Os efeitos e implicações da judicialização abusiva no sistema judiciário brasileiro: Análise da dicotomia entre o livre acesso ao Judiciário e o abuso de direito
O abuso na judicialização desvia o propósito do processo, sobrecarrega o Judiciário e ameaça a eficácia e a equidade na prestação de justiça.
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
Atualizado em 4 de setembro de 2025 13:34
Litigância abusiva e o Estado Democrático de Direito
Este artigo analisa os impactos da litigância abusiva sobre o Estado Democrático de Direito, especialmente no que diz respeito ao acesso à justiça e à duração razoável dos processos. A Constituição de 1988 garante o direito de ação e a inafastabilidade da jurisdição, assegurando a todos o acesso ao Judiciário. Contudo, esse direito tem sido deturpado por práticas abusivas que prejudicam a efetividade da justiça.
A litigância ABUSIVA caracteriza-se pela judicialização massiva e sistemática de ações com petições genéricas e repetitivas, frequentemente desprovidas de fundamentação jurídica sólida. Essa prática compromete a eficiência do Judiciário, sobrecarregando servidores e juízes, atrasando processos legítimos e gerando custos desnecessários para a sociedade.
Além de um problema técnico, a litigância abusiva ameaça a democracia, pois afeta a qualidade da prestação jurisdicional e promove desigualdade entre as partes, violando o princípio da boa-fé e esvaziando a função ética do processo.
Para enfrentar o problema, propõem-se medidas preventivas e repressivas, como o controle rigoroso da admissibilidade de ações repetitivas, o uso de inteligência artificial para identificar padrões abusivos e a responsabilização civil dos litigantes de má-fé. Contudo, é fundamental garantir que essas medidas não restrinjam o acesso legítimo à justiça.
Conclui-se que combater a litigância abusiva é essencial para preservar a essência do Estado de Direito: um Judiciário acessível, eficiente e comprometido com a justiça social.
Definição de litigância abusiva
A litigância abusiva representa uma das formas mais graves de abuso do sistema processual brasileiro. Trata-se da utilização distorcida do direito de ação, não com a finalidade legítima de resolver conflitos reais, mas sim com o intuito de gerar vantagens indevidas, sobrecarregar o Judiciário ou até mesmo inviabilizar o contraditório e a ampla defesa das partes demandadas.
Embora o acesso à justiça seja um direito fundamental garantido pela Constituição Federal de 1988, o seu uso desvirtuado compromete os princípios do Estado Democrático de Direito. Isso ocorre, por exemplo, quando escritórios de advocacia ajuízam milhares de ações idênticas com petições padronizadas, alterando apenas dados pessoais dos autores. Essas práticas impedem uma análise adequada do caso concreto, dificultam a atuação do réu e retardam a prestação jurisdicional.
O CPC, ao estabelecer os deveres de boa-fé e cooperação entre as partes (arts. 5º e 6º), busca preservar a integridade do processo. Quando esses deveres são violados, abre-se espaço para a intervenção do juiz com medidas de controle e repressão ao abuso.
O CNJ, ciente do crescimento desse tipo de prática, publicou em 2022 a recomendação 127, definindo litigância abusiva como o ajuizamento em massa de ações com pedidos semelhantes, geralmente contra os mesmos réus, em diferentes comarcas do país. O objetivo, muitas vezes, é enfraquecer a defesa do réu ou obter decisões favoráveis por meio de pressão judicial.
Ainda assim, como alertam estudiosos como Taruffo e Viaro, a definição jurídica do fenômeno requer cuidado: é necessário distinguir litigância abusiva de simples litigância repetitiva, pois o que caracteriza a predação é o uso intencional e abusivo do Judiciário como ferramenta de desgaste e vantagem processual.
Além do impacto sobre os réus, esse tipo de conduta gera um prejuízo concreto ao Estado e à sociedade, comprometendo a celeridade e a eficácia da justiça. Centros de Inteligência Judiciária têm sido criados em todo o país para mapear e combater esses abusos, identificando padrões e articulando soluções para resguardar o equilíbrio do sistema.
A litigância abusiva, portanto, é mais do que um desafio técnico: é uma ameaça ao funcionamento justo e eficiente do Poder Judiciário e à própria confiança da população no sistema legal. Combater esse tipo de conduta é essencial para preservar o acesso à justiça como direito de todos - e não como instrumento de poucos.
A litigância abusiva configura-se como uma forma sofisticada e repetitiva de abuso do direito de ação. Não se trata de um simples excesso ou erro técnico: é uma conduta planejada e sistemática, cujo objetivo é utilizar o sistema judicial como ferramenta de obtenção de vantagens ilícitas ou desproporcionais, esgotando os recursos do Poder Judiciário, da parte adversa ou de terceiros.
De acordo com Clementino e Pinto (2024), é possível identificar três elementos estruturantes da litigância abusiva:
- Abuso contextual do direito de acesso à justiça, que se revela na prática repetitiva e estratégica de atos processuais com o objetivo de proveito próprio, e não de resolução de conflitos legítimos;
- Desvio de finalidade, no qual se utiliza a via judicial com aparência de legalidade para alcançar fins ou meios ilícitos, escondidos sob a massificação das ações;
- Predação, caracterizada pela consequência previsível (e muitas vezes desejada) de esgotamento de recursos - seja do sistema judicial, seja dos réus.
Esses elementos, quando combinados, permitem diferenciar a litigância abusiva de outras formas de abuso processual. Um ato isolado de má-fé pode configurar um ilícito pontual; já a litigância abusiva depende de uma repetição deliberada e sistemática.
