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A violação do princípio da irretroatividade da lei penal - Parte 1

O STF, ao decidir sobre o Tema 1.068, permitiu a execução imediata da pena no Tribunal do Júri. Essa aplicação retroativa fere o princípio da irretroatividade da lei penal. Art. 5º, XL, da CRFB/88.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Atualizado às 09:06

A inconstitucionalidade da aplicação retroativa do Tema 1.068 do STF: Uma crítica à violação do princípio da irretroatividade da lei penal - Parte 1

O presente artigo analisa criticamente a decisão do STF no Tema 1.068, que estabeleceu a execução imediata de condenações proferidas pelo Tribunal do Júri, com especial foco na problemática aplicação retroativa deste entendimento. Através de uma análise constitucional rigorosa e fundamentada nas obras dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, demonstra-se que a aplicação retroativa da tese fixada viola frontalmente o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa, consagrado no art. 5º, inciso XL, da CF/88. O trabalho evidencia a contradição entre os posicionamentos históricos dos referidos ministros sobre irretroatividade e suas decisões no caso em questão, alertando para os graves riscos à segurança jurídica decorrentes desta mudança jurisprudencial abrupta e não modulada.

1. Introdução

Prefacialmente, é imperioso destacar que o sistema jurídico brasileiro tem enfrentado, nas últimas décadas, uma crescente instabilidade jurisprudencial que coloca em risco um dos pilares fundamentais do Estado de Direito: a segurança jurídica. Esta problemática ganhou contornos ainda mais preocupantes com a decisão do STF no Tema 1.068, proferida em setembro de 2024, que estabeleceu a tese de que "a soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada"1.

A gravidade da situação se intensificou dramaticamente em 22/8/25, quando o STF, obteve maioria, rejeitando definitivamente o recurso da Defensoria Pública da União que pleiteava a modulação dos efeitos de forma ex nunc. A DPU solicitava que o entendimento firmado tivesse efeito apenas depois do julgamento da matéria pelo STF, em novembro de 2024, mas sua demanda foi categoricamente rejeitada pelo relator ministro Luís Roberto Barroso e pelos ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Edson Fachin, Gilmar Mendes e André Mendonça2.

Esta decisão recente torna ainda mais urgente e relevante a análise crítica que se pretende desenvolver neste artigo. Ao rejeitar expressamente a modulação dos efeitos ex nunc, o STF confirmou definitivamente sua posição de aplicar retroativamente uma mudança jurisprudencial claramente prejudicial aos réus, violando frontalmente o princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa, consagrado no art. 5º, inciso XL, da CRFB/88.

O que torna esta situação ainda mais grave é a constatação de que ministros do próprio STF, que historicamente garantistas, que sempre defenderam com veemência o princípio da irretroatividade em suas obras doutrinárias e decisões anteriores, mudaram radicalmente de posicionamento no julgamento do Tema 1.068. Esta mudança não apenas contraria décadas de construção doutrinária e jurisprudencial, mas também gera uma insegurança jurídica sem precedentes, onde os jurisdicionados não podem mais confiar na estabilidade das decisões judiciais.

Através de uma análise constitucional rigorosa e fundamentada nas próprias obras dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, que a aplicação retroativa do entendimento fixado no Tema 1.068 constitui uma violação inaceitável do princípio da irretroatividade da lei penal. Mais do que isso, pretende-se evidenciar como esta decisão representa um retrocesso na proteção dos direitos fundamentais e na consolidação do Estado Democrático de Direito.

A relevância desta análise transcende o caso específico do Tribunal do Júri, pois toca em questões fundamentais sobre os limites do poder jurisdicional, a força vinculante dos precedentes e, sobretudo, a necessidade de coerência e previsibilidade no sistema jurídico. Em um país onde a jurisprudência do STF já é marcada por constantes mudanças de entendimento, a aplicação retroativa de decisões desfavoráveis ao réu representa um passo perigoso em direção ao arbítrio judicial e ao enfraquecimento das garantias constitucionais.

2. O Tema 1.068 do STF: Contexto e decisão

2.1 Antecedentes históricos

A questão da execução imediata de penas no sistema jurídico brasileiro tem sido objeto de intensos debates e mudanças jurisprudenciais ao longo dos anos. Tradicionalmente, o ordenamento jurídico pátrio adotava o princípio de que a execução da pena somente poderia ocorrer após o trânsito em julgado da sentença condenatória, em observância ao princípio constitucional da presunção de inocência, previsto no art. 5º, inciso LVII, da CF/883.

No entanto, este entendimento sofreu significativas alterações, especialmente a partir de 2016, quando o STF, no julgamento do HC 126.292/SP, passou a admitir a execução provisória da pena após condenação em segunda instância. Esta decisão gerou amplo debate na comunidade jurídica, sendo posteriormente revista em 2019, quando a Corte retornou ao entendimento de que a execução da pena deveria aguardar o trânsito em julgado4.

No contexto específico do Tribunal do Júri, a discussão ganhava contornos particulares em razão da soberania dos veredictos, princípio constitucional previsto no art. 5º, inciso XXXVIII, alínea "c", da CF/88. O CPP, em seu art. 492, inciso I, alínea "e", já previa a possibilidade de execução imediata para condenações iguais ou superiores a 15 anos de reclusão, mas a questão permanecia controvertida para penas inferiores a este patamar.

