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Segurança jurídica e o princípio da fraternidade no processo civil

Fraternidade no direito processual amplia a proteção contra arbitrariedades e legitima a busca por decisões justas.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Atualizado em 8 de setembro de 2025 07:12

A segurança jurídica, frequentemente invocada como pilar do Estado de Direito, não constitui apenas um imperativo de estabilidade normativa, mas representa um compromisso estrutural do ordenamento jurídico com a previsibilidade, a confiança legítima e a proteção contra arbitrariedades. Por essa razão, é considerada um sobreprincípio que estrutura o sistema jurídico como um todo, projetando efeitos sobre a interpretação das normas, a atuação dos agentes públicos e a legitimidade das decisões judiciais1.

A importância axiológica e deôntica da certeza jurídica é manifesta, uma vez que presente em todos os ordenamentos jurídicos de países democráticos do mundo2, em que pese não tenha sido positivada por quase nenhum3. Seu conceito guarda íntima relação com a compreensão de liberdade e igualdade, cujo desenvolvimento revolve à Idade Moderna4, com o pensamento contratualista. Por sua instrumentalidade, é elemento densificador de outros princípios, dando-lhes concretude.

No processo civil, sua incidência é particularmente sensível: as partes devem poder confiar que suas condutas serão avaliadas segundo critérios minimamente estáveis, racionais e coerentes com as expectativas legítimas geradas ao longo do procedimento. A previsibilidade das decisões, o respeito às regras do jogo e a proteção contra comportamentos contraditórios ou abusivos não são meras exigências formais. Ao contrário, são manifestações concretas da própria dignidade do jurisdicionado.

É precisamente no interior dessas exigências que se abre espaço para a consideração do princípio da fraternidade como vetor de interpretação e aplicação do direito processual. Se a segurança jurídica visa garantir que o processo seja racional, ordenado e confiável, a fraternidade pode ser compreendida como o princípio que lhe confere densidade ética, funcionalizando valores como a boa-fé, a cooperação e a confiança recíproca entre os sujeitos processuais.

Em um sistema processual comprometido não apenas com a legalidade estrita, mas também com a efetividade e a justiça substancial das decisões, a fraternidade aparece como fundamento normativo que reforça a segurança jurídica. A lógica não é de substituição, mas de complementaridade: um processo civil fraterno é, por definição, mais seguro, porque mais justo, mais leal e mais resistente a práticas oportunistas que distorcem a finalidade do processo.

O princípio da fraternidade ganhou notoriedade na última década no conhecido caso de Cedric Herrou, acusado de crime de solidariedade, julgado pela Corte Constitucional francesa, pela oferta de ajuda humanitária a imigrantes ilegais5. À toda evidência, a exemplo do caso referenciado, a inserção do princípio da fraternidade no campo processual não implica a moralização ingênua ou subjetivista da atividade jurisdicional, mas a incorporação de uma racionalidade ética que é, ao mesmo tempo, constitucionalmente exigida6 e sistematicamente coerente com os fins do processo civil contemporâneo. Não se confunde, portanto, com sentimentalismo.

Trata-se de reconhecer que o processo é um espaço de realização de direitos em uma comunidade jurídica que pressupõe, para seu adequado funcionamento, uma mínima reciprocidade ética entre os sujeitos que o integram. Assim compreendida, a fraternidade opera como um vetor hermenêutico que orienta a conduta processual segundo balizas como lealdade, diálogo e respeito ao contraditório, como exigências normativas de um devido processo legal em sentido substancial.

Nessa intelecção, é de se reconhecer que o princípio da fraternidade densifica outros direitos e garantias fundamentais, como o direito à igualdade e à dignidade da pessoa, bem como estabelece balizas mais sólidas e estruturantes a serem aplicadas como fundamento dos princípios da motivação das decisões judiciais, da proporcionalidade, da razoabilidade e da razoável duração do processo, a depender do caso concreto, ensejando a concretude da força normativa da Constituição.

É precisamente nesse ponto que os princípios da boa-fé7 processual, previsto no art. 5º, do Código de Processo Civil (CPC) e da cooperação (art. 6º, do CPC) se revelam como derivações concretas da fraternidade aplicada ao processo civil. Ambos impõem deveres jurídicos objetivos, cuja inobservância enseja não apenas consequências processuais, mas também a deslegitimação ética da atuação processual.

A boa-fé assegura que as partes possam confiar no comportamento honesto e coerente de seus oponentes, evitando surpresas estratégicas que atentem contra a lógica da confiança mútua. A cooperação, por sua vez, exige que todos os sujeitos do processo, e não apenas as partes, atuem de forma colaborativa para viabilizar uma decisão de mérito justa, tempestiva e efetiva8. Trata-se, assim, de uma dupla ancoragem normativa: enquanto a segurança jurídica exige previsibilidade e estabilidade, a fraternidade exige lealdade e respeito. Ambas, porém, concorrem para um mesmo objetivo: a realização de um processo justo, íntegro e socialmente confiável.

