ISS e descontos: A primazia da realidade econômica na base de cálculo
Investigação da base tributária do ISS quando há descontos, propondo análise temporal que supera a dicotomia civilista entre descontos condicionados e incondicionados.
terça-feira, 26 de agosto de 2025
Atualizado às 09:58
Conta-se uma antiga parábola indiana sobre seis homens cegos que, nunca tendo encontrado um elefante, foram levados até um para conhecê-lo. O primeiro tocou a tromba e disse: "Este animal é como uma serpente." O segundo tocou a orelha e exclamou: "É como um leque!" O terceiro, tocando a perna, afirmou: "É como um pilar." O quarto, sentindo o lado, disse: "É como uma parede." O quinto, segurando a cauda, concluiu: "É como uma corda." E o sexto, tocando a presa, declarou: "É como uma lança." Discutiram ferozmente, cada um certo de sua própria verdade, sem perceber que suas percepções parciais os impediam de compreender a totalidade do elefante.
Esta parábola ressoa perfeitamente no debate tributário, como se observa na discussão sobre a base de cálculo do ISS - Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza e a complexa questão dos descontos. Assim como os homens cegos, que se apegavam a uma parte do elefante e perdiam a visão do todo, a Fazenda Pública, por vezes, apega-se a uma visão parcial do "preço do serviço" - o valor nominal - ignorando a realidade econômica da transação e a verdadeira totalidade da receita efetivamente auferida pelo prestador.
A questão central reside em discernir se a base de cálculo do ISS deve ser o valor nominal do serviço, antes de qualquer abatimento, ou o montante efetivamente percebido pelo prestador. O presente artigo propõe-se a analisar essa controvérsia, argumentando que a base de cálculo do ISS deve refletir o valor da receita que, de fato e de forma definitiva, ingressa no patrimônio do contribuinte, independentemente de condicionamentos prévios que, no momento da prestação do serviço, já se encontrem superados.
A natureza jurídica do "preço do serviço": Receita efetiva versus valor nominal
A competência municipal para instituir o ISS, conferida pelo art. 156, inciso III, da Constituição Federal, encontra-se balizada por princípios e conceitos que garantem a harmonia do sistema tributário. A LC 116/03, em seu art. 7º, estabelece que a base de cálculo do imposto é o "preço do serviço". Embora aparentemente singela, essa formulação comporta uma riqueza interpretativa fundamental à luz dos princípios constitucionais tributários e da própria natureza dos tributos sobre o consumo.
O verdadeiro sentido de "preço do serviço", para fins de incidência do ISS, é o da receita efetivamente auferida e definitivamente incorporada ao patrimônio do prestador. Esta concepção fundamenta-se no princípio da capacidade contributiva (art. 145, § 1º, da CF), que exige correspondência entre a tributação e a efetiva manifestação de riqueza do contribuinte. Tributar valor que não ingressou no patrimônio do prestador viola a essência desse princípio constitucional, pois inexiste disponibilidade econômica correspondente.
A doutrina que sustenta a tributação do valor nominal, desconsiderando abatimentos efetivos, baseia-se numa interpretação literal e descontextualizada da expressão "preço do serviço". Contudo, essa visão ignora que a interpretação de normas tributárias deve ser teleológica, buscando a finalidade constitucional do tributo. Como ensina Paulo de Barros Carvalho, a base de cálculo deve guardar pertinência lógica com o aspecto material da hipótese de incidência, representando a dimensão econômica do fato tributário.
A jurisprudência consolidada em matéria de impostos sobre o consumo converge para o entendimento de que a base tributável deve ser a receita real e disponível ao contribuinte. O STJ, no EDcl no REsp 1.412.951/PE, estabeleceu que "não há base econômica imponível para fazer incidir o ISS sobre valor não recebido pelo prestador", consolidando o entendimento de que a base de cálculo deve refletir a realidade econômica da transação.
A temporalidade na formação da base de cálculo: Superação da dicotomia civilista
A distinção tradicional entre descontos condicionados e incondicionados, frequentemente invocada pela Fazenda Pública, deriva de conceitos do Direito Civil que se mostram inadequados para o contexto tributário. O art. 121 do CC define condição como "cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto". Essa definição, porém, não pode ser transplantada mecanicamente para o Direito Tributário, onde a primazia da substância econômica sobre a forma se faz imperativa.
No contexto tributário, a análise da "condicionalidade" deve considerar o momento do fato gerador como marco temporal decisivo. A questão relevante não é se o desconto decorreu de condição prévia, mas se, no instante da prestação do serviço, o valor reduzido representa a receita efetivamente auferida pelo prestador. A temporalidade jurídica revela que um desconto, ainda que originalmente condicionado, torna-se funcionalmente incondicionado quando a prestação ocorre com preço já consolidado.
