Ação anulatória de registro público
O artigo analisa a ação anulatória de registro público em hipóteses de cadeia de títulos viciada, originada de procuração inválida.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Atualizado às 10:52
Ação anulatória de registro público: Nulidade originária, cadeia de títulos viciada e responsabilidade civil notarial
1. Introdução
O sistema registral brasileiro repousa sobre dois pilares fundamentais: a segurança jurídica e a publicidade dos atos translativos da propriedade imobiliária. Por intermédio do registro, o Estado confere eficácia erga omnes aos negócios jurídicos que importam constituição, transmissão ou extinção de direitos reais, permitindo que terceiros confiem na veracidade e legitimidade dos assentos. Todavia, essa confiança não é absoluta. Quando o título causal que dá suporte ao registro é nulo, o vício projeta-se sobre todo o encadeamento posterior, tornando indispensável o manejo da ação anulatória de registro público.
A controvérsia ganha relevo diante de situações em que procurações inválidas são utilizadas para outorgar poderes de disposição sobre imóveis. Nessas hipóteses, mesmo que a escritura pública seja lavrada e levada a registro, o vício originário contamina a cadeia de transmissão, impondo o cancelamento do assento. A nulidade absoluta, por ser matéria de ordem pública, pode ser reconhecida a qualquer tempo e independe de alegação das partes.
No caso em estudo, a ação anulatória foi proposta com o objetivo de expurgar do fólio real os efeitos de uma procuração de 2007, outorgada por quem não detinha poderes de representação, da qual derivaram substabelecimentos e, por fim, a escritura pública de 2012. O pedido central consiste na declaração de nulidade desses atos e no consequente cancelamento dos registros, cumulando-se, ainda, com a responsabilização civil dos envolvidos.
A análise desenvolvida neste artigo organiza-se em torno de três eixos: (i) o reconhecimento da nulidade originária da procuração e sua repercussão em cascata; (ii) a demonstração de que o registro não convalida título inválido, impondo-se o cancelamento registral; e (iii) a verificação da responsabilidade civil do tabelião e dos adquirentes, segundo o regime vigente à época dos fatos. A investigação pauta-se na doutrina civilista e registral contemporânea, bem como em jurisprudência atual do STJ e dos tribunais estaduais, a fim de oferecer solução técnica e sistemática ao problema.
2. Aspectos dogmáticos e práticos da ação anulatória de registro público
2.1 Síntese e delimitação do objeto
A presente investigação tem por escopo a análise da ação anulatória de registro público, ajuizada com vistas a desconstituir a cadeia registral formada a partir de procuração viciada, cuja outorga remonta ao ano de 2007 e que se revelou emanada de quem não detinha poderes para alienar os imóveis objeto da demanda. Desse vício originário decorreram substabelecimentos subsequentes e, finalmente, a escritura pública de compra e venda, lavrada em 2012, que veio a ser registrada nas matrículas respectivas.
O núcleo da controvérsia reside, portanto, na verificação da validade desse primeiro instrumento e dos efeitos em cascata que se irradiaram, comprometendo a legitimidade de todos os atos jurídicos posteriores. Não se trata de exame meramente formal, mas de averiguação da regularidade essencial do título causal, na medida em que, se o ato inicial é nulo, o vício comunica-se aos subsequentes (nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet).
A delimitação do objeto, fixada no saneamento do feito, concentra-se em três pontos cardeais: (i) a nulidade da procuração de 2007 e a consequente invalidade dos atos que dela derivaram; (ii) a possibilidade de cancelamento dos registros imobiliários, à luz da disciplina da lei de registros públicos; e (iii) a responsabilização civil dos réus remanescentes - notadamente do tabelião que lavrou a escritura, bem como das pessoas jurídicas e físicas que se beneficiaram da cadeia irregular.
O exame não se dirige a incidentes periféricos, mas à essência do conflito, delimitada pela tríplice dimensão fático-jurídica: a) fato gerador: outorga inválida de poderes de disposição; b) plano jurídico: nulidade absoluta do título e contaminação da cadeia dominial; c) plano registral: ineficácia do assento e necessidade de cancelamento para resguardar a higidez do fólio real.
