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A atividade jurídica e a formação profissional no ambiente digital: Inteligência artificial, ética e reinvenção da educação jurídica

Integração entre Direito e tecnologia exige ética, transparência e formação crítica para uma Justiça inclusiva e eficiente.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Atualizado às 07:30

A crescente integração entre tecnologia e Direito já não constitui apenas uma tendência, mas um dado da realidade. O uso de inteligência artificial (IA) e de ferramentas digitais no cotidiano forense tem transformado a maneira como juízes, advogados e demais operadores do sistema de justiça desempenham suas funções. Essa transformação impõe desafios técnicos, éticos e formativos que merecem uma análise cuidadosa, especialmente quando se observa o movimento de adaptação institucional de órgãos como o STJ, que recentemente incorporou o sistema LOGOS à sua rotina de trabalho.

Desenvolvido internamente, o LOGOS opera como um instrumento de apoio à produção de decisões judiciais, valendo-se de IA generativa para automatizar etapas repetitivas e burocráticas da atividade judicante. Longe de pretender substituir o papel humano, a ferramenta se propõe a liberar capacidade cognitiva para que os ministros e suas equipes possam concentrar esforços nos casos de maior densidade jurídica. Com isso, o Tribunal se aproxima de sua vocação como Corte de Precedentes, voltada à uniformização da interpretação do Direito infraconstitucional no país.

Ainda que a implementação de tecnologias como essa represente avanço importante para o sistema de justiça, é preciso compreender que o uso de IA em ambientes jurídicos não é neutro. A promessa de eficiência traz consigo um campo delicado de decisões morais, institucionais e operacionais. O primeiro ponto de atenção diz respeito à supervisão humana. A tecnologia não pode, nem deve ocupar o lugar do juízo crítico. Trata-se de um instrumento de apoio, não de substituição da função jurisdicional, vale ressaltar, ainda que pareça intuitivo.

Além disso, a inserção de algoritmos no processo decisório exige mecanismos transparentes de controle e responsabilização. A opacidade de certos modelos algorítmicos, somada à dificuldade de auditar decisões tomadas com base em grandes volumes de dados, pode comprometer direitos fundamentais. O risco de reproduzir vieses discriminatórios, ainda que de forma não intencional, por vezes decorrentes de datasets originalmente enviesados, deve ser enfrentado com rigor.

Outro ponto crítico diz respeito à ética profissional. As normas deontológicas tradicionais foram concebidas em um tempo anterior à digitalização das relações jurídicas. Hoje, temas como confidencialidade, sigilo profissional e responsabilidade por decisões assistidas por IA desafiam os parâmetros clássicos de atuação. O uso de ferramentas baseadas em computação em nuvem, por exemplo, expõe advogados e magistrados a novos riscos de violação da privacidade e da integridade dos dados.

Essas transformações exigem que os profissionais do Direito dominem um novo conjunto de competências. Não se trata apenas de conhecer o ordenamento jurídico, mas de aliar esse conhecimento ao domínio das linguagens digitais, da análise de dados, da lógica computacional e da segurança da informação. O letramento digital tornou-se uma habilidade jurídica essencial.

Contudo, a formação jurídica tradicional não tem acompanhado essa mudança de paradigma. O modelo de ensino ainda predominante, centrado na transmissão de conteúdo por meio de aulas expositivas e leitura de manuais, mostra-se insuficiente para preparar juristas para o ambiente digital. O Direito contemporâneo exige pensamento crítico, capacidade de adaptação, interdisciplinaridade e habilidades relacionais que vão muito além da memorização de normas e precedentes.

Desse modo, reinventar a educação jurídica é primordial. Os currículos precisam incorporar disciplinas que abordem a intersecção entre Direito e tecnologia. Além de fundamentos técnicos - como programação básica, arquitetura da informação e inteligência artificial - é indispensável introduzir discussões sobre ética digital, impacto social da automação e direitos digitais. É importante formar profissionais capazes de dialogar com engenheiros de software, cientistas de dados e especialistas em cibersegurança. O profissional do futuro precisa ter uma formação acadêmica multidisciplinar. Ademais, as metodologias ativas de aprendizagem devem permitir a resolução de problemas reais, a fim de que o discente possa desenvolver competências mais alinhadas com a complexidade do mundo jurídico contemporâneo. A construção do conhecimento precisa ser participativa, reflexiva e crítica.

A velocidade das transformações tecnológicas tornou obsoleta a ideia de uma formação jurídica estanque. A educação jurídica precisa ser permanente - o que exige políticas institucionais de incentivo ao "lifelong learning" e uma cultura de atualização constante. Diante disso, surgem algumas indagações que desafiam a comunidade jurídica: como garantir que as tecnologias sirvam à ampliação do acesso à justiça, em vez de reproduzirem desigualdades? Como formar profissionais aptos a lidar com questões ainda inéditas, como a responsabilização por erros algorítmicos, os impactos dos contratos inteligentes ou os limites éticos da automação judicial? Como preparar estudantes para carreiras que sequer existem ainda, mas que despontam no horizonte próximo?

A resposta exige ação coordenada entre instituições de ensino, tribunais, órgãos de classe e sociedade civil. O desafio não é apenas técnico, mas estrutural. Exige repensar os papéis tradicionais, romper com modelos pedagógicos obsoletos e construir um Direito mais aberto, mais ágil e mais sensível às demandas sociais e tecnológicas. A transição digital não é apenas um fenômeno técnico, mas um processo ético, institucional e humano. É nesse espaço de reflexão que as inquietações se transformam em projetos, e as tendências se consolidam como compromissos.

Portanto, o desafio que se impõe aos operadores do direito transcende a mera incorporação de ferramentas tecnológicas: exige a adoção de uma postura crítica, criativa e colaborativa diante do emergente ecossistema jurídico digital. O ambiente tecnológico deve consolidar-se como um verdadeiro catalisador de inclusão, inovação e justiça social. Essa transformação, contudo, somente se concretizará por meio de profissionais devidamente qualificados, alicerçados em princípios éticos sólidos e inseridos em instituições genuinamente abertas à mudança. O futuro do direito não reside apenas na tecnologia, mas na capacidade humana de utilizá-la a serviço de uma justiça mais acessível, eficiente e democrática.

Teodoro Silva Santos

Teodoro Silva Santos

Pós-doutor em Ciências Jurídicas Penais pela Universidade do Minho (UMinho). Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Especialista em Processo Penal pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Fernanda Mathias de Souza Garcia

Fernanda Mathias de Souza Garcia

Doutoranda (2024) e Mestre em Direito, Regulação e Políticas Públicas pela Universidade de Brasília (UnB) (2019-2021). Assessora de Ministro no STJ.

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