A riqueza pode ser indício de crime?
O cenário compromete a taxatividade exigida pelo princípio da legalidade e cria um cenário de insegurança jurídica.
sexta-feira, 29 de agosto de 2025
Atualizado às 08:40
A Operação Ícaro, deflagrada contra a Ultrafarma e seu proprietário, a investigação partiu da constatação de um crescimento patrimonial expressivo em período relativamente curto, associando tal evolução de um dos integrantes do esquema a práticas de lavagem de dinheiro.
Nesse contexto, o caso trouxe à tona discussões relevantes sobre os limites da persecução penal em matéria econômica, servindo de exemplo para refletir sobre o modo como o direito penal vem sendo utilizado para transformar fenômenos econômicos em indícios criminais, muitas vezes sem a necessária cautela.
Portanto, é inegável que a evolução patrimonial repentina pode despertar suspeitas legítimas, considerando que o incremento de ativos muito acima da média do setor ou incompatível com as declarações fiscais exige verificação cuidadosa do Ministério Público e das autoridades fiscais.
No entanto, a questão central é saber até que ponto a evolução patrimonial incontroversa, por si só, pode sustentar uma acusação de lavagem de dinheiro, pois a riqueza, ainda que exuberante, não pode ser criminalizada sem a devida demonstração de um crime antecedente que tenha gerado lucros, com atos concretos de ocultação ou dissimulação.
Quer-se dizer, portanto, que o risco está em inverter o ônus da prova, de modo que, quando se presume que a evolução patrimonial é sinônimo de lavagem, transfere-se ao investigado o dever de justificar a licitude de seus bens, violando a presunção de inocência evidenciada na Constituição Federal.
Dessa maneira, processo penal deixa de ser instrumento de apuração e passa a funcionar como um mecanismo inquisitório, onde a ausência de explicação satisfatória se converte automaticamente em prova de ilicitude, rompendo com a lógica de que cabe ao Estado provar a acusação, e não ao cidadão demonstrar sua inocência.
Há, ainda, um problema de generalização, visto que o aumento de patrimônio pode decorrer de múltiplos fatores legítimos, como herança, valorização imobiliária ou um acerto societário vantajoso, de forma que reduzir o fenômeno econômico a um indício inequívoco de lavagem de dinheiro significa ampliar perigosamente o alcance do tipo penal, transformando a lei em uma norma em branco capaz de abranger qualquer situação de enriquecimento não compreendida de imediato pelas autoridades.
Isso compromete a taxatividade exigida pelo princípio da legalidade e cria um cenário de insegurança jurídica.
A Operação Ícaro ilustra, portanto, os desafios de se centralizar a imputação penal na evolução patrimonial incontroversa, fazendo com que ganhe protagonismo o que deveria ser apenas um ponto de partida para investigação, convertendo-se em elemento quase exclusivo de acusação, deslocando o foco da análise do direito penal para um terreno de presunções.
Entretanto, não se nega a relevância de monitorar variações expressivas de patrimônio, mas é preciso delimitar o alcance desses indícios para não resultar em uma espécie de criminalização da riqueza, transformando o crescimento patrimonial incontroverso em um pilar de fundamentação para restrições e devassas patrimoniais, como a prisão, o bloqueio de bens e a quebra de sigilo bancário.