Em perspectiva processual, a ação anulatória não se confunde com a dúvida registral nem com a simples retificação administrativa. É remédio jurisdicional próprio, voltado a expurgar do registro atos que, embora formalmente lançados, padecem de vícios insanáveis de origem. A relevância da lide transcende ao caso concreto, pois reafirma a premissa de que o registro não convalida título nulo, como assentado reiteradamente pelo STJ.1
2.2 Questões controvertidas
Delimitado o objeto da demanda, impõe-se identificar as questões controvertidas que emergem dos autos e que orientam a atividade cognitiva do juízo. Em ações dessa natureza, os pontos de dissenso não se circunscrevem a aspectos secundários, mas envolvem a própria consistência da cadeia dominial e a tutela da fé pública registral.
A primeira controvérsia reside na validade da procuração pública lavrada em 2007. Argumenta-se que o outorgante não detinha poderes de representação das sociedades proprietárias, de modo que o mandato resultou absolutamente nulo (nullitas ab initio). A doutrina de Flávio Tartuce observa que a nulidade absoluta não admite convalidação, nem por decurso do tempo, nem pela boa-fé de terceiros subsequentes.2 Esse vício, se reconhecido, projeta-se sobre os atos derivados, fulminando substabelecimentos e escrituras posteriores.
A segunda questão controvertida refere-se à natureza e alcance da nulidade registral. De um lado, sustenta-se que o assento, uma vez lançado, goza de presunção relativa de legitimidade (lei 6.015/73, art. 252), sendo protegido até o cancelamento judicial. De outro, invoca-se o art. 214 da mesma lei, segundo o qual "as nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no", o que evidencia a incapacidade do fólio real de sanear título causal inválido. A jurisprudência recente do TJ/ES reforça essa diretriz, ao afirmar que "a proteção do terceiro de boa-fé não subsiste quando demonstrada a nulidade originária do título".3
A terceira controvérsia emerge da responsabilidade civil dos réus remanescentes. O tabelião que lavrou a escritura, segundo a redação original do art. 22 da lei 8.935/94, respondia objetivamente pelos danos decorrentes de falha do serviço. O STJ, em 2023, reiterou que, para atos praticados antes da lei 13.286/16, a responsabilidade dos notários é objetiva, dispensando-se a demonstração de culpa.4 Discute-se, assim, em que medida o notário se omitiu no dever de cautela ao conferir os poderes de representação. Quanto aos adquirentes, questiona-se se poderiam invocar boa-fé, ou se lhes caberia o ônus da devida diligência quanto à legitimidade da cadeia dominial.
Finalmente, há a questão da proteção ao terceiro de boa-fé. Embora o ordenamento prestigie a segurança das relações jurídicas, a doutrina registra que a boa-fé não é capaz de revogar a nulidade absoluta. Como lembra Zeno Veloso, "o registro não tem o condão de sanar vício do título",5 o que reforça a tese de que, diante de uma procuração inexistente ou inválida, inexiste fundamento jurídico para a manutenção do assento.
Em suma, as controvérsias principais articulam-se em quatro eixos: (i) a nulidade da procuração originária; (ii) a ineficácia dos registros decorrentes; (iii) a responsabilidade civil dos réus, em especial do tabelião; e (iv) a inaplicabilidade da proteção da boa-fé diante da nulidade absoluta.
2.3 Ônus da prova e distribuição dinâmica
Entre os pontos cardeais que estruturam a presente demanda, figura a repartição do ônus probatório, disciplinada pelo art. 373 do CPC. A norma estabelece, em sua regra geral, que incumbe ao autor demonstrar os fatos constitutivos de seu direito (inciso I), e ao réu, por sua vez, comprovar a existência de fatos impeditivos, modificativos ou extintivos da pretensão (inciso II). No entanto, em causas que envolvem vícios complexos na cadeia de transmissão de imóveis, o dogma da rigidez probatória revela-se insuficiente, reclamando a incidência do § 1º do mesmo dispositivo, que autoriza a distribuição dinâmica do ônus da prova, quando a parte contrária se encontra em melhores condições de produzi-la.