Paulo Ayres Barreto, em análise precisa sobre a matéria, destaca que "a operação tributada deve ser analisada em sua autonomia, considerando-se as circunstâncias presentes no momento do fato gerador". Essa doutrina da separação temporal das operações é fundamental para compreender que eventos pretéritos, mesmo que tenham gerado direitos futuros, não contaminam a análise da base de cálculo da operação atual.
O TJ/SP tem sido categórico nessa distinção temporal, reconhecendo que "os descontos são concedidos conforme o preenchimento dos requisitos analisados com base em operações pretéritas, sem condicionamentos a eventos futuros e incertos" e que "o preço que a instituição financeira cobra não é condicionado a evento futuro e incerto, mas sim decorrente de evento pretérito" (TJ/SP, Apelação 9000173-38.2013.8.26.0090 e Apelação 1022635-37.2016.8.26.0053).
O STJ consolidou conceituação precisa ao estabelecer que "os descontos incondicionados são aqueles ajustados livremente entre o contribuinte e o seu cliente/consumidor para a fixação do preço em momento anterior à realização do fato gerador; já os descontos condicionados são aqueles relacionados com obrigação a ser adimplida pelo cliente/consumidor em momento posterior à realização do fato gerador" (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.893.596/SP).
A Receita Federal, em entendimento administrativo consolidado na Solução de Consulta Cosit 49/15, reconhece como incondicionados descontos decorrentes de acúmulo de "créditos" utilizados posteriormente, validando a separação temporal entre a aquisição do direito e sua fruição. Esse alinhamento administrativo corrobora a tese de que a natureza do desconto deve ser analisada no momento de sua efetiva aplicação, não em sua origem.
Descontos por indicação: Modelo de negócio em que se oferece descontos condicionados ao número de indicações geradas pelo cliente
O modelo de negócio que oferece descontos condicionados ao número de indicações geradas pelo cliente ilustra perfeitamente a complexidade da questão. Quando o cliente, tendo cumprido a meta de indicações, contrata novo serviço com preço reduzido, surge o dilema: deve-se tributar o valor nominal ou o valor efetivamente cobrado?
A análise deve partir da estrutura temporal jurídica da operação:
Momento 1 - Cumprimento dos requisitos: O cliente atinge a meta de indicações, adquirindo definitivamente o direito ao desconto. A vantagem comercial se cristaliza.
Momento 2 - Fato gerador do ISS: O cliente contrata novo serviço. Esta é operação tributária autônoma, onde inexiste subordinação a evento futuro e incerto para aplicação do desconto.
Momento 3 - Determinação da base de cálculo: A base deve corresponder ao valor efetivamente recebido, ou seja, o preço já com desconto aplicado.
O STJ, no EDcl no REsp 1.412.951/PE, estabeleceu que "se o desconto não é condicionado, não há base econômica imponível para fazer incidir o ISS sobre valor não recebido pelo prestador". O mesmo Tribunal reconheceu que "o desconto incondicionado, concedido por liberalidade do prestador sem qualquer imposição, reduzirá o valor do serviço, com reflexo para o Fisco que, em decorrência da liberalidade, receberá menos tributo".
O TJ/RS, em precedente técnio e preciso, reconheceu que "o desconto incondicional é aquele concedido pela empresa sem qualquer contraprestação do comprador, não se subordinando a qualquer ato após a emissão do documento fiscal" (TJ/RS, Remessa necessária 5002604-05.2020.8.21.0027), reforçando a autonomia temporal de cada operação tributária.
A automaticidade na aplicação do desconto revela sua natureza incondicionada no momento da nova prestação. O valor correspondente ao abatimento nunca transita pelo patrimônio do prestador como receita, constituindo redução prévia do preço final. Exigir ISS sobre o valor nominal seria tributar receita fictícia, contrariando o postulado constitucional da capacidade contributiva.
O TJ/SP consolidou esse entendimento ao reconhecer que "uma eventual alteração do perfil do cliente implicaria na mudança da tarifa para os meses seguintes, mas não no cancelamento do desconto referente aos meses anteriores" (TJ/SP, Apelação 1022635-37.2016.8.26.0053), demonstrando a autonomia temporal de cada operação tributária.
A convergência doutrinária e jurisprudencial
A doutrina tem convergido para o entendimento de que a base de cálculo do ISS deve refletir a realidade econômica da prestação. Aires Fabio Barreto, em obra clássica sobre o tema, sustenta que "o preço do serviço, para fins de ISS, é aquele efetivamente praticado na operação, considerando-se todas as circunstâncias que influenciam na formação do valor final".
