Regulação e Governança: As lições da Europa para o Brasil
Enquanto União Europeia mantém modelo integrado de regulação, ancorado em valores constitucionais e mecanismos preventivos, Brasil opera com base em marcos setoriais e reativos.
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
Atualizado às 11:04
A crescente centralização das plataformas digitais na economia global tem impulsionado debates sobre os riscos concorrenciais e sociais associados à sua atuação. Por atuarem como intermediárias centrais em relações comerciais, informacionais e sociais, organizando fluxos de dados, conexões entre usuários e relações de consumo em escala global, observa-se uma série de falhas de mercado típicas, que desafiam a capacidade de resposta dos sistemas regulatórios convencionais.
A começar pela concentração de dados como ativo competitivo, a lógica da economia de escala baseada em infraestrutura digital e a presença de custos marginais quase nulos. O resultado é o surgimento de estruturas de mercado tendencialmente monopolistas ou oligopolistas, com acentuado poder de gatekeeping, ou seja, de controle da entrada e permanência de agentes econômicos nos ecossistemas digitais. Nesse cenário, o poder de mercado exercido por plataformas dominantes pode ser utilizado para práticas de exclusão, como a auto preferência de seus próprios serviços, a limitação de interoperabilidade com terceiros e a imposição de cláusulas contratuais que impedem a portabilidade de dados ou a competição justa por atenção e clientes.
Em resposta a essas disfunções, a União Europeia aprovou dois marcos regulatórios inovadores: o DMA - Digital Markets Act e o DSA - Digital Services Act, que visam corrigir falhas de mercado e proteger os direitos fundamentais no ambiente digital. Trata-se de arcabouço regulatório ambicioso voltado à preservação da concorrência, à segurança informacional e à proteção dos direitos fundamentais no ambiente digital.
O DMA, em vigor desde novembro de 2022, adota uma abordagem ex ante (antes de um evento), impõe obrigações legais a empresas que detenham posição consolidada de intermediação entre empresas e usuários finais. A Comissão Europeia é incumbida de identificar tais plataformas, denominadas gatekeepers, com base em critérios objetivos como faturamento, número de usuários ativos e relevância de intermediação. O DSA, por sua vez, opera desde fevereiro de 2024 com enfoque mais voltado à proteção do ambiente informacional e dos direitos dos usuários, na busca de mais segurança e justiça para todos os integrantes. Consiste num marco normativo estruturado em camadas, prevendo obrigações proporcionais à complexidade e ao impacto das plataformas no ambiente digital.
Ambos os regulamentos compartilham uma arquitetura normativa orientada por valores constitucionais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Liberdade de expressão, proteção de dados pessoais, dignidade humana, não discriminação e liberdade de empreender são princípios que permeiam a lógica regulatória.
Convergências, lacunas e oportunidades
A regulação das plataformas digitais no Brasil é marcada por um conjunto normativo fragmentado e, em larga medida, historicamente reativo. Ainda que existam marcos legais relevantes para orientar a relação atual, como o Marco Civil da Internet (lei 12.965/14), a LGPD (lei 13.709/18), o CDC (lei 8.078/1990) e o CC, observa-se a ausência de um regime jurídico específico e coordenado que enfrente de maneira sistêmica os desafios concorrenciais, informacionais e sociais representados pelas grandes plataformas digitais.
No campo concorrencial, o CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica tem adotado uma abordagem predominantemente ex post (pós-evento), pautada na repressão de condutas anticompetitivas e análise de atos de concentração. Ao contrário do modelo europeu, que define obrigações ex ante para gatekeepers, o Brasil carece de instrumentos legais que imponham deveres comportamentais prévios às plataformas dominantes, o que limita a capacidade do Estado de preservar a contestabilidade dos mercados digitais de forma preventiva e eficaz.
No tocante à proteção de dados pessoais e à autodeterminação informacional, a LGPD representa um avanço importante, ao estabelecer princípios como a finalidade, a transparência e a responsabilização no tratamento de dados. Contudo, sua aplicação concreta ainda enfrenta desafios significativos, especialmente diante de práticas opacas de perfilamento algorítmico, publicidade comportamental e uso de dados sensíveis para fins econômicos. O DSA, nesse ponto, inova ao exigir que plataformas digitais revelem os critérios dos sistemas de recomendação e permitam que usuários escolham alternativas não baseadas em rastreamento, ampliando o leque de mecanismos voltados à autonomia informacional dos indivíduos.
A moderação de conteúdo e a responsabilidade civil das plataformas constituem outro campo em que se observam tensões regulatórias atuais no Brasil, visto o recente julgamento pelo STF acerca da constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet. No modelo europeu, o DSA impõe deveres de diligência às plataformas, como a obrigação de agir tempestivamente diante de conteúdos ilícitos e de implementar sistemas internos de reclamação e recurso, com respeito ao contraditório. Essa abordagem, que privilegia a responsabilização proporcional e processual, pode inspirar o aperfeiçoamento do regime brasileiro, particularmente diante da judicialização crescente das decisões de moderação.
Enquanto a União Europeia constrói um modelo integrado de regulação digital, ancorado em valores constitucionais e em mecanismos preventivos, o Brasil ainda opera com base em marcos setoriais e reativos, com escassa coordenação institucional e baixa densidade normativa sobre temas cruciais como governança algorítmica, riscos sistêmicos e responsabilidade das plataformas dominantes, considerando inclusive os escalonamentos possíveis neste ecossistema.
Diante disso, impõe-se a necessidade de repensar o modelo regulatório brasileiro, promovendo a articulação entre os diferentes instrumentos normativos existentes, fortalecendo as capacidades institucionais das autoridades competentes e adotando medidas proporcionais à complexidade dos mercados digitais.
Letícia Gerard Tavares Málaga
Advogada com ampla experiência em Direito Empresarial e M&A e sócia do Urbano Vitalino Advogados na área de Tecnologia e Inovação.