O autor, ao trazer aos autos a procuração de 2007, os substabelecimentos posteriores e a escritura pública de 2012, cumpriu a tarefa de evidenciar, de forma documental, a existência da cadeia negocial e os vícios que a maculam. Demonstrou que o outorgante do mandato inicial não possuía legitimidade representativa, razão pela qual se desincumbiu do encargo probatório que lhe competia. Cabe, portanto, aos réus, especialmente ao tabelião e às sociedades beneficiárias, a demonstração de que a outorga de poderes estava amparada em título legítimo ou que houve diligência compatível com o padrão exigido pela lei.
A jurisprudência tem reiterado a pertinência dessa inversão pontual. O STJ, em acórdão paradigmático, reconheceu que, em hipóteses de alienação de imóveis mediante procuração irregular ou falsa, incumbe ao adquirente e ao notário comprovar que adotaram as cautelas ordinárias, não sendo razoável transferir ao lesado o ônus de demonstrar fatos que não estavam sob seu domínio ou acesso.6 Do mesmo modo, a doutrina especializada afirma que a boa-fé não se presume em detrimento da nulidade absoluta; exige-se, ao menos, a prova de diligência efetiva do adquirente.7
No campo notarial, a situação é ainda mais evidente. O art. 22 da lei 8.935/94, em sua redação originária, consagrava a responsabilidade objetiva dos notários, o que implica, no plano processual, que ao tabelião não basta alegar ausência de culpa; deve comprovar, positivamente, as providências adotadas para verificar a regularidade da representação. Em linha com esse entendimento, o TJ/GO decidiu, em 2024, que "a lavratura de escritura com base em procuração falsa, sem a devida verificação de seus pressupostos formais, gera responsabilidade objetiva do tabelião, competindo-lhe demonstrar a diligência devida".8
Destarte, a solução hermenêutica impõe que o autor, ao demonstrar o vício originário, transfira aos réus o ônus de afastar a nulidade, seja pela comprovação da legitimidade dos poderes representativos, seja pela prova da diligência e boa-fé. Essa redistribuição encontra fundamento no princípio da cooperação processual e na equidade probatória, afastando o risco de transformar o processo em instrumento de perpetuação da fraude.
3. Consequências da nulidade originária
3.1 Cadeia de títulos viciada
O primeiro fundamento de mérito a reclamar exame é a cadeia de títulos viciada, que se inicia com a outorga da procuração de 2007, instrumento subscrito por quem não possuía poderes de representação, e que, por essa razão, nasceu nulo de pleno direito. O vício originário contamina todos os atos subsequentes - substabelecimentos, escritura pública de compra e venda lavrada em 2012 e, por derradeiro, o registro imobiliário -, pois, segundo a máxima tradicional, nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet: ninguém pode transmitir mais direitos do que possui.
A doutrina civilista é enfática ao afirmar que, em matéria de negócios jurídicos, a nulidade absoluta opera erga omnes e não admite convalidação. Flávio Tartuce, ao comentar a teoria da invalidade, lembra que "a boa-fé não supre a nulidade absoluta, devendo o registro ser cancelado quando a origem se mostra viciada".9 O título inicial inválido, por não gerar efeitos, não tem o condão de sustentar atos derivados, ainda que formalmente perfeitos.
Em reforço, Zeno Veloso assinala que o registro imobiliário não se sobrepõe ao título causal, mas dele depende, de modo que "o registro não tem o condão de sanar vício do título, sendo imprescindível a validade da origem".10 Essa posição harmoniza-se com a disciplina do art. 214 da lei de registros públicos, que prevê a nulidade de pleno direito do registro quando o título é inválido. Assim, não se trata de infirmar a presunção de legitimidade do fólio real (art. 252 da LRP), mas de reconhecer que tal presunção é relativa e cede diante da prova cabal da inexistência de poderes representativos no ato originário.
A jurisprudência também tem se manifestado em idêntico sentido. O TJ/PR decidiu, em 2023, que "a escritura pública de compra e venda firmada mediante procuração falsa gera nulidade absoluta, insuscetível de ser superada pela alegação de boa-fé do adquirente".11 O entendimento converge com precedente do TJ/ES, que concluiu que, "restando comprovada a nulidade do título, a proteção do terceiro de boa-fé não subsiste frente à ineficácia do negócio viciado".12
Desse modo, a cadeia dominial, fundada em instrumento nulo, não encontra guarida na ordem jurídica. A nulidade da procuração de 2007 projeta-se sobre todos os atos derivados, conduzindo ao reconhecimento da invalidade do negócio jurídico subsequente e impondo o cancelamento dos registros imobiliários respectivos.
