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Tentativa de estupro e a segurança no contrato de transporte aéreo

Neste breve estudo, analisa-se o conteúdo e alcance da cláusula de incolumidade nos contratos de transporte, e a responsabilidade do transportador pelo seu descumprimento.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Atualizado às 11:32

Ganhou destaque nos noticiários o caso envolvendo uma suposta tentativa de estupro, relatada por uma brasileira que foi hospedada pela companhia aérea TAP em um hotel na França, em razão do cancelamento de um voo que partiria de Paris com destino à Lisboa, do qual a suposta vítima era passageira.1

Segundo o relato da mulher, para cumprir o dever de hospedar os passageiros em hotel enquanto aguardassem pelo novo embarque para Lisboa, a companhia aérea a teria acomodado em um quarto junto com outros dois ocupantes (uma alemã e outro brasileiro), sem opção de troca.

Ainda segundo noticiado, enquanto a passageira brasileira dormia, a alemã - sentindo-se incomodada por dividir a acomodação com pessoas desconhecidas - teria se retirado do quarto e regressado ao aeroporto. Após a saída da outra hóspede, a brasileira afirma ter acordado com homem sobre si, completamente nu, tentando beijá-la, tendo conseguido se livrar do suposto agressor após se debater e gritar por socorro.

Embora pendente de apuração oficial, o contexto favorece a análise que se propõe através deste breve texto: o dever de segurança imposto ao transportador pela cláusula de incolumidade no contrato de transporte.

A cláusula de incolumidade é um dos pilares fundamentais em que se baseia a responsabilidade civil do transportador no contrato de transporte. Embora não esteja sempre escrita de forma explícita no bilhete de passagem ou no contrato, ela é um elemento implícito e essencial, cuja existência decorre da própria natureza do serviço e da lei.2

A cláusula de incolumidade traduz o dever jurídico que o transportador assume de levar o passageiro (ou a coisa) ao seu destino em segurança e sem danos. Trata-se de uma obrigação de resultado, e não de meio3. Ou seja, o transportador não se compromete apenas a ser diligente, mas garante que o resultado - a chegada incólume do passageiro e sua bagagem - será efetivamente alcançado.

Sua natureza jurídica pode ser compreendida no dever implícito em todo e qualquer contrato de transporte oneroso. Ao celebrar o contrato, que geralmente é de adesão, o transportador assume uma obrigação de segurança, seja por força do art. 734 do CC4, que traz implícito o dever de incolumidade, seja pela incidência do art. 8º do CDC5, que estatui uma cláusula geral de segurança para produtos e serviços colocados no mercado de consumo, fundamentada na Teoria da Qualidade.6

A responsabilidade decorrente da quebra da cláusula de incolumidade é objetiva e solidária entre todos os fornecedores que integram a cadeia de fornecimento de serviços7, ou seja, independe da comprovação de dolo ou culpa do transportador. Para que surja o dever de indenizar, basta a comprovação de três elementos: (i) a conduta (a execução do transporte), (ii) o dano sofrido pelo passageiro ou sua bagagem e (iii) o nexo de causalidade entre o transporte e o dano.

Essa responsabilidade se fundamenta na Teoria do Risco da Atividade8. Entende-se que aquele que lucra com uma atividade potencialmente danosa, como o transporte, deve arcar com os riscos a ela inerentes.

No contexto em que se escreve este artigo, é importante salientar que a cláusula de incolumidade não produz efeitos somente durante o tempo em que o passageiro está dentro do meio de transporte. A jurisprudência se orienta no sentido de que a execução do contrato de transporte abrange todo o percurso, desde o embarque até o completo desembarque do passageiro em seu destino9. Isso inclui os períodos de espera em aeroportos, rodoviárias, estações, portos, plataformas ou pontos de parada, o trajeto em si até o momento do desembarque e a saída das dependências do respectivo terminal.

