O falecimento do juiz Frank Caprio e o caso da jurisdição municipal
Aborda o legado do juiz Frank Caprio, famoso por vídeos Caught in Providence, destacando sua contribuição à jurisdição municipal e a necessidade de revitalização das cortes locais no Brasil.
segunda-feira, 25 de agosto de 2025
Atualizado às 11:09
I. Introdução
Em 20 de agosto de 2025, aos 88 anos, após travar uma longa batalha contra um câncer de pâncreas, faleceu o Dr. Frank Caprio, um juiz norte-americano. Nascido em 1936, ele foi juiz-chefe do Tribunal Municipal de Providence, em Rhode Island, posição que ocupou de 1985 até sua aposentadoria em 2023.
Ao longo de sua carreira judicial, Caprio se destacou por sua empatia, bom humor e compreensão - qualidades que se tornaram marca registrada de sua atuação. Seu programa televisivo Caught in Providence, que mostrava casos de infrações menores resolvidos humanamente no tribunal, ganhou viralidade mundial, especialmente a partir do YouTube e demais redes sociais. Acumulou centenas de milhões de visualizações, ressaltando que a justiça pode ser aplicada com equidade e sabedoria.
Deixou como legado a criação de bolsas de estudo em diversas instituições - como Providence College e Suffolk Law School.
Em sua memória, o presente texto discute uma questão obliterada no Brasil: o desaparecimento da jurisdição municipal.
II. Jurisdição local
Em janeiro de 2022, publiquei um breve texto1 a respeito da proposta de "reforma do judiciário" do então candidato Sérgio Moro. A crítica estava centrada na seguinte ideia: uma reforma destinada unicamente ao Judiciário está fadada a ser incompleta. O que demandaria reforma seria um conceito maior, o de Administração da Justiça.
Ao final daquele artigo, trouxe ao debate uma situação que gerou certa estranheza: a necessidade de inclusão dos municípios na ideia de "Administração da Justiça". Recordei o pensamento do advogado e constitucionalista capixaba, Luiz Otávio Rodrigues Coelho, que desde o final da década de 1980 já alertava sobre a necessidade de reintrodução dos municípios - ainda que mitigada - no discurso da Administração da Justiça.
A experiência, por exemplo, dos Juizados Especiais poderia ser muito facilitada com a capacidade de capilarização dos Municípios. Ainda que fossem mantidos os recursos para os órgãos judicantes estaduais, isto permitiria repensar os custos envolvidos na jurisdição de pequenas causas e como poderia ser diluído com órgãos municipais as fases de conciliação e até sentença em matérias singelas.
II.1. "Defensorias Municipais"
No Brasil, a desconfiança geral contra os municípios e a ideia de Jurisdição é forte. Até pouco tempo, um tema bem mais simples era matéria de enorme controvérsia: se os municípios teriam permissão constitucional para a manutenção de serviço de advocacia para a população hipossuficiente. Até que em 2021 o Supremo Tribunal julgou a ADPF 279, com voto condutor da ministra Cármen Lúcia, reconhecendo a constitucionalidade de serviços de assistência jurídica municipal: um "serviço público para auxílio da população economicamente vulnerável do município, facilitando a cada pessoa o acesso à jurisdição".2
II.2. Jurisdição local no Brasil
Em esclarecedor texto publicado em 2008, Vladimir Passos de Freitas traz uma valiosa análise do Poder Judiciário brasileiro. O artigo Lição da História: Juízes municipais podem solucionar lentidão da Justiça3 começa informando que os juízes municipais não eram conhecidos no Brasil-Colônia. Todavia, a Constituição de 1824, a primeira após a proclamação da independência, "previu os juízes de Direito (art. 153) e os juízes de paz (art. 162). Em 29 de novembro de 1832, foi promulgado o Código do Processo Criminal de primeira instância, com disposição provisória acerca da administração da Justiça Civil. Este diploma, nos arts. 32 a 35, tratou pela primeira vez dos juízes municipais."4
Segue aquele autor tratando da história do Judiciário, e os casos de permanência de juízes municipais, até pouco tempo antes da Constituição de 1988. Demonstrava que os juízes municipais atuaram tanto com competência cível quanto criminal, eram selecionados dentre bacharéis em Direito ou até mesmo com exigência de experiência como advogados, e tinham alguma forma de independência em certos casos, nem que fosse no período de um "mandato".
