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Extrajudicialização: Um novo e eficiente acesso à justiça multiportas

Como a extrajudicialização está revolucionando o acesso à justiça no Brasil? Análise do papel dos cartórios, seus impactos econômicos e a celeridade dos atos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2025

Atualizado às 14:47

Introdução: A crise de eficiência dojudiciário e a busca por alternativas

O sistema judiciário brasileiro enfrenta um desafio estrutural de longa data: a hiperjudicialização. Ao final de 2023, o Poder Judiciário encerrou o ano com um acervo de 83,8 milhões de processos em tramitação, o maior número da série histórica de quase duas décadas.

Esse volume colossal de demandas resulta em uma morosidade que compromete a eficácia da prestação jurisdicional e o próprio conceito de justiça. Um processo de execução fiscal, por exemplo, levou, em média, 7 anos e 9 meses para ser baixado em 2023.

Diante da constatação de que o Estado-juiz, por si só, não conseguiria arcar com a entrega célere e eficiente da jurisdição, o ordenamento jurídico brasileiro vem passando, nas últimas três décadas, por uma profunda transformação. Liderada tanto pelo legislador quanto pelo próprio CNJ, essa mudança se materializa no fenômeno da desjudicialização - ou, como preferimos chamar de forma mais precisa, da extrajudicialização: a transferência de procedimentos e, mais recentemente, de mecanismos de resolução de conflitos, para as serventias extrajudiciais.

Este artigo tem como objetivo analisar o processo de extrajudicialização como política pública de acesso à justiça, destacando o papel fundamental de notários e registradores como novos protagonistas na administração e solução de litígios. Argumenta-se que, longe de ser uma mera medida de "desafogo" dos tribunais, a extrajudicialização representa a consolidação de um sistema de justiça multiportas, mais ágil, econômico e alinhado às necessidades do cidadão contemporâneo.

1. A extrajudicialização como política pública de acesso à Justiça

O termo "desjudicialização", embora amplamente utilizado, pode transmitir a ideia equivocada de uma simples retirada de atribuições do Poder Judiciário. Na realidade, o que se observa é um compartilhamento de competências, onde o foro extrajudicial recebe novas funções sem qualquer prejuízo ao acesso ao Judiciário, que permanece como a instância máxima de garantia de direitos. Por essa razão, o termo extrajudicialização se mostra mais preciso, pois descreve a expansão da esfera de atuação dos cartórios extrajudiciais dentro do ecossistema de justiça, sob a contínua regulação, normatização e fiscalização do Poder Judiciário.

O conceito de acesso à justiça, em sua concepção moderna, transcende o mero acesso aos órgãos judiciais. Ele representa o acesso a uma ordem jurídica justa, onde o cidadão possa reivindicar seus direitos e solucionar seus litígios de forma célere e eficaz sob a tutela do Estado. Nesse sentido, a extrajudicialização não retira do cidadão a garantia constitucional de apreciação de lesão ou ameaça a direito pelo Poder Judiciário, mas oferece alternativas igualmente seguras e, em muitos casos, mais eficientes.

Essa transferência de competências encontra seu alicerce no novo regime jurídico imposto à atividade notarial e registral pela Constituição de 1988. O art. 236 da Carta Magna extirpou a sucessão hereditária e impôs a obrigatoriedade de concurso público de provas e títulos para a outorga da delegação (lei 8.935/1994), profissionalizando o setor com a entrada de profissionais do Direito dotados de conhecimento técnico e jurídico.

Como delegatários do Estado, notários e registradores são dotados de fé pública, atuam com imparcialidade e estão sujeitos à rigorosa fiscalização do Poder Judiciário, o que confere aos atos praticados nas serventias a mesma segurança jurídica dos atos estatais.

Essa estrutura robusta, aliada a uma capilaridade impressionante - com 12.512 cartórios distribuídos por todos os 5.568 municípios brasileiros -, tornou as serventias extrajudiciais o locus ideal para a expansão do sistema de justiça. A confiança da população nesse modelo é um fator crucial para seu sucesso. Pesquisa realizada pelo Instituto Datafolha em 2022 revelou que os cartórios são as instituições mais confiáveis do Brasil, com 76% de aprovação. Além disso, 54% dos usuários consideram as transações realizadas nas serventias "totalmente seguras".

2. A materialização da extrajudicialização: Resultados práticos e impacto econômico

A transferência de procedimentos do Judiciário para os cartórios iniciou-se de forma paulatina, abrangendo principalmente atos de jurisdição voluntária que dependiam do consenso entre as partes. A lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, foi um marco nesse processo, ao permitir a realização de inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais diretamente nos Tabelionatos de Notas. Os resultados, ao longo dos anos, demonstram o acerto da medida, tanto em termos de celeridade quanto de economia para os cofres públicos.

Até setembro de 2024, os cartórios brasileiros já realizaram:

  • Mais de 2,6 milhões de inventários, gerando uma economia estimada de R$ 6,2 bilhões ao Judiciário.
  • Mais de 1,1 milhão de divórcios, com uma economia de R$ 2,7 bilhões.
  • Mais de 58 mil separações, resultando em uma economia de R$ 138 milhões.
  • Mais de 51 mil partilhas, gerando R$ 122 milhões de economia.

Somente com base nesses atos da lei 11.441/07, a economia gerada para o Estado se aproxima de R$ 8,3 bilhões. A diferença de tempo é igualmente notável: um inventário judicial pode levar anos para ser concluído, enquanto sua versão extrajudicial pode ser finalizada em poucos dias.

