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Cuidados paliativos e o direito do paciente frente ao plano de saúde

A negativa de cobertura de cuidados paliativos pelos planos de saúde afronta a dignidade humana e o direito fundamental à saúde.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Atualizado às 09:20

O envelhecimento populacional e o avanço das doenças crônicas e degenerativas colocaram os cuidados paliativos no centro das discussões sobre o direito à saúde.

Se antes a judicialização se concentrava no acesso a medicamentos de alto custo ou procedimentos inovadores, hoje cresce o número de demandas voltadas à garantia de uma assistência digna na fase final da vida.

Negar cuidados paliativos não é apenas uma questão contratual: implica submeter famílias a sofrimento desnecessário, transferindo para elas custos financeiros e emocionais em um momento de fragilidade.

A judicialização, nesse cenário, surge como resposta à omissão regulatória, mas também como alerta à necessidade de atualização das normas da ANS e dos próprios contratos.

O que são cuidados paliativos

Segundo a OMS - Organização Mundial da Saúde, cuidados paliativos consistem em uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares diante de doenças que ameaçam a continuidade da vida, prevenindo e aliviando o sofrimento por meio da identificação precoce, avaliação adequada e tratamento de dor e outros sintomas físicos, psicossociais e espirituais.

No Brasil, o CFM - Conselho Federal de Medicina e a Política Nacional de Cuidados Paliativos reconhecem a importância de protocolos específicos, reforçando que não se trata de "desistir" do tratamento, mas de assegurar dignidade e conforto.

Planos de saúde e negativa de cobertura

Apesar de sua relevância, não há previsão expressa na lei 9.656/1998 (lei dos planos de saúde) sobre cuidados paliativos.

Na prática, os cuidados paliativos envolvem um conjunto de serviços e terapias multiprofissionais que podem - e devem - ser cobertos pelos planos de saúde, quando prescritos pelo médico responsável.

Entre eles, destacam-se:

  • Controle da dor e de sintomas: uso de analgésicos, sedativos, antieméticos e outros medicamentos previstos no rol da ANS ou em protocolos clínicos reconhecidos.
  • Internação hospitalar ou domiciliar (home care): indicada quando o paciente não pode ser assistido apenas em regime ambulatorial, garantindo conforto e redução de riscos.
  • Atendimento multiprofissional: acompanhamento de médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, nutricionistas e terapeutas ocupacionais, conforme necessidade clínica.
  • Apoio psicológico e social: suporte ao próprio paciente, reconhecido como parte essencial do tratamento pela OMS e pelo Conselho Federal de Medicina.
  • Equipamentos e insumos: oxigenoterapia, bombas de infusão, colchões especiais, fraldas, sondas e demais materiais que permitam qualidade de vida no tratamento.

Assim, ainda que o termo "cuidados paliativos" não esteja de forma expressa na legislação ou no rol da ANS, os procedimentos que o compõem já estão previstos como de cobertura obrigatória, sendo indevida a negativa contratual.

A lacuna normativa gera terreno fértil para negativas de cobertura, sob alegação de ausência no rol da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar ou de caráter experimental.

Entretanto, o rol da ANS já contempla procedimentos, medicamentos e terapias que, na prática, integram os cuidados paliativos - como o tratamento da dor, acompanhamento multiprofissional, assistência domiciliar (home care) e internações.

A negativa, portanto, mostra-se incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88) e com o direito fundamental à saúde (art. 196, CF/88).

Jurisprudência

A jurisprudência brasileira tem evoluído no reconhecimento dos cuidados paliativos como parte integrante do atendimento integral em saúde, sobretudo quando se trata de pacientes em estágio avançado de doenças graves, como o câncer.

No agravo de instrumento 0709153-78.2022.8.07.0000, julgado pela 5ª turma Cível do TJ/DFT, discutiu-se a obrigação de plano de saúde custear internação domiciliar (home care) para paciente com câncer hepático avançado, em cuidados paliativos exclusivos.