E concluiu que será possível afirmar que a discussão a respeito da jurisdição municipal é válida, e a criação de uma Justiça Municipal deveria ser precedida de estudos por cientistas. Ao final, preconizada que, de alguma forma, seria imprescindível uma supervisão dos Tribunais de Justiça, a fim de que essa nova forma de Justiça tivesse uniformidade no âmbito do território estadual. Em suma, a atividade de eventual recurso deveria ser ao Judiciário Estadual. Mas, seria uma forma de desafogar a jurisdição de "pequenas causas".
II.3. "Municipal Courts": a visão de Alexandra Natapoff.
Segundo a professora norte-americana Alexandra Natapoff5, a Cortes municipais são o escalão menos examinado do sistema de justiça dos Estados Unidos. Chegam a ser amplamente ignoradas por estudiosos do sistema de justiça, e, pasme, mesmo por pesquisadores do Direito Local e governança municipal. Esses tribunais controlados pelas cidades operam praticamente à margem de uma uniformização e sistematização. Faltam até mesmo aos potenciais pesquisadores informações públicas básicas sobre seus registros, casos, decisões.
Somente nos Estados Unidos, há cerca de 7.500 desses tribunais em trinta estados. Coletivamente, eles processam mais de três e meio milhões de casos todos os anos e arrecadam pelo menos dois bilhões de dólares em multas e taxas.
Criados, financiados e controlados pelos "municípios" (governos locais, seria um termo mais preciso), esses tribunais - às vezes referidos como tribunais de "justiça", "justiça rápida" ou "Cortes Policiais" - são fundamentais para a capacidade das cidades de policiar, manter a segurança pública e, até mesmo, aumentar a receita.
Ao mesmo tempo, são acusadas de muitas disfunções: velocidade insuficiente, desleixo legal (ou profissionais com pouca formação jurídica), excessivo rigor punitivo e tratamento desrespeitoso das partes, especialmente os réus em ações criminais.
A respeito da insuficiência na formação jurídica, a Suprema Corte dos EUA dispensou formalmente esses tribunais de algumas restrições legais básicas: os juízes não precisam ser advogados, enquanto os processos são muitas vezes sumários e não têm registro mais preciso.
Essas instituições híbridas apresentam, assim, desafios conceituais espinhosos: são entidades jurídicas autônomas que também são braços do governo municipal operando sob condições reduzidas. Acabam ainda com laços com os "legislativos municipais" ou os conselhos das cidades, quando estes interferem nas nomeações. Mas são parte do Judiciário Estadual.6
Essas cortes recebem ainda a crítica severa de serem geradoras de inúmeras tensões com as normas modernas de devido processo legal, independência judicial e outras de integridade de um tribunal criminal.
O artigo de Natapoff mantém uma sensível isenção científica. Ainda que afirme que os tribunais municipais se desviam substancialmente do modelo clássico de tribunais como guardiões neutros e independentes da lei, acaba reconhecendo que esses mesmos tribunais são veículos para as cidades expressarem sua autonomia política e redistribuam riquezas, constituindo-se assim motores subestimados da governança local.
Há ainda a crítica contra esses juízes municipais criminais contribuírem para a política de encarceramento em massa, ameaçando a integridade de algumas características fundamentais do Processo Penal. Mas, do outro lado, representam uma oportunidade potencialmente atraente para tornar as instituições criminais mais responsivas localmente.
A autora sugere uma reforma substancial. Se a justiça municipal revela uma profunda dinâmica na base da pirâmide penal, com casos de baixo status, também exercem uma influência formativa sobre o próprio direito. Essas complexidades fazem qualquer reforma especialmente desafiadora. A reforma mais profunda seria parar descartar esses tribunais como instituições menores e inferiores e levá-los - e seus milhões de réus - mais a sério quando debate jurídico, política e políticas públicas.
II.3.1. A resposta de Brendan D. Roediger
Como é deveras comum na academia americana, no número seguinte da Harvard Law Review (134, n. 4), sobreveio um texto contundente de Brendan D. Roediger, sob o título: Abolish Municipal Courts: A response to Professor Natapoff7. Roedinger no próprio artigo de resposta confessa abertamente, é um ferrenho abolicionista penal e, por isso, é radicalmente contrário à própria existência da ideia de Cortes Municipais Criminais.