3.2 Cancelamento e retificação registral
A segunda linha de argumentação repousa na necessária distinção entre o vício do título causal e a eficácia do registro. O sistema registral brasileiro, regido pela lei 6.015/1973, opera com base no princípio da legalidade formal: cabe ao registrador verificar a conformidade do título com os requisitos extrínsecos, sem aprofundar-se no exame de sua substância. Todavia, quando o vício é de tal gravidade que compromete a própria existência do título - como ocorre na outorga por quem não detém poderes -, o registro, ainda que lançado, carece de suporte válido e torna-se juridicamente ineficaz.
O art. 214 da lei de registros públicos dispõe que "as nulidades de pleno direito do registro, uma vez provadas, invalidam-no, independentemente de ação direta". O dispositivo evidencia que o assento não possui força convalidatória; pelo contrário, depende do título que o sustenta. Walter Ceneviva, ao comentar a matéria, sublinha que "há nulidade de pleno direito quando o ato jurídico ofende princípios básicos do ordenamento, hipótese em que o registro não subsiste, ainda que formalmente lançado".13
No mesmo sentido, Zeno Veloso enfatiza que a nulidade do título transmite-se ao registro, pois este é apenas reflexo daquele: "a proteção ao terceiro de boa-fé não subsiste quando a origem é nula".14 Essa compreensão encontra eco na jurisprudência, como se vê em acórdão do TJ/ES, que determinou o cancelamento de registros decorrentes de procuração inválida, afirmando ser inadmissível a subsistência do assento diante da prova de nulidade originária.15
Importa, ainda, assinalar a diferença entre retificação e cancelamento registral. Enquanto a retificação (arts. 213 e 216 da LRP) tem por finalidade corrigir inexatidões ou erros materiais no assento, sem questionar a validade do título causal, o cancelamento (art. 214 da LRP) visa expungir do fólio real inscrições fundadas em títulos inválidos ou ineficazes. Na hipótese em análise, não se cuida de simples erro formal, mas de vício essencial, o que impõe o cancelamento como providência adequada.
A jurisprudência do STJ corrobora esse entendimento. Em precedente de 2021, a Corte reafirmou que "o registro público não tem o condão de convalidar vício do título que lhe serve de base",16 reforçando a supremacia da validade do título causal sobre a presunção de legitimidade do assento.
Assim, diante de procuração nula, não há espaço para retificação, mas apenas para o cancelamento registral, medida que restabelece a higidez do fólio real e assegura a confiabilidade do sistema, princípio estruturante do Direito Registral.
3.3 Responsabilidade civil dos envolvidos
A terceira tese de mérito a ser apreciada versa sobre a responsabilidade civil dos sujeitos que, de maneira direta ou indireta, concorreram para a consolidação da cadeia viciada. A questão se desdobra em dois planos distintos: (i) a atuação do tabelião que lavrou a escritura pública de compra e venda de 2012; e (ii) a conduta dos adquirentes e substabelecentes que, sem a devida cautela, valeram-se de mandato inválido para legitimar a transmissão dos imóveis.
No tocante ao tabelião, cumpre recordar que, sob a redação original do art. 22 da lei 8.935/1994, anterior à lei 13.286/16, a responsabilidade civil era de natureza objetiva, bastando a demonstração do nexo causal entre o ato notarial irregular e o dano. O STJ, em julgamento recente, consolidou essa compreensão, ao proclamar que "a responsabilidade civil dos tabeliães e registradores por atos da serventia ocorridos sob a égide do art. 22 da Lei nº 8.935/94, em sua redação original, é direta e objetiva, dispensando, portanto, a demonstração de culpa ou dolo".17 Tal entendimento impõe que o notário, ao lavrar escritura fundada em procuração sem poderes, responde pelos prejuízos decorrentes, independentemente de apuração subjetiva.