2.2 O julgamento do RE 1.235.340

O Tema 1.068 teve origem no julgamento do RE 1.235.340/SC, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, submetido ao regime de repercussão geral. O caso envolvia a discussão sobre a possibilidade de execução imediata de condenação proferida pelo Tribunal do Júri, independentemente do quantum da pena aplicada5.

Em seu voto, o ministro relator Luís Roberto Barroso enfatizou que a questão envolvia "aplicação direta e imediata da norma originária do texto constitucional, que reconheceu a instituição do Tribunal do Júri, assegurada a soberania dos seus veredictos". O ministro arrematou sua argumentação afirmando que "os fundamentos até aqui apresentados, extraídos diretamente da constituição (art. 5º, XXXVIII, da CF/88), são suficientes para legitimar a execução imediata de condenação proferida pelo Tribunal do Júri, tendo em vista a soberania dos seus veredictos"6.

A decisão foi tomada por maioria, com votos favoráveis dos ministros Luís Roberto Barroso (relator), Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Gilmar Mendes, Kassio Nunes Marques, Luiz Fux e Roberto Barroso. Votaram vencidos os ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Carmen Lúcia, que defendiam a necessidade de aguardar o trânsito em julgado para a execução da pena7.

2.3 A tese fixada

A tese de repercussão geral fixada pelo STF foi clara e objetiva: "A soberania dos veredictos do Tribunal do Júri autoriza a imediata execução de condenação imposta pelo corpo de jurados, independentemente do total da pena aplicada"8.

Esta tese representou uma ampliação significativa do que já estava previsto no CPP, que limitava a execução imediata às condenações iguais ou superiores a 15 anos. Com a nova orientação, qualquer condenação proferida pelo Tribunal do Júri, independentemente da pena aplicada, passou a autorizar a execução imediata.

O fundamento principal da decisão residiu na interpretação do princípio da soberania dos veredictos do júri como uma garantia constitucional que confere especial força às decisões do corpo de jurados. Segundo o entendimento majoritário, esta soberania justificaria a execução imediata, uma vez que a culpabilidade já teria sido reconhecida pelos jurados e não poderia ser revista por juízes togados em eventual recurso.

2.4 A confirmação definitiva da aplicação retroativa

O aspecto mais controverso da decisão do Tema 1.068 não reside propriamente na tese fixada, mas sim na sua aplicação retroativa a casos julgados antes da fixação do entendimento. Esta aplicação retroativa, inicialmente defendida pela maioria do STF com base no argumento de que a decisão teria caráter meramente declaratório, foi definitivamente confirmada em 22/8/25.

Nesta data, o STF, por maioria de sete votos, rejeitou categoricamente o recurso da Defensoria Pública da União que pleiteava a modulação dos efeitos da decisão de maneira ex nunc. O relator ministro Luís Roberto Barroso defendeu negar a demanda da DPU sob o argumento de que "não é possível alegar uma aplicação indevida de retroatividade da lei penal em prejuízo do acusado, pela simples consideração de que a execução imediata da pena imposta pelo Tribunal do Júri tem por fundamento central norma originária do texto constitucional"9.

A decisão foi acompanhada pelos ministros Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Flávio Dino, Edson Fachin, Gilmar Mendes e André Mendonça, não havendo, até o fim da tarde de 22/8/25, qualquer voto divergente. Esta unanimidade na rejeição da modulação torna ainda mais grave a violação constitucional, pois demonstra que a maioria da Corte está disposta a ignorar completamente os princípios da segurança jurídica e da irretroatividade10.

A argumentação do ministro Barroso ignora completamente o fato de que, até a decisão do Tema 1.068, não havia consenso jurisprudencial sobre a matéria. Pelo contrário, a questão era objeto de intenso debate, com posicionamentos divergentes nos tribunais de todo o país. A aplicação retroativa de uma mudança jurisprudencial tão significativa representa, na prática, uma alteração das regras do jogo após o início da partida, violando frontalmente o princípio da segurança jurídica.

No próximo artigo daremos continuidade à discussão sobre a temática abordada, focando agora no princípio constitucional da irretroatividade da lei penal. Além disso, iremos analisar os posicionamentos históricos dos ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes, dois ministros garantistas, respeitados e com excelentes obras sobre a temática, porém como mudanças significativas em seus posicionamentos recentes quanto a matéria.

______________

1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1.068. Recurso Extraordinário nº 1.235.340/SC. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/tema.asp?num=1.068

2 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Art. 5º, LVII.

3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 126.292/SP. Rel. Min. Teori Zavascki. Julgado em 17/02/2016.

4 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 1.235.340/SC. Rel. Min. Luís Roberto Barroso.

5 CASTRO, Pedro Machado de Almeida; RAMOS, Isabella Piovesan. Modulação da decisão sobre execução imediata da pena do Júri. Consultor Jurídico, 13 nov. 2024.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 1.068. Votação. Setembro de 2024.

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tese fixada no Tema 1.068.

8 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Fundamentação da aplicação retroativa do Tema 1.068.

Daniel Charliton Rodrigues

VIP Daniel Charliton Rodrigues

Advogado especializado em Direito Penal, Ambiental, Cível e Empresarial. Com experiência em gestão pública, foi superintendente do IBAMA, gestor em Itaguaí/RJ, São João de Meriti/RJ

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