Acordo entre as partes e a autonomia dos honorários sucumbenciais
Os honorários sucumbenciais fixados judicialmente constituem direito autônomo, não são acessórios da condenação e subsistem mesmo após acordo entre as partes do processo.
quinta-feira, 28 de agosto de 2025
Atualizado às 10:48
Introdução
A natureza jurídica dos honorários sucumbenciais sofreu relevante evolução no âmbito do Direito Processual Civil brasileiro. Tradicionalmente concebidos como um direito da parte vencedora - ressarcimento das despesas processuais da parte -; atualmente são reconhecidos como direito autônomo e de titularidade exclusiva da advocacia.
O novo enquadramento jurídico encontra respaldo no CPC/15 e no Estatuto da Advocacia (lei 8.906/1994), refletindo a valorização da profissão como função indispensável à administração da justiça, nos termos do art. 133 da Constituição da República de 1988.
Nesta perspectiva, o capítulo da decisão judicial relativo à fixação de honorários não mais se apresenta como acessório ou dependente da condenação principal, mas como direito próprio e independente, pertencente ao causídico.
A 1ª seção do STJ, ao apreciar o Tema 608, consolidou este entendimento:
"No direito brasileiro, os honorários de qualquer espécie, inclusive os de sucumbência, pertencem ao advogado; e o contrato, a decisão e a sentença que os estabelecem são títulos executivos, que podem ser executados autonomamente, nos termos dos arts. 23 e 24, §1º, da Lei 8.906/1994, [...].
A sentença definitiva, ou seja, em que apreciado o mérito da causa, constitui, basicamente, duas relações jurídicas: a do vencedor em face do vencido e a deste com o advogado da parte adversa. Na primeira relação, estará o vencido obrigado a dar, fazer ou deixar de fazer alguma coisa em favor do seu adversário processual. Na segunda, será imposto ao vencido o dever de arcar com os honorários sucumbenciais em favor dos advogados do vencedor.
Já na sentença terminativa, como o processo é extinto sem resolução de mérito, forma-se apenas a segunda relação, entre o advogado e a parte que deu causa ao processo, o que revela não haver acessoriedade necessária entre as duas relações.
Assim, é possível que exista crédito de honorários independentemente da existência de crédito 'principal' titularizado pela parte vencedora da demanda.
Os honorários, portanto, constituem direito autônomo do causídico, que poderá executá-los nos próprios autos ou em ação distinta.
Diz-se que os honorários são créditos acessórios porque não são o bem da vida imediatamente perseguido em juízo, e não porque dependem de um crédito dito 'principal'. Assim, não é correto afirmar que a natureza acessória dos honorários impede que se adote procedimento distinto do que for utilizado para o crédito 'principal' [...]".
Entretanto, a aplicação prática da autonomia dos honorários ainda encontra resistência jurisprudencial, particularmente em hipóteses de autocomposição entre as partes sem a participação ou anuência do(a) advogado(a) e antes do trânsito em julgado da decisão. Esta dificuldade decorre, em grande medida, da jurisprudência formada no regime anterior, que concebia os honorários como direito da parte.
Diante desse cenário, o presente artigo analisará a autonomia dos honorários sucumbenciais a partir da jurisprudência do STJ.
Autonomia dos honorários sucumbenciais: Fundamentos legais
A sentença de mérito regulamenta a relação jurídica de direito material entre as partes discutida em juízo e, também, constitui o direito autônomo aos honorários.
Portanto, eventual composição entre os litigantes acerca da relação de direito material, ainda que homologada judicialmente, não tem o condão de comprometer a higidez da verba honorária fixada.
Isso porque a sentença de mérito apresenta natureza objetivamente complexa, estabelecendo duas relações jurídicas distintas e independentes: (i) entre as partes do processo, a partir da solução do conflito de interesses substancial; e (ii) entre o advogado da parte vencedora com a parte adversa, relativamente aos honorários.
O acordo celebrado entre as partes possui aptidão apenas para afetar a primeira relação jurídica, não alcançando a segunda, que permanece íntegra. Qualquer interpretação em sentido contrário implicaria, em última análise, negar a autonomia da verba honorária, reduzindo-a a condição de acessória e subordinada à condenação principal, o que se mostra incompatível com o regime jurídico consolidado no CPC/15 e no EOAB.
A jurisprudência, equivocadamente, tende a reconhecer que o acordo firmado e homologado judicialmente, antes do trânsito em julgado da sentença que fixou honorários, acarretaria a substituição desta pela sentença homologatória e, consequentemente, a inexistência do título executivo judicial da verba honorária.
"A jurisprudência do STJ é no sentido de que, havendo transação antes do trânsito em julgado da sentença que fixou os honorários, resta inviável a execução da obrigação, diante da inexistência de força executiva dessa decisão. Agravo interno desprovido." - AgInt no AREsp 2.353.464/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª turma, DJe de 22/8/24.