Os autores ainda elaboram uma tipologia das condutas abusivas, com destaque para:
- Fraudulentas: ações que visam legitimar documentos falsos, como contratos fictícios;
- Temerárias: ações ajuizadas sem base jurídica mínima ou com documentos incompletos;
- Frívolas: ações fragmentadas para fugir de regras processuais, como o valor de alçada;
- Procrastinatórias: estratégias para atrasar decisões previsíveis, especialmente em relações comerciais e tributárias;
- Abusivas ou de má-fé (sham litigation): ações ajuizadas com a finalidade exclusiva de atrapalhar ou inviabilizar a atuação de terceiros;
- Spam processual ou desregulativas: uso massivo do Judiciário sem qualquer filtro ou critério mínimo, transferindo o ônus da análise para o sistema e terceiros.
Essas práticas geram não só sobrecarga dos tribunais, mas também violam os princípios da boa-fé, cooperação e efetividade processual. O abuso atinge, portanto, a integridade do sistema como um todo, e exige do Judiciário medidas específicas de controle.
Um exemplo emblemático desse enfrentamento vem do TJ/MS, que analisou milhares de ações sobre empréstimos consignados supostamente não contratados, ajuizadas com documentos genéricos e repetitivos - muitas delas por um único advogado. O TJMS identificou o padrão abusivo e, por meio do IRDR - Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, fixou tese autorizando o juiz a exigir, já no início do processo, documentos mínimos de prova, como procuração, extratos bancários e comprovante de residência.
Essa postura foi validada pelo STJ, no tema repetitivo 1198, que reconheceu a possibilidade de o magistrado condicionar o prosseguimento da ação à apresentação desses documentos, fundamentado no poder geral de cautela - instrumento que permite ao juiz adotar medidas necessárias à boa condução do processo, mesmo que não previstas de forma explícita no Código de Processo Civil.
O caso mostra como a litigância abusiva afeta sobretudo os grupos vulneráveis - no exemplo citado, 97% dos autores das ações eram idosos, muitos analfabetos ou indígenas, manipulados por estruturas que utilizam seus nomes em ações massificadas.
O combate à litigância abusiva exige, portanto, respostas institucionais inteligentes e coordenadas, que unam os poderes judiciais locais, o CNJ, os Centros de Inteligência, os tribunais superiores e a advocacia responsável. Acima de tudo, é necessário garantir que o acesso à justiça não se converta em instrumento de exploração ou de sabotagem do próprio sistema judicial.
Os impactos das demandas abusivas no acesso à Justiça e na razoável duração do processo
A Constituição Federal de 1988 garante a independência e autonomia do Poder Judiciário para assegurar uma prestação jurisdicional eficiente. No entanto, o aumento da litigância abusiva - caracterizada pelo uso abusivo e massivo do direito de ação para obter vantagens indevidas - tem comprometido essa eficiência.
Esse fenômeno se manifesta, entre outras formas, pelo uso inadequado da justiça gratuita, que deveria beneficiar partes vulneráveis, mas é explorada por litigantes habituais para evitar custos processuais. Segundo dados do CNJ e do Centro de Inteligência do TJ/MS, o custo médio de um processo é de aproximadamente R$ 4.000,00, e a atuação de demandas abusivas sob o benefício da justiça gratuita gera prejuízos bilionários ao erário público, recursos que poderiam ser destinados a casos legítimos.
Além do impacto financeiro, a litigância abusiva provoca lentidão e congestionamento no Judiciário, violando o direito constitucional à razoável duração do processo. O aumento artificial da demanda judicial reduz a celeridade, compromete a confiança social no sistema e dificulta o acesso efetivo à justiça.
Doutrinadores e jurisprudência reconhecem que essa prática configura abuso de direito, previsto no CC, ao desviar a função social do processo. Autores recentes defendem a necessidade de reestruturação da gestão judicial para priorizar demandas legítimas e propõem mecanismos de responsabilização e ressarcimento contra litigantes predatórios.
Assim, a litigância abusiva transforma o processo judicial - instrumento fundamental para a pacificação social - em meio de exploração e lucro, representando um desafio estrutural que exige respostas coordenadas e eficazes para proteger o acesso à justiça e a eficiência do Judiciário.
Considerações finais
A partir da análise dos dados do CNJ, do CIJMS e da produção doutrinária recente, é possível concluir que a litigância abusiva:
- Compromete a eficiência da prestação jurisdicional ao sobrecarregar a máquina judiciária;
- Aumenta os custos do processo, gerando prejuízos ao erário e desperdício de recursos públicos;
- Viola o princípio da razoável duração do processo, prejudicando o jurisdicionado de boa-fé;
- Desvirtua a justiça gratuita, transformando-a em escudo para práticas abusivas;
- Exige resposta institucional estruturada, com medidas preventivas, repressivas e corretivas.
Portanto, o enfrentamento desse fenômeno exige, além de atuação jurisdicional firme, o desenvolvimento de mecanismos inteligentes de detecção e controle, o fortalecimento da jurisprudência em matéria de litigância abusiva, e a construção de uma cultura processual baseada na boa-fé, na cooperação e no uso responsável do sistema de justiça.
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Matheus Maia da Silva
Graduado em direito pela universidade Unigran Capital em Campo Grande/MS, paralegal no escritório Mascarenhas Barbosa, com atuação estratégica em direito bancário e contencioso de massa a mais de 4 anos.


