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União estável: Quando Estado-Juiz se contradiz, a verdade é a primeira vítima

É a Justiça que se mostra cega ao afeto e surda à realidade com decisões contraditórias- a verdade dos fatos é primeira vítima.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Atualizado às 13:07

Pense-se em um caso complexo e emblemático: a existência de duas decisões judiciais, oriundas de juízos distintos - um cível e outro criminal - que tratam do mesmo fato jurídico, a união estável entre duas pessoas, mas chegam a conclusões opostas.

Ficou uma esquizofrenia jurídica! Certo?

Vamos logo adiantando: somente a técnica processual fria não dá uma resposta correta nesse caso complexo.

Ela terá que dialogar com a hermenêutica constitucional e Filosofia do Direito a fim de não se fazer injustiça hermenêutica.

O reconhecimento da união estável na esfera criminal e sua negação na esfera cível não é apenas uma incongruência processual: é a fragmentação da verdade judicial. Um sintoma de colapso hermenêutico e institucional.

Ou seja, o juízo criminal, após análise das provas apresentadas, concluiu que havia vínculo afetivo entre o casal. Já juízo civil negou alegando não haver afeto. 

A jurisdição é una

A jurisdição é una. Ainda que se manifeste por diferentes competências - cível, penal, trabalhista ou administrativa - ela representa a atuação de um único ente: o Estado.

Por isso, é juridicamente inadmissível que esse mesmo Estado, por meio de seus órgãos judiciais, profira decisões contraditórias sobre o mesmo fato.

A diversidade de competências entre juízos cível e criminal não afasta a unidade da jurisdição, que é expressão única do poder estatal.

O fato de decisões contraditórias serem proferidas por juízos distintos não mitiga o problema hermenêutico e institucional que se instala quando o mesmo fato - a existência de união estável - é reconhecido em uma esfera criminal e negado na esfera civil.

Vamos fazer uma análise crítica da contradição decisória entre juízos cível e criminal, à luz da hermenêutica constitucional e da filosofia do Direito.

Peço socorro a: Ronald Dworkin, Lenio Streck e Hans-Georg Gadamer.

Sustenta-se que existe, sim, uma resposta correta no Direito - e que a ação rescisória, nesse contexto, é o instrumento legítimo para restaurar a coerência institucional, à integralidade e à confiança na jurisdição

Princípio da coerência

A Constituição Federal consagra o princípio da segurança jurídica, que pressupõe previsibilidade e coerência nas decisões judiciais.

A fragmentação decisória entre juízos cível e penal, por exemplo, não pode comprometer essa coerência institucional.

Como afirma Lenio Streck "a coerência não é uma virtude opcional do Direito. É uma exigência lógica e constitucional."

Essa frase de Streck é uma crítica contundente à falta de consistência nas decisões judiciais.

Ela sintetiza uma tese central da hermenêutica jurídica contemporânea: o Direito não pode se permitir contradições internas sem comprometer sua legitimidade..

A coerência não é uma virtude opcional do Direito: Isso quer dizer que o sistema jurídico não pode funcionar como um conjunto de decisões isoladas ou casuísticas.

A coerência é um pressuposto lógico e ético da jurisdição. Sem ela, o Direito deixa de ser um sistema e passa a ser um amontoado de respostas desconexas.

É uma exigência lógica e constitucional: A lógica exige que o mesmo fato não seja afirmado e negado ao mesmo tempo.

A Constituição, por sua vez, exige segurança jurídica, igualdade e previsibilidade - todos dependentes da coerência decisória.

O Estado não pode ser esquizofrênico

Quando diferentes juízos decidem de forma incompatível sobre o mesmo fato, o Estado parece falar com vozes conflitantes - como se tivesse múltiplas personalidades jurídicas.

Isso, por óbvio, mina a confiança dos cidadãos e enfraquece a autoridade institucional.

A unidade da jurisdição exige que o Estado fale com uma só voz - e essa voz deve ser racional, previsível e respeitosa da dignidade dos jurisdicionados..

Essa crítica é ,especialmente, relevante em casos como o reconhecimento de união estável em juízo penal e sua negação no juízo cível.