Ocorre que os julgados não enfrentam, adequadamente, a natureza objetivamente complexa da sentença.
Para fins didáticos, imagine a seguinte hipótese. Rafael ajuíza ação contra a empresa ABCD Ltda., postulando o pagamento de R$ 200.000,00 decorrentes de contrato de prestação de serviços. Proferida sentença de procedência, a empresa é condenada a pagar o valor principal, acrescido de correção monetária e juros de mora, além das custas processuais e honorários de sucumbência fixados em 15% sobre a condenação.
Nesse caso, a sentença de mérito é objetivamente complexa e regulamenta duas relações jurídicas distintas: (i) entre Rafael e a empresa ABCD, relativa ao direito material, o pagamento R$ 200.000,00 mais os consectários legais; e (ii) entre o advogado de Rafael e a empresa, concernente pagamento de honorários de sucumbência, de aproximadamente R$ 30.000,00.
Eventual acordo firmado entre Rafael e a empresa ABCD, antes do trânsito em julgado, somente poderia atingir a primeira relação jurídica, pois Rafael só pode dispor sobre direitos que lhe pertencem. A segunda relação, já constituída com a sentença e não impugnada, subsiste incólume, não podendo ser atingida pela autocomposição das partes.
Consequentemente, eventual sentença homologatória do acordo apenas substitui o primeiro capítulo da sentença de mérito, sem qualquer repercussão sobre o capítulo autônomo da verba honorária.
Essa compreensão encontra algum respaldo em precedentes do STJ, que tem conferido maior ênfase à autonomia dos honorários, reconhecendo a intenção do CPC/15 e EOAB:
"Nos termos da jurisprudência desta Casa, não prejudica o direito aos honorários de sucumbência a transação realizada entre as partes sem a aquiescência dos patronos, após a fixação da referida verba na sentença, independentemente do trânsito em julgado desta. [...]" - AgInt no AREsp 2.575.449/MG, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, julgado em 14/10/24, DJe de 16/10/24.
Ressalte-se, ademais, que a própria existência de acordo somente se viabilizou em razão da atuação jurisdicional e da atividade profissional do(a) advogado(a), o que reforça a indispensabilidade do serviço jurídico prestado e, consequentemente, a intangibilidade do crédito de honorários.
4ª turma do STJ e o REsp 1.548.272
No referido recurso especial, os ministros do STJ estão discutindo a higidez dos honorários em execução de título extrajudicial, no qual, após decisão fixando honorários e a efetivação da penhora de bens, houve acordo entre a exequente e a executada.
A ministra relatora, Isabel Gallotti, proferiu voto no sentido de que os honorários sucumbenciais apenas se consolidam com o trânsito em julgado da decisão, possuindo natureza provisória nas fases iniciais da execução (como a sentença antes do trânsito em julgado), logo, a fixação dos honorários seria suscetível de alteração ou até mesmo exclusão em decorrência de acordo homologado. Esse posicionamento foi acompanhado pelo ministro Marco Buzzi.
Em divergência, o ministro Antonio Carlos Ferreira defendeu a subsistência da verba honorária, destacando a atuação efetiva do advogado, que inclusive lograra a constrição patrimonial por meio da penhora. Segundo o ministro, admitir que o acordo pudesse afastar a verba seria negar a autonomia dos honorários e desconsiderar o trabalho indispensável da advocacia. Essa linha de compreensão foi reforçada pelo ministro João Otávio de Noronha.
A controvérsia permanece em aberto, tendo em vista que o julgamento foi suspenso para o voto de desempate do ministro Raul Araújo.
Apesar de o caso sob julgamento não se referir expressamente a sentença objetivamente complexa, a discussão em debate tem o mesmo ponto central, a autonomia da verba honorária fixada judicialmente pela atuação do causídico e a posterior autocomposição entre as partes do processo.
Conclusão
A evolução normativa acerca dos honorários sucumbenciais revela um inequívoco movimento de valorização da advocacia e de sua indispensabilidade à administração da justiça. O reconhecimento da verba honorária como direito autônomo, de natureza alimentar e titularidade exclusiva do advogado, rompe definitivamente com a concepção meramente acessória/dependente dos honorários, conferindo-lhe efetividade e densidade jurídica próprias.
A insistência da jurisprudência em compreender os honorários como dependentes ao trânsito em julgado do capítulo referente ao direito material das partes fragiliza a autonomia da verba, a teoria dos capítulos da sentença e subestima o trabalho do profissional que contribuiu para a formação da decisão, inquestionável catalisador para a autocomposição superveniente.
A consolidação jurisprudencial sobre a autonomia dos honorários, portanto, não é apenas questão de coerência normativa com o CPC/15 e com o EOAB, mas também condição indispensável para assegurar a dignidade e efetividade da profissão e, por conseguinte, a própria realização da justiça.