Não vou entrar nos questionamentos mais particulares para a cultura jurídica americana. Somente trazer os mais práticos, que ligam ao dia a dia:
a) O possível uso de imposição de fianças e do encarceramento em massa para extorsão de recursos de pessoas pobres;
b) Criação de outros custos, como multas e sanções diversas, para arrecadação de recursos.
Já são riscos terríveis demais para serem desconsiderados. Porém, a realidade brasileira não parece importar esses riscos. Primeiro, pois não já gerenciamento de instalações de prisões pelos Municípios e, por outro lado, as sanções processuais são fixadas em legislação nacional.
Cabe ainda trazer uma consideração. Aqui vale notar a diferença da ferocidade das respostas acadêmicas nos Estados Unidos: se fosse aqui no Brasil, já teria causado espanto, quando não escândalo. Roediger ataca os predicados das Cortes Municipais referidas por Natapoff, inclusive imputando vários autores como sendo "nazistas". A carta na manga de atacar o autor e não a ideia. Assim como Roediger buscou reduzir, por exemplo, a defesa que Roscoe Pound fazia de uma experiência de Corte Municipal - já que Pound recebeu um título honoris causa em Berlim em 1934 e teria dito que não viu ataques antissemitas na Alemanha.8
III. Conclusão
A grande contribuição do Juiz Frank Caprio para o mundo do Direito pode não ter sido legar grandes obras jurídicas de filosofia ou sociologia. Não plantou uma "Teoria Mirabolante" do Direito. Operou, contudo, com sobriedade, conhecimento da vida, conhecimento da comunidade sobre a qual exercia a jurisdição - e, como diria o magistrado José João Calanzani, em entrevista ao sítio eletrônico da Associação Mineira de Magistrados, aplicando o saber e a sabedoria, das virtudes esperadas do juiz: o saber, das normas acadêmicas, a sabedoria, a doutrina da vida.9
O jurista-ao-rés-do-chão. O jurista da valorização do problema real, do ser humano, e não das ficções jurídicas. Frank Caprio cumpriu tal papel. E tendo cumprido com maestria, ajudou a deixar um legado de que nas "cortes locais" é amplamente possível a "administração da justiça".
Descanse em paz.
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Referências
1 Alochio, Luiz Henrique Antunes. Reformar o Poder Judiciário não é suficiente. Consultor Jurídico (Conjur). São Paulo. 30 de janeiro de 2022. https://www.conjur.com.br/2022-jan-30/alochio-reformar-poder-judiciario-nao-suficiente
2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 279. Relatora Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 03/11/2021. Diário da Justiça. Divulgado em 11-02-2022 . Publicado em 14-02-2022. Brasília. DF.
3 Freitas, Vladmir Passos de. Juízes municipais podem solucionar lentidão da Justiça. Conjur. 28/02/2008. https://www.conjur.com.br/2008-fev-28/juizes_municipais_podem_solucionar_lentidao_justica/
4 Freitas (2008)
5 Natapoff, Alexandra. Criminal Municipal Courts. 134 Harv. L. Rev. 964. Janeiro. 2021. https://harvardlawreview.org/print/vol-134/criminal-municipal-courts/
6 Vide o trecho: "Por exemplo, a maioria dos tribunais sustenta que as Cortes municipais não estão sujeitas às restrições da separação de poderes e, portanto, seus laços estreitos com o poder executivo ou com os conselhos municipais não são problemáticos constitucionalmente. No entanto, conforme descrito abaixo, os tribunais municipais podem ser tratados como parte do judiciário estadual para fins de duplo risco (nota nossa: vedar duplo processo criminal pelo mesmo fato), imunidade de estados soberanos e reivindicações de direitos civis de acordo com a seção 1983." Natapoff. (2021). p. 998.
7 Roediger, Brendan D. Abolish Municipal Courts: A response to Professor Natapoff. Harvard Law Review. Vol. 134. N. 04. Fev. 2021. Acessível em: https://harvardlawreview.org/2021/02/abolish-municipal-courts-a-response-to-professor-natapoff/
8 A respeito das ligações de Roscoe Pound com figura proeminentes ligadas ao Nacional Socialismo, ver o artigo com farta referência a dados e documentos: Peter Rees, Nathan Roscoe Pound and the Nazis, 60 B.C.L. Rev.1313 (2019), https://lawdigitalcommons.bc.edu/bclr/vol60/iss5/2
9 http://www.amagis.com.br/home/index.php?option=com_content&task=view&id=8745&Itemid=127