Qualquer evento danoso ocorrido durante esse período é, em princípio, de responsabilidade do transportador. Como exemplo, cite-se o caso julgado pela 3ª turma do STJ, no REsp 1.728.068/SP, relatado pelo ministro Marco Aurélio Bellizze, no qual se apurou a responsabilidade civil de companhia aérea por roubo ocorrido em ônibus, após o transporte aéreo ter sido interrompido, e seguir por via terrestre. Pela didática contida na ementa do julgado, reproduz-se abaixo sua íntegra, destacando-se o tópico 1.3:

RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. 1. TRANSPORTE AÉREO QUE SEGUIU VIA TERRESTRE (ÔNIBUS), EM VIRTUDE DE CANCELAMENTO DO VÔO. PASSAGEIROS ROUBADOS DURANTE O TRAJETO. CONCORRÊNCIA DE CULPA DA TRANSPORTADORA. ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL E UNILATERAL DO CONTRATO. PECULIARIDADES DO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO DE FORTUITO EXTERNO. 2. VALORES ARBITRADOS A TÍTULO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. ACÓRDÃO RECORRIDO BEM FUNDAMENTADO. INEXISTÊNCIA DE ILEGALIDADE. 3. JUROS DE MORA. RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. TERMO INICIAL A PARTIR DA CITAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA PACÍFICA DO STJ. 4. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO.

1. No que concerne ao transporte de pessoas, o ordenamento jurídico estabelece a responsabilidade civil objetiva do transportador, o qual deverá responder pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo a existência de alguma excludente de responsabilidade, como motivo de força maior, caso fortuito, culpa exclusiva da vítima ou de terceiro.

1.1. Em relação ao fato de terceiro, todavia, a teor do que dispõe o art. 735 do CC, a responsabilidade só será excluída se ficar comprovado que a conduta danosa era completamente independente em relação à atividade de transporte e aos riscos inerentes à sua exploração, caracterizando-se, nesse caso, como fortuito externo.

Precedentes.

1.2. Nessa linha de entendimento, a jurisprudência do STJ reconhece que o roubo dentro de ônibus configura hipótese de fortuito externo, por se tratar de fato de terceiro inteiramente independente ao transporte em si, afastando-se, com isso, a responsabilidade da empresa transportadora por danos causados aos passageiros.

1.3. Não obstante essa seja a regra, o caso em análise guarda peculiaridade que comporta solução diversa. Com efeito, a alteração substancial e unilateral do contrato firmado pela recorrente - de transporte aéreo para terrestre -, sem dúvida alguma, acabou criando uma situação favorável à ação de terceiros (roubo), pois o transporte rodoviário é sabidamente muito mais suscetível de ocorrer crimes dessa natureza, ao contrário do transporte aéreo. Dessa forma, a conduta da transportadora concorreu para o evento danoso, pois ampliou significativamente o risco de ocorrência desse tipo de situação, não podendo, agora, se valer da excludente do fortuito externo para se eximir da responsabilidade.

2. Em relação aos danos morais, não se verifica qualquer exorbitância no valor arbitrado de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), pois, além do cancelamento do vôo pela recorrente, o autor foi obrigado a seguir o trajeto por via terrestre (ônibus), viagem que durou mais de 14h (quatorze horas), sendo, ainda, durante o percurso e na madrugada, roubado e agredido por meliantes.

3. No tocante aos danos materiais, conquanto haja uma certa dificuldade em comprovar os bens efetivamente subtraídos em casos dessa natureza, as instâncias ordinárias, após amplo exame do conjunto fático-probatório produzido, decidiram de forma correta a questão, levando-se em consideração para a aferição do quantum indenizatório, na linha de precedentes desta Corte, além da inversão do ônus da prova, nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor, a verossimilhança das alegações, embasada na estrita observância ao princípio da razoabilidade.

4. Tratando-se de responsabilidade contratual, os juros de mora devem ser computados a partir da citação, a teor do art. 405 do CC. Precedentes.

5. Recurso especial parcialmente provido.

(REsp 1.728.068/SP, relator ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª turma, julgado em 5/6/2018, DJe de 8/6/2018.) (sem destaque no original)

Mutatis mutandis, a exemplo do julgado acima, na conjuntura do caso em análise a companhia aérea criou para a passageira uma situação favorável a ação de terceiro (suposto estuprador), exatamente no interregno de produção de efeitos da cláusula de incolumidade, sendo que a ação desse terceiro não afasta o dever de indenizar, pois não configura caso fortuito externo.