Embora o contrato previsse cláusula de exclusão e a ANS não liste expressamente o "home care" no rol, o Tribunal considerou que, quando prescrito pelo médico como substituto à internação hospitalar, o tratamento domiciliar deve ser garantido, sob pena de violação ao art. 12, § 2º, da lei 14.238/2021 (Estatuto da Pessoa com Câncer). Citamos a ementa:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. INTERNAÇÃO DOMICILIAR EM SUBSTITUIÇÃO À INTERNAÇÃO HOSPITALAR . PACIENTE COM CÂNCER AVANÇADO E SEM CURA. CUIDADOS PALITATIVOS. INTEGRA O ATENDIMENTO INTEGRAL AOS PACIENTES COM CÂNCER. ESTATUTO DA PESSOA COM CÂNCER . RECURSO IMPROVIDO. 1. ?O serviço de "Home Care" é um tratamento semelhante ao dado em um hospital. Trata-se do recebimento domiciliar de todo os cuidados necessários à recuperação do paciente, por meio de uma equipe qualificada . A internação domiciliar é, pois, uma forma de diminuir os custos substancialmente menores em relação àqueles com que a ré arcaria em caso de internação hospitalar, sendo efetivamente mais vantajosa. Ademais se o objetivo da internação é a melhor recuperação ou as melhores condições ao paciente, havendo indicação médica de que a domiciliar mais adequada, esta deve ser deferida.? (STJ - Agravo no REsp 1.741.039, Rel . ministro Marco Buzzi, DJe 18.11.2020). 2 . ?À luz da lei 9.656/1998, é pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de ser abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar (home care) como alternativa à internação hospitalar.? ( AgInt no AREsp 1.519.861/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/8/2020, DJe 18/08/2020) . 3. Os cuidados paliativos de que necessitam pacientes com câncer sem perspectiva curativa compõem o atendimento integral que deve ser assegurado a esses doentes, conforme o disposto no § 2º do artigo 12 da Lei 14238, Estatuto da Pessoa com Câncer, devendo ser assegurado pelos planos de saúde, seja no regime de internação hospitalar ou de internação domiciliar em substituição àquela a depender da indicação médica, respeitada a autonomia do paciente. 4. Satisfeitos os requisitos para o deferimento da tutela provisória, a manutenção da decisão agravada que deferiu a internação domiciliar em substituição à internação hospitalar é medida que se impõe . 5. Recurso conhecido e desprovido. (TJ/DF 07091537820228070000 1439061, relator.: ANA CANTARINO, Data de Julgamento: 20/7/2022, 5ª turma Cível, Data de Publicação: 29/7/2022)

De modo convergente, o TJ/SP decidiu no agravo de instrumento 2023734-43.2023.8.26.0000 que é abusiva a negativa de cobertura de home care diante de expressa prescrição médica, aplicando a súmula 90 daquela Corte. Tratava-se de paciente com doença degenerativa rara, em rápida progressão, com indicação de cuidados paliativos. O Tribunal reforçou que, em situações assim, a cláusula de exclusão não pode prevalecer, pois afronta a boa-fé objetiva e a função social do contrato.

Esses entendimentos convergem com precedentes do STJ, que reiteradamente consideram abusiva a cláusula contratual que veda o home care quando indicado como substituto à internação hospitalar (AgInt no AREsp 1.519.861/SP, rel. min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª turma, DJe 18/8/2020).

Assim, mesmo diante da tese da taxatividade mitigada do rol da ANS, a jurisprudência tem reconhecido que a autonomia médica e a dignidade do paciente devem prevalecer sobre cláusulas restritivas ou lacunas regulatórias.

A tendência, portanto, é de consolidação de uma visão mais humanizada e constitucional, na qual planos de saúde não podem negar cobertura a cuidados paliativos essenciais, sob pena de transformar contratos de assistência em meros instrumentos financeiros, dissociados da finalidade maior: proteger a vida e a saúde em todas as suas fases.

Considerações finais

Os cuidados paliativos não podem ser vistos como um luxo, mas como parte essencial do tratamento médico.

O Judiciário tem cumprido papel central na proteção dos pacientes, assegurando que a ausência de previsão contratual ou no rol da ANS não se torne barreira para o exercício pleno do direito à saúde e da dignidade na fase final da vida.

A tendência é de que, cada vez mais, os planos de saúde sejam instados a incorporar políticas claras de cobertura em cuidados paliativos, seja por via regulatória, seja pela força das decisões judiciais.

Até lá, a advocacia em saúde e o ativismo judicial continuarão a desempenhar função crucial na defesa de pacientes e familiares.

Aline Vasconcelos

VIP Aline Vasconcelos

Advogada especialista em Direito da Saúde, com 15 anos de experiência na defesa de pacientes contra planos de saúde e na garantia de acesso a tratamentos e direitos essenciais.

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