Alfredo Augusto Becker, em sua Teoria Geral do Direito Tributário, já alertava para os riscos da importação acrítica de conceitos de outros ramos do Direito, defendendo que "a interpretação das normas tributárias deve considerar a especificidade dos fenômenos econômicos que pretende regular". Essa lição permanece atual e orienta a compreensão de que a análise da condicionalidade dos descontos deve partir de premissas tributárias, não civilistas.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores tem evoluído no sentido de privilegiar a substância econômica sobre aspectos meramente formais. O STJ, no julgamento de casos paradigmáticos em matéria tributária, tem reafirmado que "a tributação deve incidir sobre manifestações concretas de capacidade contributiva, não sobre ficções jurídicas ou contábeis".
O TJ/SP, em múltiplos precedentes envolvendo grandes instituições financeiras, tem reconhecido sistematicamente que descontos baseados em relacionamento pretérito constituem formação de preço, não liberalidade posterior (TJ/SP, Apelações 9000173-38.2013.8.26.0090 e 1022635-37.2016.8.26.0053)
Conclusão: O imperativo da realidade econômica
A discussão sobre a inclusão de descontos na base de cálculo do ISS transcende a mera formalidade e adentra o campo da delimitação constitucional da competência tributária. Em casos como os descontos por indicação, onde a condição se materializa antes da prestação do serviço, o valor reduzido representa a verdadeira receita do prestador.
O desconto, embora originalmente condicionado, assume natureza incondicionada no momento da incidência do ISS, uma vez que o montante correspondente nunca ingressa no patrimônio do contribuinte. Ignorar essa realidade econômica seria criar base de cálculo artificial, em descompasso com o postulado da capacidade contributiva e com a própria definição de "preço do serviço" como receita efetivamente percebida.
A convergência jurisprudencial é notável. O TJ/SP, em múltiplos precedentes envolvendo grandes instituições financeiras, tem reconhecido sistematicamente que descontos baseados em relacionamento pretérito constituem formação de preço, não liberalidade posterior. Essa orientação, alinhada com o entendimento do STJ sobre a natureza da base de cálculo nos impostos sobre o consumo, consolida a tese de que a tributação deve incidir sobre a receita efetivamente auferida, não sobre valores fictícios que jamais integraram o patrimônio do prestador.
A uniformidade jurisprudencial observada nos Tribunais de Justiça demonstra a consolidação da tese de que a base de cálculo do ISS deve corresponder à receita efetivamente auferida pelo prestador, respeitando-se a autonomia temporal de cada operação tributária e o princípio constitucional da capacidade contributiva.
A administração tributária deve alinhar-se a essa compreensão mais sofisticada, garantindo que o ISS incida apenas sobre aquilo que constitui receita efetiva do contribuinte. O desafio é assegurar que a exigência fiscal não se estenda sobre valor que nunca integrou o preço real da prestação, preservando a coerência constitucional do sistema tributário e permitindo que todos enxerguem o "elefante" em sua totalidade.
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Referências
BARRETO, Aires F. ISS na Constituição e na Lei. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2009.
BARRETO, Paulo Ayres. A Base de Cálculo do ISS e os Descontos Incondicionados. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 17, nº 45, p. 99-111, Outubro-Dezembro/2016.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Noeses, 2018.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
RECEITA FEDERAL DO BRASIL. Solução de Consulta Cosit nº 49/2015.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. EDcl no REsp 1.412.951/PE. Relatora: Min. Eliana Calmon. Segunda Turma. Julgamento: 17/12/2013. Publicação: 07/02/2014.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt nos EDcl no REsp 1.893.596/SP. Relator: Min. Gurgel de Faria. Primeira Turma. Julgamento: 28/02/2023. DJe: 07/03/2023.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AREsp 2931186/PR. Relator: Min. Sérgio Kukina. Decisão monocrática. Julgamento: 25/06/2025.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Apelação nº 9000173-38.2013.8.26.0090. Relator: Des. Eurípedes Faim. 15ª Câmara de Direito Público. Julgamento: 01/03/2024.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Apelação nº 1022635-37.2016.8.26.0053. Relator: Des. Eurípedes Faim. 15ª Câmara de Direito Público. Julgamento: 06/09/2018.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO RIO GRANDE DO SUL. Remessa Necessária nº 5002604-05.2020.8.21.0027. Relatora: Des. Laura Louzada Jaccottet. 2ª Câmara Cível. Julgamento: 16/06/2021.