Quando o transporte é contratado no ambiente jurídico de uma relação de consumo - o que é a regra geral no transporte público de passageiros -, as normas do CC dialogam com as do CDC, por força da Teoria do Diálogo das Fontes.10

A teoria em questão ganha especial importância no contrato de transporte, pois, embora o CDC preveja a responsabilidade objetiva do fornecedor de serviços, conforme disposto no caput do seu art. 14, o inciso II do § 3º do mesmo dispositivo traz como excludente de responsabilidade do fornecedor a culpa de terceiro, o que poderia, em tese, fundamentar eventual defesa da companhia aérea pela suposta tentativa de estupro, que, numa análise perfunctória, poderia ser compreendida como fortuito externo.11

Entretanto, o art. 735 do CC traz norma mais benéfica para o consumidor, ao dispor que o fato de terceiro não elide a responsabilidade do transportador, atraindo a aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes, e desse modo conferindo maior proteção ao consumidor.

Para concluir, a cláusula de incolumidade é um dispositivo de proteção fundamental para o passageiro, consagrando seu direito de ser transportado em segurança, da origem até o destino final. Ao qualificar a obrigação do transportador como de resultado e sua responsabilidade como objetiva, o ordenamento jurídico brasileiro, tanto no CC quanto no CDC, busca reequilibrar uma relação contratual desigual em sua gênese, garantindo-se que os riscos da atividade sejam suportados por quem a explora economicamente.

Em última análise, tendo a TAP, supostamente, imposto à consumidora a hospedagem em acomodação que também seria ocupada por terceiros, acabou expondo-a eventuais atos atentatórios à sua privacidade, intimidade e liberdade sexual por parte de terceiro que ocupava a mesma acomodação, descumprindo, desse modo, o dever jurídico de garantir a incolumidade da consumidora.

________

1 https://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2025/09/02/brasileira-relata-tentativa-de-estupro-apos-tap-acomoda-la-em-quarto-de-hotel-com-homem-desconhecido.ghtml

2 "Sem dúvida, a característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportador não é apenas de meio, e não só de resultado, mas também de segurança. Não se obriga ele a tomar as providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Tem o transportador o dever de zelar pela incolumidade do passageiro na extensão necessária a lhe evitar qualquer acontecimento funesto (...). Em suma, entende-se por cláusula de incolumidade a obrigação que tem o transportador de conduzir o passageiro são e salvo ao lugar de destino". (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 328)

3 "A obrigação de meio é aquela em que o devedor se obriga tão-somente a usar de prudência e diligência normais na prestação de certo serviço para atingir um resultado, sem, contudo, se vincular a obtê-lo. Infere-se daí que sua prestação não consiste num resultado certo e determinado a ser conseguido pelo obrigado, mas tão-somente numa atividade prudente e diligente deste em benefício do credor. Seu conteúdo é a própria atividade do devedor, ou seja, os meios tendentes a produzir o escopo almejado, de maneira que a inexecução da obrigação se caracteriza pela omissão do devedor em tomar certas precauções sem se cogitar do resultado final. A obrigação de resultado é aquela em que o credor tem o direito de exigir do devedor a produção de um resultado, sem o que se terá o inadimplemento da relação obrigacional. Tem em vista um resultado em si mesmo, de tal sorte que a obrigação só se considerará adimplida com a efetiva produção do resultado colimado. Como essa obrigação requer um resultado útil ao credor, o seu inadimplemento é suficiente para determinar a responsabilidade do devedor, já que basta que o resultado não seja atingido para que o credor seja indenizado pelo obrigado, que só se isentará de responsabilidade se provar que não agiu culposamente. (...)." (Maria Helena Diniz, Curso de direito civil brasileiro, vol. 7, p. 191-192.)

