agência Brasil+7.

4 BVSALUD+6Outras Palavras+6Repositorio Unifesp+6.

5 politico.com+3AP News+3rcpbml.org.uk+3.

6 Wikipediapmc.ncbi.nlm.nih.gov

Bruno Espiñeira Lemos

Bruno Espiñeira Lemos

Conselheiro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, advogado, ex-procurador federal e procurador do Estado da Bahia.

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