A doutrina segue idêntica linha. Ricardo Dip observa que, após a reforma de 2016, a responsabilidade passou a exigir prova de culpa ou dolo, mas, antes dela, prevalecia o regime objetivo, justamente para reforçar o dever de diligência e conferir maior segurança ao tráfego imobiliário.18 Logo, no caso em exame, não há como afastar a responsabilização do notário que, mesmo diante de documento de aparência regular, deixou de verificar a legitimidade substancial dos poderes conferidos.
Quanto aos adquirentes e substabelecentes, a responsabilidade deriva do dever de cautela ínsito às transações imobiliárias. A boa-fé, ainda que alegada, não pode ser invocada como escudo absoluto quando ausente a mínima diligência para apurar a legitimidade do título. O TJ/GO, em julgado de 2024, reconheceu a responsabilidade do adquirente que se beneficiou de escritura fundada em procuração falsa, afirmando que "incumbe ao comprador a verificação da higidez da cadeia dominial, não podendo se amparar em presunção de boa-fé diante de vício originário".19
No plano dogmático, a repartição da responsabilidade encontra amparo na teoria da causalidade adequada. Cada réu responde na medida de sua participação na consolidação da fraude: ao tabelião compete a verificação formal e material mínima; aos adquirentes incumbe a diligência ordinária própria do comércio jurídico. Desse modo, configura-se uma responsabilidade solidária, fundada tanto na falha notarial quanto na conduta culposa dos particulares que, sem verificar a regularidade do mandato, promoveram a transmissão de imóveis alheios.
O sistema jurídico, ao reconhecer essa responsabilização múltipla, preserva não apenas o interesse individual do autor, mas também a credibilidade do sistema registral, cuja segurança se sustenta na confiança pública depositada nos atos notariais e na diligência dos particulares que deles se beneficiam.
4. Considerações finais
A análise desenvolvida ao longo deste estudo evidencia, com clareza, que a presente demanda não versa sobre meros vícios formais, mas sobre a própria integridade do sistema registral e a preservação da confiança que deve nortear o tráfego imobiliário. A procuração de 2007, outorgada sem poderes de representação, constitui vício originário absoluto, que se propagou em efeito dominó sobre os substabelecimentos, a escritura de 2012 e, finalmente, os registros imobiliários.
A doutrina, de modo uniforme, proclama que o registro não pode validar título nulo. Em tais hipóteses, o assento carece de qualquer eficácia, ainda que formalmente lançado. A proteção ao terceiro de boa-fé não subsiste diante da nulidade originária do título. Em idêntico sentido, a jurisprudência do STJ e de diversos tribunais estaduais tem reiteradamente decidido que o registro não tem o condão de convalidar vício do título que lhe serve de base, impondo-se o cancelamento como medida inafastável.
No plano da responsabilidade civil, a falha do notário que lavrou a escritura revela-se patente, à luz do regime de responsabilidade objetiva então vigente. A omissão em verificar a legitimidade substancial dos poderes outorgados não pode ser escusada sob o manto da fé pública notarial, que, embora relevante, não é ilimitada. Também os particulares envolvidos na cadeia de atos, ao se beneficiarem de título sabidamente frágil, assumiram o risco da nulidade, devendo responder solidariamente pelos danos causados.
A solução a ser proferida, portanto, ultrapassa o interesse individual das partes, pois reafirma o princípio da higidez do fólio real e a incolumidade do sistema registral. Reconhecer a nulidade da procuração, anular os atos dela decorrentes, cancelar os registros viciados e responsabilizar os envolvidos não constitui apenas reparação de um caso concreto, mas reafirmação de valores estruturantes do Direito Civil Contemporâneo: segurança, confiança, boa-fé objetiva e proteção da função social da propriedade.
Em síntese, as alegações finais aqui delineadas conduzem a uma conclusão inafastável: a nulidade absoluta de origem não pode ser relativizada; o registro não sana vício essencial; e a boa-fé, embora juridicamente tutelada, não se sobrepõe ao dever de resguardar a ordem pública registral. O provimento da ação, com a procedência integral dos pedidos, é medida que se impõe como corolário lógico da prova produzida, da doutrina consolidada e da jurisprudência atual.