Outros procedimentos seguiram o mesmo caminho de sucesso. Desde que o provimento 16/12 da Corregedoria Nacional de Justiça permitiu o reconhecimento de paternidade em cartório, mais de 261 mil atos já foram realizados, gerando uma economia de R$ 619 milhões.

A extrajudicialização da usucapião (lei 13.465/17) reduziu um processo que levava, no mínimo, dois anos na Justiça para cerca de seis meses no cartório. Mais recentemente, a adjudicação compulsória seguiu a mesma trilha, prometendo resolver em meses o que na via judicial levaria anos.

A atuação dos Tabelionatos de Protesto na recuperação de créditos da União, por meio do protesto de CDAs - Certidões de Dívida Ativa, é outro exemplo contundente. Desde 2013, essa prática já recuperou mais de R$ 14 bilhões para os cofres públicos, de forma gratuita para o Estado e com uma celeridade incomparavelmente maior que a da execução fiscal judicial.

3. A expansão do papel dos cartórios: Da prevenção à resolução de conflitos

Se a primeira onda da extrajudicialização se concentrou em procedimentos de jurisdição voluntária, a fase atual expande a atuação de notários e registradores para o campo da resolução de conflitos. A lei de mediação (lei 13.140/15) e o CPC de 2015 já previam a possibilidade de realização de mediação e conciliação nas serventias extrajudiciais.

Essa tendência foi aprofundada e consolidada com a promulgação do Marco Legal das Garantias (lei 14.711, de 30 de outubro de 2023). A nova legislação não apenas modernizou a execução de garantias, mas atribuiu expressamente novas competências aos cartórios, entre elas:

  • Solução negocial prévia: Permite que credores proponham acordos antes de efetivar o protesto, incentivando a resolução amigável de dívidas.
  • Incentivo à renegociação: Facilita a revisão de termos e condições de dívidas já protestadas.
  • Atuação como árbitros: A legislação agora prevê que os tabeliães de notas possam exercer a função de árbitros, nos termos da lei de arbitragem (lei 9.307/1996). Essa inovação representa um avanço significativo, transformando o tabelião em um julgador privado para as questões que lhe forem submetidas pelas partes. A efetivação desta competência depende, contudo, de regulamentação pelo CNJ ou pelas Corregedorias locais quanto ao procedimento e aos emolumentos a serem cobrados.
  • Condução de conciliação e mediação: Os cartórios podem conduzir os procedimentos, proporcionando uma alternativa célere ao processo judicial.
  • Gerenciamento de contas escrow: Permite que os cartórios atuem como terceiros de confiança na retenção de fundos até o cumprimento de obrigações contratuais (conforme o novo art. 7º-A da lei 8.935/1994), garantindo a segurança das transações.

Essas inovações transformam o cartório de um mero formalizador de atos consensuais em um verdadeiro centro de resolução de conflitos, alinhado à visão de um sistema de justiça plural e acessível.

Conclusão: A consolidação de um novo ecossistema de Justiça

A análise dos dados e da evolução legislativa das últimas décadas evidencia que a extrajudicialização não é mais uma tendência, mas uma realidade consolidada e um pilar fundamental do sistema de justiça brasileiro. A transferência de atribuições para notários e registradores demonstrou ser uma política pública de sucesso, capaz de gerar economia bilionária para o Estado, conferir celeridade à vida do cidadão e aumentar a eficiência do Poder Judiciário, permitindo que magistrados foquem em casos de maior complexidade jurídica.

O fortalecimento do papel das serventias extrajudiciais, agora também como agentes de mediação, conciliação e até mesmo arbitragem, aponta para o futuro: um ecossistema de justiça multiportas, onde o Judiciário atua como gestor e guardião final das garantias constitucionais, mas compartilha com outros atores, igualmente qualificados e fiscalizados, a nobre tarefa de pacificar a sociedade. O desafio, agora, é aprofundar essa colaboração e disseminar a cultura da consensualidade, garantindo que o cidadão veja nos cartórios não apenas um local para formalizar atos, mas uma porta de entrada para a solução eficaz e justa de suas demandas.

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Referências

DIAS, Eduardo Rocha; SALES, Lília Maia de Morais; SILVA, Marcelo Lessa da. Notários e registradores: protagonistas de um novo sistema de acesso à justiça no Brasil. Scientia Iuris, Londrina, v. 26, n. 3, p. 32-50, nov. 2022.

ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG/BR). Cartório em Números: Especial Desjudicialização. 6ª Edição. Brasília: Anoreg/BR, 2024.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Justiça em Números 2024: ano-base 2023. Brasília: CNJ, 2024.

Legislação Citada

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro (Lei dos notários e registradores). Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996. Dispõe sobre a arbitragem. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei nº 11.441, de 4 de janeiro de 2007. Altera dispositivos da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administra32tiva. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Brasília, DF: Presidência da República.

BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Dispõe sobre o aprimoramento das regras de garantias (Marco Legal das Garantias). Brasília, DF: Presidência da República.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 16, de 17 de fevereiro de 2012. Dispõe sobre o reconhecimento de paternidade.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017. Institui modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito, a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais, e dispõe sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A" e sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida.

Marcelo Lessa da Silva

VIP Marcelo Lessa da Silva

Pós-Doutor em Direito (UniSalento/ITA); Doutor em Direito e Teoria Política (UNIFOR); Mestre em Direito (UCP); Mestre em Gestão Pública (UNESA); Professor, Tabelião e Diretor de Estudos do IEPTB/RO

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