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Romance em cadeia e o declínio da representação política

A pesquisa discute o declínio do Legislativo, sua desconexão social e a quebra do romance em cadeia, comprometendo a coerência normativa e a estabilidade democrática.

terça-feira, 2 de setembro de 2025

Atualizado às 15:10

Introdução

De que forma a atuação do Legislativo brasileiro, marcada por proposições redundantes, irrelevantes ou conflitantes com a legislação vigente, afeta a efetividade da democracia representativa e compromete a coerência normativa do ordenamento jurídico?

O objetivo é analisar criticamente a atuação do Legislativo brasileiro no contexto da democracia representativa, identificando como a produção legislativa desconectada das demandas sociais e do ordenamento jurídico vigente contribui para o enfraquecimento institucional e democrático.

Ademais, pretende-se contextualizar historicamente o papel do Legislativo na democracia representativa, com base em autores como Norberto Bobbio e John Stuart Mill. Explicitar-se-á, por meio de dados empíricos, a qualidade e a relevância da produção legislativa recente no Brasil, com destaque para os resultados do levantamento do IEPS e do O Estado de S. Paulo.

Ainda, como objetivo específico, aplicar a metáfora do "Romance em Cadeia" de Ronald Dworkin ao processo legislativo, discutindo a importância da coerência e da continuidade normativa. Por fim, pretende-se identificar os impactos da baixa qualidade legislativa sobre a legitimidade do Parlamento e sobre a estabilidade do sistema democrático brasileiro.

A pesquisa adota abordagem qualitativa, de natureza exploratória e descritiva, com base em revisão bibliográfica e análise documental. O referencial teórico compreende autores clássicos e contemporâneos da filosofia política e do Direito, como Norberto Bobbio, Orlando Villas Bôas Filho e Ronald Dworkin.

A parte empírica utiliza dados secundários obtidos do levantamento do IEPS - Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo, referente às proposições legislativas apresentadas no Congresso Nacional em 2024. O método de análise fundamenta-se na hermenêutica jurídica, articulando teoria e dados empíricos para avaliar a coerência legislativa e seus impactos na democracia representativa.

2. Os fundamentos teóricos da democracia representativa

A democracia representativa, tal como concebida por Norberto Bobbio e John Stuart Mill, funda-se na premissa de que o povo, por meio de eleições periódicas e livres, delega a representantes a tarefa de formular leis que expressem seus interesses, preservem direitos e respondam às demandas concretas da sociedade. Essa forma de governo pressupõe que o parlamento seja um espaço de deliberação qualificada, onde se produz legislação capaz de enfrentar problemas reais e promover o bem comum.

Os regimes políticos que hoje se caracterizam como democráticos originaram-se, direta ou indiretamente, a partir das revoluções do final do século XVIII, notadamente na França e nos Estados Unidos, sendo que a partir do século XIX, a ideia do povo como única fonte de legitimação do poder político começa a se impor progressivamente (Bôas Filho, 2013).

A democracia, como forma de governo, é antiga e, não obstante o transcorrer dos séculos e todas as discussões que se travaram, o significado descritivo do termo não se alterou. A mudança ocorrida não foi sobre o titular do poder político, que sempre reside no povo, mas na forma como ele é exercido: da democracia direta dos antigos à democracia representativa dos modernos (Bobbio, 2023).

Diversamente da democracia direta exercida na Grécia antiga, em que os cidadãos da polis se reuniam na Ágora para deliberar sobre as questões de interesse da coletividade, na moderna democracia representativa o povo elege representantes que defendem seus interesses.

Nesse contexto, o Legislativo deve legislar levando em consideração o ordenamento jurídico em vigor, avaliando a legislação que possua afinidade com a proposição apresentada. Ronald Dworkin, ao desenvolver a metáfora do "Romance em Cadeia", originalmente concebida para o Judiciário, a fim de combater o ativismo judicial, oferece uma imagem igualmente aplicável à atividade legislativa.

