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O fim do foro privilegiado no Direito Constitucional brasileiro

O artigo analisa o foro privilegiado no Brasil, destacando sua origem, críticas doutrinárias, evolução jurisprudencial e impactos na igualdade, eficiência e responsabilização.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

Atualizado às 15:05

1. Introdução

A questão do foro por prerrogativa de função - usualmente denominado foro privilegiado - tem ocupado posição central no debate jurídico e político brasileiro das últimas décadas. Criado sob a justificativa de resguardar a independência e a imparcialidade do julgamento de determinadas autoridades, o instituto, todavia, passou a ser objeto de severas críticas por se converter, em grande medida, em obstáculo à efetividade da jurisdição penal, contribuindo para a morosidade processual e para a percepção social de impunidade.

A CF/88, embora tenha limitado o rol de autoridades beneficiadas com a prerrogativa de foro, manteve no ordenamento a previsão de julgamento originário por tribunais superiores, entre outros, para deputados Federais, senadores e ministros de Estado. Ocorre que, em razão da crescente judicialização da política e do elevado número de autoridades com prerrogativa, o STF e o STJ passaram a se ver assoberbados por processos criminais cuja instrução complexa não se coaduna com a função precípua de cortes de cúpula, dedicada, respectivamente, à guarda da Constituição e à uniformização da interpretação da legislação Federal.

Nesse contexto, a crítica doutrinária foi incisiva. José Afonso da Silva advertiu que o foro, em vez de resguardar a função, "acaba por se transformar em um obstáculo à justiça, criando desigualdades perante a lei". Alexandre de Moraes acentuou que a manutenção ampla do instituto representa "um desvio dos princípios da igualdade e da moralidade". Pedro Lenza reforçou que a restrição ao foro atende ao princípio republicano, na medida em que limita privilégios processuais incompatíveis com a democracia.

A jurisprudência acompanhou essa virada. No julgamento da AP 937, o STF restringiu o foro aos crimes cometidos durante o mandato e em razão das funções desempenhadas, estabelecendo ainda que, após a intimação para alegações finais, a competência não poderia mais oscilar. Decisões posteriores, como as ADIns 6.502 e 6.504, reafirmaram a interpretação restritiva, declarando inconstitucionais normas estaduais que ampliavam hipóteses de foro especial. O STJ, em precedentes como a AP 857 e a AP 874, seguiu a mesma linha, limitando a prerrogativa a fatos praticados no exercício do cargo e em razão dele.

O presente artigo parte desse cenário de transformação crítica para investigar os fundamentos constitucionais e processuais do foro por prerrogativa de função, a evolução de sua interpretação jurisprudencial, as principais contribuições doutrinárias e, sobretudo, os impactos práticos da sua restrição para a responsabilização dos agentes públicos, para o fortalecimento da primeira instância e para a despolitização dos tribunais superiores. A hipótese de trabalho é que o foro, em sua forma ampla, não se coaduna com o Estado Democrático de Direito, devendo ser reduzido a limites funcionais estritos, sob pena de desvirtuar os princípios republicano, da igualdade e do juiz natural.

2. Fundamentos constitucionais e processuais do foro por prerrogativa de função

2.1 Origem e função do foro especial

A instituição do foro por prerrogativa de função remonta a um contexto histórico em que a proteção ao exercício de determinados cargos era entendida como condição de possibilidade para a própria estabilidade da ordem política. A ideia central consistia em submeter certas autoridades a julgamento por órgãos jurisdicionais superiores, a fim de evitar perseguições judiciais locais ou manipulações políticas que pudessem comprometer a independência funcional. Trata-se, pois, de uma construção que, no plano teórico, se apresentava menos como privilégio pessoal e mais como mecanismo de resguardo institucional.

Todavia, a trajetória desse instituto demonstra a progressiva transformação de uma prerrogativa funcional em verdadeira desigualdade processual. Com efeito, embora concebido para assegurar imparcialidade e isenção no julgamento de autoridades, o foro especial converteu-se, em muitos casos, em espaço de morosidade e de inefetividade da jurisdição penal, fomentando a percepção social de impunidade. José Afonso da Silva já advertia que, longe de servir à proteção das funções estatais, o foro privilegiado "acaba por se transformar em um obstáculo à justiça, criando desigualdades perante a lei". Na mesma linha, Alexandre de Moraes ressalta que a manutenção do foro em larga escala significa um desvio dos princípios republicanos da igualdade e da moralidade.

A jurisprudência dos tribunais superiores confirma essa tensão entre a função originária e os efeitos concretos do instituto. O STF, ao julgar a ADIn 4.430, afirmou a necessidade de interpretação restritiva do art. 102, I, "c", da Constituição, reconhecendo que o foro por prerrogativa deve circunscrever-se apenas aos crimes cometidos no exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. O STJ, no HC 462.361, reafirmou a mesma diretriz, destacando que a perda do foro ocorre automaticamente com a vacância do cargo público.

Assim, o foro especial apresenta-se, em sua origem, como garantia de independência e de imparcialidade; em sua prática atual, contudo, revela-se incompatível com os princípios republicanos da igualdade e da moralidade, o que explica a guinada hermenêutica dos tribunais na direção de sua restrição. A função que outrora justificava a sua existência tem sido progressivamente substituída por argumentos de eficiência, transparência e accountability, que clamam por sua revisão.