4 Art. 734. O transportador responde pelos danos causados às pessoas transportadas e suas bagagens, salvo motivo de força maior, sendo nula qualquer cláusula excludente da responsabilidade.

5 Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito.

6 "A teoria da qualidade (...) comporta dois aspectos distintos: a proteção do patrimônio do consumidor (com o tratamento dos vícios de qualidade por inadequação) e a proteção da saúde do consumidor (com o tratamento dos vícios de qualidade por insegurança). Logo, a teoria da qualidade tem um pé na órbita da tutela da incolumidade físico-psíquica do consumidor e outro na tutela de sua incolumidade econômica". (BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de Direito do Consumidor. 7ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2016, p. 164).

7 "A conduta que se reclama do fornecedor é sua participação na colocação do produto ou serviço no mercado, em qualquer das fases em que esta tenha se desenvolvido. Neste sentido, a conduta se caracteriza pela participação do fornecedor no processo de produção e disposição deste produto ou serviço no mercado. Daí porque o regime de responsabilidade previsto pelo CDC é abrangente de todos os agentes econômicos integrantes da cadeia de fornecimento." (MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 5. ed. São Paulo: RT, 2014, p. 535)

8 "A responsabilidade objetiva adotada pelo CDC foi a do risco da atividade e não a do risco integral. Isso se demonstra claramente, pois o artigo previu hipóteses que irão mitigar tal responsabilidade. Poderá o fornecedor, de acordo com o § 3°, levantar em sua defesa que não colocou o produto no mercado ou que, embora o produto tenha entrado no mercado de consumo, o defeito inexiste ou que o dano foi causado por culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro. São verdadeiras excludentes de responsabilidade, afastando a teoria do risco integral". (GARCIA, Leonardo. Código de Defesa do Consumidor: Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional. 2ª ed. Salvador: Juspodivn, 2020, p. 266-267)

9 "(...) O contrato de transporte de passageiros envolve a chamada cláusula de incolumidade, segundo a qual o transportador deve empregar todos os expedientes que são próprios da atividade para preservar a integridade física do passageiro, contra os riscos inerentes ao negócio, durante todo o trajeto, até o destino final da viagem. Precedente. (...) (REsp n. 1.786.722/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 9/6/2020, DJe de 12/6/2020.)

10 "É o atual e necessário 'diálogo das fontes' (dialogue de sources), a permitir a aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas convergentes. 'Diálogo' porque há influências recíprocas, 'diálogo' porque há aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente (...) ou mesmo permitindo uma opção por uma das leis em conflito abstrato. Uma solução flexível e aberta, de interpretação ou mesmo a solução mais favorável aos mais fracos da relação (tratamento diferente dos diferentes)". (MARQUES. Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 24-25)

11 "O fortuito interno é fato imprevisível, e, por isso, inevitável, que se liga à organização da empresa, relacionando-se com os riscos da atividade desenvolvida pelo fornecedor. Assim, conforme leciona Sérgio Cavalieri Filho, seriam exemplos de fortuito interno, o estouro de um pneu do ônibus, o incêndio do veículo, o mal súbito do motorista, etc., já que não obstante acontecimentos imprevisíveis, estão ligados à organização do negócio explorado pelo fornecedor. No fortuito interno, o fornecedor responderá pelos danos ocorridos (ou seja, não é excludente de responsabilidade). Já o fortuito externo é também o fato imprevisível e inevitável, mas estranho à organização do negócio, não guardando nenhuma ligação com a atividade negocial do fornecedor. No fortuito externo, justamente por ser estranho à organização do negócio, o fornecedor não responderá pelo danos sofridos pelo consumidor (ou seja, será excludente de responsabilidade). (GARCIA, Leonardo. Código de Defesa do Consumidor: Doutrina e Jurisprudência para Utilização Profissional. 2ª ed. Salvador: Juspodivn, 2020, pp. 267-268)

Vitor Guglinski

VIP Vitor Guglinski

Advogado. Professor. Especialista em Direito do Consumidor e em direitos do passageiro aéreo. Diretor de Comunicação do Brasilcon. Membro da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG. Autor.

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