Tal qual um grupo de romancistas que escreve coletivamente uma obra, cada novo capítulo precisa dar continuidade coerente à história já construída, adaptando-se aos fatos anteriores e mantendo-se fiel ao enredo e à intenção da narrativa.

No plano legislativo, isso significa que as proposições devem ser compatíveis com o conjunto normativo vigente e com os desígnios constitucionais, funcionando como a continuidade de um projeto nacional que integra história, cultura e necessidades sociais. Legislações extravagantes ou repetidas, que colidem com o direito positivo ou reproduzem normas já existentes, rompem a lógica dessa continuidade e comprometem a coerência do "romance" institucional.

3. Um diagnóstico da atuação legislativa e seus impactos na democracia representativa

O cenário brasileiro recente revela um preocupante distanciamento dessa missão. Segundo levantamento do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo (p. A20), em 14/8/25, foram analisadas 2.568 proposições apresentadas no Congresso em 2024, das quais 1.314 tratavam de saúde (Estadão, 2025a).

Dentre estas, 37% contrariavam leis vigentes e 26% apenas repetiam normas já em vigor, sem qualquer inovação. Exemplos incluem propostas que afrontam a reforma psiquiátrica (2001) ou o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Além disso, 23% das proposições na área de saúde mental contrariavam princípios da RAPS - Rede de Atenção Psicossocial, como a prioridade ao atendimento comunitário em detrimento da internação, e 14% possuíam baixa relevância, como a criação de datas comemorativas.

Esse esvaziamento do papel representativo do Legislativo se manifesta também em sua prática procedimental. Em editorial publicado em 18/8/25, o O Estado de S. Paulo, sob o título "Câmara recalcitrante", denunciou a aprovação de emendas em comissões parlamentares sem qualquer debate substantivo e em afronta a decisões do STF.

Segundo a crítica, sob a condução do relator Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e do presidente Fernando Rodolfo (PL-PE), foram aprovadas alterações significativas sem respeito ao devido processo legislativo, o que compromete a legitimidade das normas e enfraquece a função representativa do parlamento.

Exemplo eloquente dessa lógica é a tentativa recente de reinserção do chamado "voto impresso" no Código Eleitoral. Apesar de já ter sido declarado inconstitucional pelo STF (ADIn 5889/20), o tema retorna à pauta do Congresso como se representasse inovação normativa.

Trata-se, em verdade, de um expediente legislativo marcado pela redundância e pela inutilidade prática, que não apenas compromete a eficiência do processo legislativo, mas também desgasta a relação institucional entre os Poderes, fomentando desconfiança no sistema democrático e eleitoral (Estadão, 2025b).

É certo que o parlamento mantém competência constitucional para legislar sobre direito eleitoral, ainda que em temas previamente analisados pelo STF. Contudo, a questão não reside na mera possibilidade formal de legislar, mas na qualidade da deliberação legislativa.

A tentativa de reintroduzir o "voto impresso", por exemplo, desconsidera que a atual sistemática de votação eletrônica é mais segura e auditável, enquanto a impressão de votos representaria, em verdade, a criação de novas vulnerabilidades e custos para o processo eleitoral.

Ao investir energia em pautas já declaradas inconstitucionais e que não oferecem ganho institucional real, o Legislativo incorre em prática que traduz sua decadência epistemológica e política.

A desnecessidade da medida é manifesta, uma vez que, nas eleições de 2022, o TSE promoveu auditoria ampla e irrestrita, com a participação de entidades independentes, órgãos de controle e especialistas, sem que fosse detectada qualquer irregularidade.

Pergunta-se, pois: qual a necessidade de rediscutir o voto impresso? Ao que parece, a intenção não é aumentar a segurança, mas justamente comprometê-la, fragilizando o sistema que se consolidou como um dos mais confiáveis do mundo. A insistência legislativa nesse ponto ilustra, assim, a decadência de um Parlamento que, ao invés de legislar em prol de avanços institucionais, recorre a pautas já superadas, ineficazes e perigosas.