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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial n. 1.849.994/DF. Rel. Min. Moura Ribeiro. 3ª Turma. Julgado em: 21 mar. 2023. Publicado em: 24 mar. 2023.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (STJ). Recurso Especial n. 1.895.649/SP. Rel. Min. Nancy Andrighi. 3ª Turma. Julgado em: 18 mar. 2021. Publicado em: 31 mar. 2021.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Espírito Santo (TJES). Apelação Cível n. 0010428-22.2019.8.08.0024. Rel. Des. Samuel Meira Brasil Júnior. 3ª Câmara Cível. Julgado em: 25 jul. 2023. Publicado em: 1º ago. 2023.
BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR). Apelação Cível n. 0017454-61.2023.8.16.0035. Rel. Des. Hayton Lee Swain Filho. 15ª Câmara Cível. Julgado em: 11 nov. 2023. Publicado em: 13 nov. 2023.
BRASIL. Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO). Apelação Cível n. 5136537-09.2017.8.09.0029. Rel. Des. Fernando de Castro Mesquita. 9ª Câmara Cível. Julgado em: 7 jun. 2024.
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2023.
DIP, Ricardo. Responsabilidade Civil dos Notários. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2023.
TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 16. ed. São Paulo: Método, 2024.
VELOSO, Zeno. Registro de Imóveis - Doutrina e Prática. 8. ed. São Paulo: Forense, 2022.
1 STJ, REsp 1.849.994/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3.ª Turma, j. 21 mar. 2023, DJe 24 mar. 2023.
2 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 16. ed. São Paulo: Método, 2024. p. 873.
3 TJES, Apelação Cível n. 0010428-22.2019.8.08.0024, Rel. Des. Samuel Meira Brasil Júnior, 3ª Câmara Cível, j. 25 jul. 2023, publ. 1º ago. 2023.
4 STJ, REsp 1.849.994/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3.ª Turma, j. 21 mar. 2023, DJe 24 mar. 2023.
5 VELOSO, Zeno. Registro de Imóveis - Doutrina e Prática. 8. ed. São Paulo: Forense, 2022. p. 213.
6 STJ, REsp 1.849.994/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3.ª Turma, j. 21 mar. 2023, DJe 24 mar. 2023.
7 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 16. ed. São Paulo: Método, 2024. p. 873.
8 TJGO, Apelação Cível n. 5136537-09.2017.8.09.0029, Rel. Des. Fernando de Castro Mesquita, 9ª Câmara Cível, j. 07 jun. 2024.
9 TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 16. ed. São Paulo: Método, 2024. p. 873.
10 VELOSO, Zeno. Registro de Imóveis - Doutrina e Prática. 8. ed. São Paulo: Forense, 2022. p. 213.
11 TJPR, Apelação Cível n. 0017454-61.2023.8.16.0035, Rel. Des. Hayton Lee Swain Filho, 15ª Câmara Cível, j. 11 nov. 2023, publ. 13 nov. 2023.
12 TJES, Apelação Cível n. 0010428-22.2019.8.08.0024, Rel. Des. Samuel Meira Brasil Júnior, 3ª Câmara Cível, j. 25 jul. 2023, publ. 1º ago. 2023.
13 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2023. p. 403.
14 VELOSO, Zeno. Registro de Imóveis - Doutrina e Prática. 8. ed. São Paulo: Forense, 2022. p. 213.
15 TJES, Apelação Cível n. 0010428-22.2019.8.08.0024, Rel. Des. Samuel Meira Brasil Júnior, 3ª Câmara Cível, j. 25 jul. 2023, publ. 1º ago. 2023.
16 STJ, REsp 1.895.649/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3.ª Turma, j. 18 mar. 2021, DJe 31 mar. 2021.
17 STJ, REsp 1.849.994/DF, Rel. Min. Moura Ribeiro, 3ª Turma, j. 21 mar. 2023, DJe 24 mar. 2023.
18 DIP, Ricardo. Responsabilidade Civil dos Notários. 4. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2023. p. 51.
19 TJGO, Apelação Cível n. 5136537-09.2017.8.09.0029, Rel. Des. Fernando de Castro Mesquita, 9ª Câmara Cível, j. 07 jun. 2024.
Paulo Vitor Faria da Encarnação
Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.