A coerência não é apenas desejável - é indispensável para que o Direito continue sendo Direito.

Embora cada juízo tenha autonomia decisória, essa autonomia não pode resultar em contradições que ameaça à segurança jurídica, à coerência e à integralidade do Direito.

A fragmentação decisória, nesse caso, não é apenas um erro técnico - é uma violação à integridade do Direito e à confiança que os cidadãos depositam na jurisdição.

A ação rescisória, portanto, emerge como instrumento necessário para restaurar a coerência institucional e reafirmar que o Estado-Juiz deve falar com uma só voz.

O caso paradigmático: Reconhecimento de união estável no Penal vs. negação no Cível

A controvérsia gira em torno de imbróglio, a ser julgado pela Seção de Direito Privado do TJ/RJ, que desafia os princípios mais elementares da coerência decisória e da hermenêutica constitucional. 

Trata-se de um mesmo núcleo fático - a existência de uma união estável entre duas pessoas - que foi objeto de análise por dois juízos distintos, com conclusões diametralmente opostas.

Pode isso, Excelências? Ficamos reféns da subjetividade dos juízos?

No âmbito cível, primeiramente, ao julgar ação de reconhecimento e dissolução de união estável, o juízo competente concluiu pela inexistência do vínculo afetivo, negando os efeitos jurídicos pretendidos pela parte autora.

Entretanto, em momento posterior, após o trânsito em julgado, no âmbito criminal, ao julgar ação penal que envolvia as mesmas partes e mesmo fato probante, o juízo criminal reconheceu a existência da união estável, na questão prejudicial, como pressuposto lógico e necessário para decidir a ação penal, onde absolveu à ré.

Da prova nova

Uma coisa: esse reconhecimento, posterior, por outro juízo, configura, sim. prova nova, que não estava disponível à época do julgamento cível, nos termos do art. 966 VII, do NCPC, pois altera substancialmente o panorama probatório da ação originária civil, sendo capaz de, por si só, de conduzir a resultado diverso.

A sentença penal, mais bem instruída e com acesso a novos elementos probatórios, reconheceu expressamente a existência da união estável, em contradição direta com a decisão cível anterior.

A pergunta que se impõe é: pode o Estado-Juiz afirmar e negar simultaneamente um mesmo fato jurídico, com base nos mesmos sujeitos e circunstâncias fáticas?

Quando o Estado-Juiz se contradiz: A verdade é a primeira vítima . Não é apenas a verdade que sofre - e a dignidade da pessoa envolvida que é colocada em xeque.

Essa dissonância compromete a isonomia, a segurança jurídica e a integridade da jurisdição.

A ausência de diálogo entre juízos revela uma falha hermenêutica que compromete a legitimidade do sistema.

A hermenêutica constitucional como antídoto à contradição

A partir da hermenêutica não há mais espaço para qualquer tipo de raciocínios que levem à discricionaridade judicial, na reflexão de Lenio Streck. Busca-se eliminar subjetivismo, ativismo, decisionismo e solipsismo.

Como assim, solipsismo? Explico. Vamos lá: Do latim solus (sozinho) e ipse (mesmo). "O solipsismo pode ser entendido como a concepção filosófica de que o mundo e o conhecimento estão submetidos estritamente à consciência do sujeito".

De outro modo: O solipsismo é a ideia de que o mundo e o conhecimento estão submetidos unicamente à consciência do sujeito. 

Por isso, é equivocada a concepção de que o Direito corresponde simplesmente à opinião do juiz.

Não há mais espaço para o "decido-conforme-a-minha-consciência". Não, mesmo!

Porém, no dia a dia, encontramos decisões judiciais que desconsideram as provas apresentadas, os argumentos das partes, as normas legais, doutrina, e a Constituição.   

É o juiz solipsista!

A interpretação jurídica deve ser orientada pelos princípios constitucionais - dignidade da pessoa humana, igualdade, segurança jurídica.

A hermenêutica constitucional, conforme Gadamer, exige: "uma fusão de horizontes entre texto e contexto, entre norma e fato. A compreensão jamais é um comportamento subjetivo frente a um 'objeto' dado"

Temos que deixar que o texto nos fale alguma coisa. Texto é evento. Texto é tradição. Texto é entrega.