2.2 O foro e o princípio da igualdade (art. 5º, "caput", CF/88)

O foro por prerrogativa de função confronta-se, de modo inevitável, com o princípio constitucional da igualdade. A Constituição, ao estabelecer em seu art. 5º que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", consagrou a isonomia como fundamento normativo da República, exigindo tratamento jurídico uniforme a todos os cidadãos. A exceção criada pelo foro especial introduz, portanto, um regime de julgamento diferenciado que, se por um lado busca proteger o exercício de cargos públicos, por outro rompe a homogeneidade do sistema jurisdicional.

A doutrina tem apontado esse descompasso como fator de corrosão da legitimidade do instituto. Pedro Lenza sustenta que a restrição ao foro privilegiado adequa-se ao sistema republicano, pois limita privilégios processuais incompatíveis com a democracia. Nessa mesma perspectiva, Guilherme de Souza Nucci critica o caráter excepcional do foro, lembrando que, se todos são iguais perante a lei, somente razões muito relevantes poderiam afastar o réu de seu juiz natural. Mais enfático, José Afonso da Silva descreve o foro privilegiado como uma exceção histórica à igualdade, que desfigura o próprio sentido do princípio.

A jurisprudência dos tribunais superiores também tem caminhado nesse sentido. No julgamento da AP 937, o STF restringiu a prerrogativa apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e em razão das funções desempenhadas, reconhecendo que a ampliação do foro afrontaria diretamente o princípio da igualdade. Na mesma linha, o STJ, em diversos precedentes, seguiu a orientação do Supremo, reduzindo a abrangência do foro e reafirmando que ele não pode ser interpretado como privilégio pessoal, mas apenas como garantia funcional.

Assim, ao confrontar-se com o princípio da igualdade, o foro privilegiado revela sua face paradoxal: concebido como mecanismo de equilíbrio institucional, converte-se em vetor de desigualdade, porquanto confere a determinadas autoridades uma posição processual diferenciada e, na prática, mais favorável. O resultado é a inversão do mandamento republicano, produzindo um efeito similar ao denunciado por Orwell em sua sátira política: todos são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.

2.3 O foro e o princípio republicano e do juiz natural

A CF/88 não apenas erigiu a igualdade como valor fundamental, mas também reafirmou, em seu art. 1º, o princípio republicano, que exige a responsabilização de todos os agentes públicos e a rejeição de privilégios pessoais incompatíveis com a democracia. A prerrogativa de foro, quando interpretada em chave ampla, revela-se tensionada com esse princípio, pois desloca o julgamento de autoridades para instâncias excepcionais, criando uma espécie de blindagem institucional que contraria o ideal republicano de sujeição universal às mesmas regras de responsabilização.

A essa crítica soma-se a violação ao princípio do juiz natural, consagrado no art. 5º, LIII, da CF, que assegura a todos o direito de não serem processados senão pela autoridade competente previamente estabelecida. O foro especial, ao retirar do cidadão comum o juiz que julgaria casos semelhantes, cria uma ruptura com a ordem natural de competências. Guilherme Nucci observa que, se todos são iguais perante a lei, somente razões excepcionalíssimas poderiam justificar afastar o réu de seu juiz natural.

O STF, em precedentes paradigmáticos, reconheceu a excepcionalidade dessa prerrogativa. Na ADIn 6.502, relator ministro Roberto Barroso, assentou-se a inconstitucionalidade de normas estaduais que ampliavam hipóteses de foro especial, sob o fundamento de que a Constituição da República esgotou o rol de autoridades beneficiadas e que qualquer ampliação violaria o pacto republicano e a garantia do juiz natural. Em linha semelhante, a ADIn 6.504, relatora ministra Rosa Weber, reforçou que a extensão do foro é incompatível com a simetria constitucional, devendo ser interpretada restritivamente.

O STJ também enfrentou a questão ao decidir, em questão de ordem na AP 857, que o foro de governadores e conselheiros de tribunais de contas deve restringir-se a fatos praticados no exercício e em razão do cargo. O voto prevalente, de ministro João Otávio de Noronha, destacou que o foro por prerrogativa de função constitui exceção ao princípio republicano e ao juiz natural, devendo ser reduzido a limites estritos.

Nesse quadro, a manutenção do foro amplo e difuso aparece como incompatível tanto com o princípio republicano quanto com o direito fundamental ao juiz natural. Ao privilegiar a forma sobre a substância, cria-se um paradoxo: aquilo que deveria assegurar a imparcialidade converte-se em obstáculo à própria legitimidade democrática. A hermenêutica restritiva consagrada pela jurisprudência busca corrigir esse descompasso, restabelecendo a supremacia dos princípios constitucionais estruturantes sobre práticas históricas que já não encontram justificação no Estado Democrático de Direito.

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Paulo Vitor Faria da Encarnação

VIP Paulo Vitor Faria da Encarnação

Mestre em Direito Processual. UFES. [email protected]. Advogado. OAB/ES 33.819. Santos Faria Sociedade de Advogados.

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