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Devedores contumazes e o julgamento da ADIn 4.854/RS

STF admite regime diferenciado para devedores contumazes (ADIn 4.854/RS), validando o combate à concorrência desleal e apontando para a necessidade de uniformização Federal.

quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Atualizado às 10:53

No dia 2/9/25, o Senado Federal aprovou o PLP 125/22, que almeja criar um "Código de Defesa do Contribuinte", com um marco normativo mais amplo sobre direitos e garantias dos contribuintes, que, entre outros pontos, disciplina de forma expressa a questão do devedor contumaz. 

O projeto em questão, que define o devedor contumaz como "o sujeito passivo cujo comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial, reiterada e injustificada de tributos", não foi a única iniciativa acerca do tema no Poder Legislativo, visto que, em 2024, o Poder Executivo Federal enviou ao Congresso o PL 15/24, que disciplina programas de conformidade tributária e, entre outras medidas, traz regras sobre o devedor contumaz e as condições para fruição de benefícios fiscais. 

Na exposição de motivos do PL 15/24, enviada pelo Ministério da Fazenda ao presidente da República, destacou-se, quanto ao devedor contumaz, que, "em projeção inicial da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, o comprometimento do patrimônio com débitos não garantidos abrange certa de R$ 1.000 contribuintes, o que demonstra que a presente proposta atingirá uma fração mínima do total de mais de R$ 20 milhões de empresas cuja inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica - CNPJ encontra-se em situação ativa".

Apesar de tal quantidade diminuta de empresas, há estimativa, a partir de estudo da Receita Federal citado pelo Senador Efraim Filho, relator do PLP 125/22, de que esses cerca de R$ 1.200 CNPJs seriam responsáveis por uma dívida de R$ 200 bilhões1 e que, com o projeto, poderia ser possível recuperar em torno de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões por ano2.

A título de exemplo, pertinente destacar que, no setor de combustíveis, considerado individualmente, existe estimativa - calculada pela FGV, com o apoio do ICL3 - no sentido de que, no ano de 2021, houve perda tributária de R$ 14 bilhões com o mercado irregular, incluindo os devedores contumazes.

A discussão legislativa nacional (e as iniciativas estaduais que a anteciparam) ganharam caráter de urgência política e jurídica porque tratam de um problema prático: empresas que reiteradamente deixam de recolher tributos (por estratégia, má-fé ou gestão fraudulenta) prejudicam as condições de concorrência no mercado e geram dano significativo ao erário. 

Nesse contexto, as proposições Federais visam, em síntese, fixar critérios objetivos e autorizar mecanismos administrativos de intensificação de controle, preservando garantias processuais e distinguindo falhas eventuais de condutas reiteradas e sistemáticas, que justificariam aplicação de medidas administrativas mais incisivas (como a perda de benefícios, suspensão de diferimentos e fiscalização contínua).

Nesse contexto, vários Estados já instalaram regimes específicos para identificar e fiscalizar os chamados devedores contumazes. Em especial, o Rio Grande do Sul aprovou a lei 13.711/11, que instituiu o REF - Regime Especial de Fiscalização e definiu critérios objetivos para o enquadramento.

Nas proposições legislativas e nas leis estaduais convergem dois vetores objetivos, referentes a um critério temporal de repetição (falta de recolhimento do tributo em número mínimo de meses) e a um critério quantitativo, exatamente para não classificar como devedor contumaz qualquer devedor eventual.

A lei gaúcha instituiu o REF para contribuintes enquadráveis como devedores contumazes, delegando à regulamentação - por decreto - a definição de parâmetros operacionais e de critérios de operacionalização. O REF previu medidas que poderiam ser aplicadas isolada ou cumulativamente, com objetivo de assegurar a arrecadação e impedir práticas de concorrência desleal. 

Em face de tal legislação, foi ajuizada ADIn 4.854/RS - Ação de Declaração de Inconstitucionalidade pelo Partido Social Liberal, em que se alegou, em suma (além de questionamentos ao decreto que não foram conhecidos): violação da reserva de lei complementar, lesão à liberdade de iniciativa e ao exercício da atividade econômica (pois o REF poderia operar como sanção desproporcional) e inobservância do princípio da isonomia.

A ADIn 4.854/RS foi julgada improcedente de forma unânime pelo plenário do STF (ata de julgamento publicada em 2/9/25), sendo abordados todos os pontos alegados pela parte autora no voto do ministro relator Nunes Marques.

Quanto à alegada violação da reserva de lei complementar, asseverou o STF ser necessária distinção entre normas que criam ou alteram tributo de normas que meramente disciplinam medidas administrativas de fiscalização e obrigações acessórias. O REF, na sua essência, integra a segunda categoria: regula a forma de cumprimento e as medidas de controle, não institui tributo nem redefine elementos essenciais do fato gerador. Por isso, não se vislumbra infração automática à reserva de lei complementar.

Quanto à alegação de violação à liberdade de iniciativa, pois o REF atuaria como uma sanção política disfarçada, entendeu o STF que "não constitui sanção política a submissão de contribuinte a regime fiscal diferenciado em virtude do inadimplemento reiterado", não havendo violação ou desproporcionalidade em abstrato, apenas sendo possível avaliar caso a caso, consideradas as circunstâncias de cada contribuinte, eventual interferência demasiada no exercício da atividade comercial.

Quanto ao princípio da isonomia, que alegadamente teria sido violado pela legislação ao proteger titulares originários de precatórios, excluindo cessionários, ressaltou o STF que o titular originário detém crédito reconhecido judicialmente; o cessionário, ao operar no mercado secundário, pode implicar dificuldades de verificação e risco de fraudes, sendo a diferenciação, assim, plausível e não configura, em si, violação direta ao princípio da igualdade.

A decisão do STF, no atual contexto em que se busca a regulação da figura do devedor contumaz no âmbito Legislativo Federal, é de particular importância, demonstrando a necessidade da fixação de critérios objetivos e transparentes e de atuação com proporcionalidade, de modo a combater a concorrência desleal e a, ao mesmo tempo, não inviabilizar a atividade empresarial.

No plano legislativo, a existência dos projetos Federais (PLP 125/22 e PL 15/24) oferece oportunidade para uniformizar parâmetros mínimos e reduzir assimetrias entre Estados, tendendo a mitigar riscos de insegurança jurídica e a facilitar a adoção de práticas administrativas consistentes, representando a aprovação do PLP 125/22 pelo Senado Federal um grande avanço no necessário combate ao devedor contumaz.

O STF, assim, conferiu segurança jurídica à adoção, em abstrato, de regimes especiais de fiscalização voltados a devedores contumazes, o que cumpre a legítima função de impedir que agentes capturem benefícios indevidos por meio da inadimplência reiterada e distorçam o mercado, de modo a proteger, além do próprio erário, as empresas que cumprem suas obrigações.

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1 https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2025/09/01/senado-pode-votar-regras-mais-rigidas-para-empresa-que-e-devedora-contumaz 

2 https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/relator-de-devedor-contumaz-espera-que-receita-recupere-r-30-bi-por-ano/  

3 https://institutocombustivellegal.org.br/wp-content/uploads/2021/07/Relatorio_FGV_ICL.pdf 

Vicente Martins Prata Braga

Vicente Martins Prata Braga

Presidente da Associação Nacional dos Procuradores dos Estados e do DF (Anape), advogado, procurador do Estado do Ceará, doutor em Direito. Processual Civil pela USP e pós-doutor em direito público pela UERJ.

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