MIGALHAS DE PESO

  1. Home >
  2. De Peso >
  3. Multipropriedade: Desafios jurídicos e impactos registrais

Multipropriedade: Desafios jurídicos e impactos registrais

O artigo analisa os entraves jurídicos da multipropriedade no Brasil, abordando riscos contratuais, conflitos consumeristas e os desafios enfrentados por cartórios e operadores do Direito.

sábado, 27 de setembro de 2025

Atualizado em 26 de setembro de 2025 13:30

A multiplicação dos empreendimentos de multipropriedade imobiliária no Brasil tem transformado profundamente o mercado de bens imóveis, especialmente em regiões turísticas de alto valor agregado. Embalada por promessas de acesso facilitado à propriedade, uso racional de recursos e democratização do turismo de luxo, a multipropriedade tem sido apresentada como uma solução moderna para a fruição compartilhada de imóveis.

No entanto, sob o verniz da inovação jurídica, começam a emergir questionamentos sérios sobre a solidez desse modelo, seu impacto sobre o sistema registral brasileiro e os riscos de judicialização em larga escala.

Instituída formalmente no ordenamento jurídico pela lei 13.777/18, a multipropriedade consiste na divisão de uma unidade imobiliária entre diferentes pessoas, cada qual detendo o direito de uso exclusivo do bem por determinado período do ano.

A ideia não é nova: deriva de modelos internacionais de time sharing, mas com roupagem jurídica nacional própria, inserida no CC como uma forma específica de condomínio especial. Com isso, cada fração temporal tem existência jurídica autônoma, com possibilidade de registro individualizado, transmissão, oneração e até mesmo execução judicial, o que a torna especialmente atrativa para incorporadoras e cartórios.

A promessa de dinamização do mercado imobiliário, no entanto, começa a revelar contradições que não podem ser ignoradas. Uma das maiores controvérsias diz respeito à responsabilidade pelo pagamento das taxas condominiais.

Ainda que a lógica da multipropriedade indique que cada titular responda por sua fração temporal, a prática revela complexidade maior. Diversos tribunais têm enfrentado casos em que a inadimplência de um multiproprietário acaba sendo suprida pelo pagamento compulsório dos demais, ou mesmo pela cobrança da totalidade da unidade por meio de execuções que não discriminam a fração inadimplente.

A jurisprudência mais recente, no entanto, tem caminhado no sentido de reconhecer que a inadimplência de um coproprietário não pode prejudicar os demais, desde que o contrato preveja, com clareza, a individualização das obrigações e da cobrança.

A jurisprudência tem enfrentado ainda temas pouco pacificados, mas de grande relevância prática, como a rescisão contratual por arrependimento do comprador. Muitos consumidores relatam ter adquirido cotas de multipropriedade durante viagens ou eventos promocionais, frequentemente sob pressão comercial e com promessas ilusórias de valorização e facilidade de revenda.

Nessas situações, o marketing agressivo tem levado à celebração de contratos sem plena compreensão de seu alcance. Em resposta, os tribunais têm reconhecido, em diversos casos, o direito de arrependimento, especialmente quando constatada violação ao CDC, com destaque para a ausência de informação adequada e a indução em erro quanto à natureza do negócio.

Situação semelhante ocorre nos casos de anulação contratual por vício de consentimento. Se o adquirente demonstra que acreditava estar comprando um imóvel de uso exclusivo e não uma fração temporal compartilhada, o Judiciário tem se posicionado pela nulidade do contrato, considerando configurado o erro substancial. Tais decisões reforçam a importância do dever de informação clara, objetiva e acessível, principalmente porque a multipropriedade, ainda que prevista legalmente, não é amplamente conhecida pelo público em geral.

Outro ponto relevante diz respeito à transmissão hereditária das cotas de multipropriedade. Embora a lei permita a livre disposição dessas frações no mercado, inclusive por doação ou herança, a realidade prática tem mostrado resistência por parte de alguns cartórios, que ainda não se adaptaram completamente ao tratamento sucessório das frações temporais.

Há decisões judiciais que reconhecem a plena possibilidade de transmissão hereditária, o que reafirma a natureza patrimonial da multipropriedade, mas o tema ainda carece de uniformização nacional.

Além das questões de fundo contratual e sucessório, os impactos sobre o sistema cartorial e registral também merecem atenção. O registro individualizado das frações de tempo exige uma organização detalhada e constante atualização das informações, o que tem desafiado os registros de imóveis e gerado insegurança quanto à rastreabilidade das transmissões.

Quando não há integração eficiente entre o registro formal e a administração condominial, situações de duplicidade de venda, ausência de informação sobre inadimplência e litígios com adquirentes se tornam mais frequentes, contribuindo para o acúmulo de demandas judiciais e a sobrecarga do Judiciário.

A análise do cenário atual revela, portanto, um campo fértil para a atuação jurídica. Advogados, tabeliães, incorporadoras e o próprio Poder Judiciário ainda estão em processo de adaptação a essa nova realidade. Se por um lado a multipropriedade pode representar uma solução criativa e útil, especialmente em locais com forte sazonalidade turística, por outro, exige maturidade regulatória, segurança contratual e responsabilidade informacional.

O risco é que um instituto criado para facilitar o acesso ao patrimônio torne-se, por falta de transparência e fiscalização, a próxima "bomba jurídica" do mercado imobiliário nacional.

Entre o brilho do ouro registral e o potencial explosivo da litigiosidade, a multipropriedade exige uma resposta institucional firme, com atuação conjunta de registradores, tribunais, órgãos de defesa do consumidor e operadores do Direito.

É preciso abandonar a visão puramente mercadológica e encarar o tema como uma construção jurídica complexa, que depende da confiança, clareza e equilíbrio para se sustentar.

O futuro da multipropriedade será definido, em grande parte, pela capacidade das instituições em garantir que a inovação não sacrifique os princípios básicos da boa-fé, da função social da propriedade e da proteção do consumidor.

Marcos Roberto Hasse

Marcos Roberto Hasse

Advogado (OAB/SC 10.623) com 30 anos de experiência, sócio da Hasse Advocacia e Consultoria, com atuação ampla e estratégica em diversas áreas jurídicas.

AUTORES MIGALHAS

Busque pelo nome ou parte do nome do autor para encontrar publicações no Portal Migalhas.

Busca