A contradição entre discurso e prática também se revela na esfera econômica. Em entrevista ao Estadão (21/8/25), o economista-chefe da Moody's Analytics, Mark Zandi, advertiu que a economia norte-americana está "à beira da recessão", pois já enfrenta estagnação no mercado de trabalho e retração no consumo.

Segundo ele, "cerca de 60% dos custos tarifários são absorvidos pelas empresas americanas, reduzindo margens de lucro, e 40% são repassados ao consumidor", o que pressiona os preços e agrava a perda de poder de compra. O diagnóstico foi contundente: "a economia já dá sinais de estagnação e pode entrar em recessão caso o consumo continue retraindo".

Mesmo diante desse alerta, o deputado Eduardo Bolsonaro encontra-se nos Estados Unidos não apenas incentivando, mas trabalhando ativamente para a implementação do tarifaço. A ironia é inevitável: quem se proclama defensor da pátria atua, na prática, contra os interesses nacionais e até contra os interesses americanos, já que a própria análise técnica mostra que a medida agrava a recessão.

Trata-se de um "patriotismo de fachada", que abandona a defesa do povo brasileiro e se dedica a representar uma pauta externa, sem mandato e sem legitimidade para tanto. É a expressão acabada da decadência da democracia representativa: parlamentares que, em vez de legislar em favor da sociedade que os elegeu, tornam-se propagandistas de políticas estrangeiras, desvirtuando completamente o sentido do cargo público que ocupam.

Trata-se de um sintoma claro de esvaziamento do papel representativo do Legislativo, que deveria ser um dos pilares da democracia. A lógica representativa exige que o parlamento seja não apenas um produtor de leis, mas um canal de diálogo entre o povo e o Estado e um mediador das demandas sociais.

Quando os representantes se afastam dessa função, abrem-se espaços para populismos, extremismos e para o uso arbitrário de conceitos como "patriotismo" ou "defesa da democracia" para legitimar práticas contrárias à própria essência democrática.

O enfraquecimento do Legislativo enquanto instância de mediação gera consequências graves: compromete o equilíbrio entre os Poderes, corrói a confiança pública nas instituições e aprofunda a polarização política.

Mais do que improdutividade, o problema está na baixa qualidade e na irrelevância social de parte significativa da produção legislativa, voltada a interesses corporativos ou eleitorais, em detrimento do interesse público.

Infelizmente, o que se observa atualmente é que grande parte do Legislativo brasileiro não mais cumpre esse papel, estando ocupado com proposições que não visam o bem dos seus representados, mas o interesse de poucos.

Propostas que pleiteiam anistia para determinados grupos, o fim do foro privilegiado apenas em contextos politicamente oportunistas ou mesmo o apoio a governos estrangeiros em detrimento dos interesses do próprio país e do seu povo, revelam um distanciamento preocupante da missão constitucional que deveria guiar a atividade parlamentar.

Esse quadro revela uma perigosa distorção da função parlamentar: em vez de representar a nação como um todo, muitos legisladores passam a atuar como se fossem mandatários de grupos específicos, defendendo interesses corporativos ou particularistas.

A prática recente de apoio a medidas que buscam anistiar aqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito, ou ainda de pautas alinhadas à defesa de figuras políticas específicas, é exemplo claro desse desvio.

No entanto, a própria essência da democracia representativa moderna impede que representantes atuem como meros porta-vozes de grupos ou indivíduos. Como observa a tradição liberal, consolidada após a dissolução do Estado de estamentos, a representação política se funda exatamente na desvinculação do representante em relação ao mandato vinculativo de seus eleitores (Bobbio, 2023).

O parlamentar, uma vez eleito, não responde a corporações ou facções, mas deve agir em nome de toda a sociedade, desenvolvendo suas decisões com autonomia e sem subordinação a interesses particulares.

