Wittgenstein e o Direito Penal: A linguagem como base para a imputação
Neste artigo explico como a filosofia analítica redefine o sentido da ação e fortalece a legitimidade da punição.
quinta-feira, 4 de setembro de 2025
Atualizado às 14:07
A filosofia do século XX testemunhou uma revolução silenciosa, mas profunda: a linguagem deixou de ser apenas um meio de expressão e passou a ser concebida como a própria estrutura do pensamento. Foi nesse movimento que Ludwig Wittgenstein se destacou como figura decisiva, e é a partir dele que proponho repensar os fundamentos da imputação penal. Este artigo inaugura uma série de três, em que exploro como a filosofia da linguagem sustenta as bases da teoria significativa da imputação, conforme desenvolvo em minha obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).
A imputação penal, por mais técnico que seja o seu exercício, repousa inevitavelmente sobre categorias linguísticas. Não é possível imputar um fato sem descrevê-lo; não se define dolo ou imprudência sem recorrer a construções linguísticas. Se a linguagem é o solo sobre o qual assentamos nossas decisões jurídicas, é preciso compreender como ela opera, e é exatamente aí que Wittgenstein oferece ferramentas insubstituíveis.
Ao rejeitar a dicotomia mente/corpo, Wittgenstein desautoriza toda tentativa de interpretar a ação humana a partir de estruturas ocultas ou supostos estados internos não verificáveis. Não há "intenção secreta" a ser desvendada no interior do sujeito; há, sim, enunciados, práticas, contextos e jogos de linguagem compartilhados socialmente. A imputação penal, nesse quadro, não é mais um juízo psicológico, mas uma operação linguística normativamente orientada.
Wittgenstein nos ensina que o significado de uma palavra é seu uso no jogo de linguagem. Isso significa que a ação penalmente relevante não pode ser compreendida isoladamente, mas apenas dentro do jogo normativo em que se insere. É nesse ponto que a teoria significativa da imputação se ancora: se a imputação é sempre linguística, é preciso que a linguagem jurídica siga regras claras, compreensíveis e socialmente verificáveis. Não se pode aceitar imputações fundadas em presunções, crenças subjetivas ou metáforas morais.
Na fase do Tractatus, Wittgenstein buscava uma linguagem perfeita, capaz de representar logicamente o mundo. Já nas Investigações Filosóficas, ele rompe com essa idealização e passa a valorizar a linguagem ordinária, concreta, imperfeita, mas dotada de significado por seu uso em contextos específicos. É aqui que a dogmática penal tem muito a aprender. Ao invés de perseguir estruturas lógicas fechadas, devemos compreender que os conceitos jurídicos só fazem sentido dentro das formas de vida jurídicas que os sustentam.
A figura do "jogo de linguagem" é central para essa virada. A imputação penal não pode ser entendida como uma operação universalmente padronizada; ela varia conforme o jogo normativo em que ocorre, e é isso que garante sua legitimidade social. O que se exige do jurista não é adivinhar a mente do agente, mas verificar se, segundo as regras do jogo, determinada conduta pode ou não ser imputada a título de dolo ou imprudência. A responsabilidade penal, portanto, deixa de ser um problema de introspecção e passa a ser um problema de linguagem compartilhada.
É nesse ponto que se revela a verdadeira força filosófica de Wittgenstein para o Direito Penal. Ao demonstrar que "seguir uma regra" não é um ato individual, mas social, ele desmonta a ilusão do dolo eventual como expressão de uma "vontade presumida". Como afirmo em minha obra, o dolo eventual é uma ficção jurídica incompatível com uma teoria da imputação fundada na linguagem e no uso público das regras.
O Direito não é um espelho da alma humana, mas uma prática social regulada por formas de linguagem. Se assim é, a vontade penalmente relevante só pode ser aquela que se manifesta de forma inteligível, segundo regras compartilhadas. Qualquer tentativa de inferir vontade oculta, desejo implícito ou aceitação tácita de risco, sem base linguística verificável, é dogmaticamente ilegítima.
Portanto, se queremos um Direito Penal democrático, devemos abandonar a metafísica da intenção e adotar a clareza da linguagem. Wittgenstein nos ensina que "seguir uma regra" só faz sentido se essa regra puder ser seguida também por outro. A imputação penal deve obedecer ao mesmo princípio: só pode ser legítima se puder ser compreendida, justificada e criticada dentro do jogo de linguagem jurídico.
Este é o ponto de partida da teoria significativa da imputação: a superação do subjetivismo e da metafísica, em favor de uma imputação transparente, normativamente orientada e linguisticamente estruturada. Nos próximos artigos, explorarei as ideias de jogos de linguagem, formas de vida e regras, e mostrarei como essas categorias transformam nossa compreensão do dolo, da imprudência e da própria imputação.
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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).