A coerência entre decisões não é uma opção, mas uma exigência hermenêutica. O juiz não interpreta isoladamente, mas dentro de um sistema que exige integridade, coerência e racionalidade.

A verdade judicial e o compromisso com a integridade

Ronald Dworkin propõe que o Direito deve ser interpretado como integridade: cada decisão judicial deve ser parte de uma narrativa coerente, que respeita os precedentes e os princípios fundamentais.

Quando o Estado-Juiz se contradiz, essa narrativa se rompe - e a verdade judicial entra em colapso.

A verdade judicial não pode ser circunstancial. Ela deve ser construída com base na integridade e na coerência do sistema jurídico.

Ação rescisória como instrumento de reconstrução da verdade

A ação rescisória, nesse contexto, não é apenas uma ferramenta processual. Ela é um mecanismo de reparação institucional, capaz de restaurar a coerência e proteger a integridade da jurisdição.

Quando há decisões inconciliáveis sobre o mesmo fato, a rescisória se torna um dever ético do sistema jurídico.

A verdade judicial em colapso

A verdade judicial é construção institucional que depende da integridade, da coerência e da racionalidade das decisões proferidas pelo Estado-Juiz.

Quando esse mesmo Estado se contradiz - reconhecendo um vínculo afetivo no juízo penal e negando-o no cível, por exemplo - ele rompe com a lógica que

sustenta a jurisdição.

O resultado não é apenas uma injustiça hermenêutica, mas o colapso da própria ideia de Justiça

Essa ruptura gera:

  • Insegurança jurídica: o cidadão não sabe qual versão da verdade será aplicada.
  • Deslegitimação institucional: o Judiciário perde autoridade e previsibilidade.
  • Violação da dignidade humana: a pessoa é tratada como sujeito de direitos em um juízo e como estranha em outro.

Quando o Estado-Juiz se contradiz: A verdade judicial em colapso

A jurisdição, enquanto expressão do poder estatal de dizer o Direito, como já falado, deve ser marcada pela coerência, pela integridade e pela racionalidade.

No entanto, o que ocorre quando o próprio Estado-Juiz se contradiz?

Quando o Estado-Juiz se contradiz, essa construção desmorona - e com ela, a própria ideia de Justiça.

A confiança do cidadão na jurisdição depende da previsibilidade e da consistência das decisões. Depende da cabeça de cada juízo.

Aí, o sistema jurídico perde legitimidade e se torna um espaço de arbitrariedades!

A partir da hermenêutica constitucional e da filosofia do Direito, sustenta-se que a coerência não é uma virtude opcional: é uma exigência lógica e constitucional. E quando ela falha, o Direito deixa de cumprir sua função essencial - garantir Justiça.

O risco da esquizofrenia jurídica

Essa fragmentação não apenas deslegitima o sistema, mas também alimenta a judicialização excessiva, a desconfiança social e o descrédito das instituições. A superação desse risco exige um compromisso ético com a coerência decisória e a unidade da jurisdição.

Conclusão

A contradição entre decisões judiciais sobre os mesmos fatos representa um colapso hermenêutico e institucional. A verdade judicial, para ser legítima, precisa ser coerente, íntegra e constitucionalmente orientada.

É preciso resgatar a hermenêutica constitucional como guia interpretativo e Filosofia do Direito, e, reafirmar o compromisso com a integridade decisória e coerência.

A ação rescisória vem para corrigir distorções que ameaçam a unidade da jurisdição. Sim, havia muito amor e afeto!

partir da hermenêutica constitucional e da filosofia do Direito, sustenta-se que a coerência e integralidade não são virtudes opcionais: é uma exigência lógica e constitucional.

E quando ela falha, o Direito deixa de cumprir sua função essencial - garantir Justiça.

É preciso que o Judiciário olhe além da técnica processual fria, dialogando com a hermenêutica constitucional e Filosofia do Direito e enxergue mais o ser humano.

Só assim verdade deixará de ser vítima e protagonista!

Renato Otávio da Gama Ferraz

VIP Renato Otávio da Gama Ferraz

Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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