A democracia moderna, portanto, pressupõe que a fragmentação social seja superada pela recomposição institucional em nível mais elevado: o Parlamento. Sua missão é assegurar que as pautas legislativas se orientem pelo interesse público e pelos princípios constitucionais, e não pela lógica de proteção de aliados.

Sem um Parlamento capaz de legislar com coerência, técnica e compromisso social, a democracia representativa se esvazia e o projeto constitucional brasileiro corre o risco de se tornar apenas um registro histórico, um "romance" interrompido antes de seu melhor capítulo.

O resgate dessa instituição passa por recolocar o interesse público no centro da produção legislativa, assegurar a coerência normativa e reafirmar o compromisso com os princípios constitucionais. Sem isso, o Parlamento não apenas perderá sua relevância, mas colocará em risco a legitimidade e a estabilidade de todo o edifício democrático brasileiro.

Considerações finais

A análise desenvolvida evidencia que a atual decadência do Legislativo brasileiro não se limita a uma deficiência técnica ou procedimental, mas configura um problema estrutural que compromete a essência da democracia representativa.

A incoerência normativa, a produção legislativa redundante e a desconexão com as demandas sociais indicam um afastamento do Parlamento de sua função de guardião do interesse público e de continuador de um projeto constitucional coerente, como sugere a metáfora do "Romance em Cadeia" de Ronald Dworkin.

Resgatar a centralidade do interesse coletivo, reforçar a qualidade técnica das proposições e assegurar a harmonia com o ordenamento vigente são passos indispensáveis para restaurar a legitimidade dessa instituição.

Contudo, mais do que apontar soluções imediatas, este estudo convida a um debate amplo e interdisciplinar sobre como reconfigurar o papel do Legislativo no século XXI, de modo a compatibilizar tradição e inovação, responsabilidade institucional e abertura para as transformações sociais, preservando a integridade do sistema democrático brasileiro.

Com base no que se restou explicitado, resta o questionamento, Como estabelecer mecanismos eficazes de filtragem e controle de qualidade das proposições legislativas para evitar a apresentação de projetos redundantes, inconstitucionais ou de baixa relevância social, para resgatar a centralidade do interesse público na atividade parlamentar, fortalecendo a confiança da população e assegurando a vitalidade da democracia representativa?

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BARBOSA, Andeirson da Matta. Reflexões Epistemológicas. São Paulo: Dialética, 2024.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. 19. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2023.

BÔAS FILHO, Orlando Villas. Democracia: a polissemia de um conceito político fundamental. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 108, p. 651-696, 2013.

DWORKIN, Ronald. Law's Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986.

O ESTADO DE S. PAULO. 1/3 dos projetos de lei sobre saúde contraria ou repele políticas. O ESTADO DE S. PAULO, São Paulo, 14 ago. 2025. Caderno A, p. A20.

O ESTADO DE S. PAULO. Câmara recalcitrante. O ESTADO DE S. PAULO, São Paulo, 18 ago. 2025. Caderno A, p. A3.

O ESTADO DE S. PAULO. CCJ do Senado aprova voto impresso em novo Código Eleitoral. O ESTADO DE S. PAULO, São Paulo, 21 ago. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/ccj-do-senado-aprova-voto-impresso-em-novo-codigo-eleitoral/. Acesso em: 21 ago. 2025.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 5889, Rel. Min. Rosa Weber, j. 06 jun. 2020. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5301499. Acesso em: 21 ago. 2025.

ZANDI, Mark. Entrevista ao Estadão: Economia dos EUA está à beira da recessão, diz economista da Moody's. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 21 ago. 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br. Acesso em: 21 ago. 2025.

Andeirson da Matta Barbosa

VIP Andeirson da Matta Barbosa

Mestre em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM. Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Revisor de periódicos. Autor e coautor de livros jurídicos.

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