A boa-fé processual transcende a mera repressão de condutas fraudulentas ou dolosas. Ela traduz uma exigência estrutural de comportamento ético e leal por parte de todos os sujeitos processuais, fundada em um modelo de processo que se afasta da lógica puramente adversarial para se aproximar de um modelo dialógico e cooperativo9. A vinculação entre boa-fé e fraternidade torna-se evidente quando se reconhece que ambas partem da premissa de que o processo não é um espaço de inimizade institucionalizada, mas sim de resolução racional de controvérsias em ambiente de respeito mútuo. Assim como a fraternidade implica uma postura de abertura ao outro, a boa-fé exige que as partes atuem com honestidade argumentativa, sem ocultações estratégicas ou manobras que subvertam o caráter público e ético do processo10.

Nesse sentido, a boa-fé processual não pode ser compreendida apenas como uma cláusula geral de conteúdo aberto. Ela comporta dimensões normativas claras e objetivamente exigíveis, tanto na sua face subjetiva (intenção leal), quanto na objetiva (comportamento conforme à confiança legítima). Viola a boa-fé não apenas quem age com dolo, mas também quem pratica condutas contraditórias, desleais ou puramente oportunistas, mesmo que amparadas formalmente no texto da lei.

O processo civil, enquanto instrumento de pacificação e realização de justiça, não tolera estratégias que desvirtuem seu fim público. Por isso, a boa-fé deve ser compreendida como um antídoto normativo contra a degeneração do processo em instrumento de arbítrio privado, e é nesse ponto que a fraternidade reforça sua função legitimadora, ao exigir uma ética relacional mínima entre os sujeitos, fundada no respeito, na confiança e na responsabilidade mútua.

Buscando correlacionar os princípios mencionados com a prática jurídica, o princípio da fraternidade no processo civil se revela, de forma nítida, nas hipóteses em que o comportamento estratégico das partes ultrapassa os limites da boa-fé e da cooperação. O uso de teses jurídicas flagrantemente infundadas, a alteração deliberada da verdade dos fatos ou a proposição de recursos meramente protelatórios são condutas que, embora muitas vezes formalmente viáveis, atentam contra a lógica relacional de confiança que deve reger o processo.

A fraternidade, nesse contexto, age como cláusula de fechamento ético: ela legitima a imposição de sanções processuais e civis, não apenas com base em critérios legais estritos, mas à luz da exigência de integridade procedimental. O processo não é campo livre para o cinismo tático. Por isso, o agir contraditório, o oportunismo malicioso e a argumentação descompromissada com a verdade não apenas violam a boa-fé processual, mas rompem o pacto mínimo de respeito mútuo que a fraternidade exige e que a segurança jurídica pressupõe.

De igual modo, o princípio da fraternidade atua como limite ao exercício do poder jurisdicional. Decisões-surpresa, indeferimentos arbitrários de prova, desprezo pelo contraditório ou uso abusivo da discricionariedade judicial violam não só o devido processo legal, mas também o imperativo fraterno de respeito ao outro enquanto sujeito de direitos. Um juiz que decide sem ouvir, que frustra expectativas legítimas ou que emprega o processo como instrumento de pressão ou punição desvia-se da função garantidora que o processo civil lhe atribui.

Ao reconhecer a fraternidade como fundamento da cooperação e da boa-fé, o sistema impõe ao Estado o dever de atuar com ética institucional, prestando jurisdição de forma transparente, justa e previsível. Nesse cenário, o princípio da fraternidade funciona não como obstáculo à autoridade judicial, mas como baliza normativa que impede sua degradação em autoritarismo. Fraternidade e segurança jurídica, mais uma vez, não se opõem: elas se exigem mutuamente.

Nessa compreensão, é possível afirmar que a segurança jurídica e a fraternidade não apenas convivem, mas se reforçam mutuamente no processo civil contemporâneo. Enquanto a segurança jurídica confere previsibilidade, estabilidade e proteção à confiança legítima, a fraternidade introduz uma dimensão ética que exige lealdade, respeito e cooperação entre os sujeitos processuais. Trata-se de dois pilares que, juntos, asseguram não apenas um processo formalmente regular, mas substancialmente justo e humanamente íntegro.

A consolidação de um processo civil fraterno, no qual as partes, advogados e juízes compartilhem um mínimo ético de conduta, não é utopia normativa, mas exigência constitucional. Boa-fé e cooperação não são meras idealizações: são mecanismos que concretizam o devido processo legal em sua forma mais robusta. Reconhecer a fraternidade como vetor de interpretação e limitação ética do procedimento é, portanto, dar um passo decisivo na afirmação de uma jurisdição que seja, ao mesmo tempo, eficaz, justa e humanamente legítima.

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1 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 86-87.

2 ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica, 6ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2021, p.124, explica que "(...) um ordenamento jurídico privado de certeza não poderá, por definição, ser considerado "jurídico". Essa concepção foi aquela sustentada por muitos autores, dentre os quais se destacam alguns. Assim, Radbruch afirma que a segurança jurídica, ao lado da justiça e da conformidade a fins, são os elementos que compõem o núcleo do Direito e sem os quais ele não se caracteriza.1 Bobbio sustenta ser a segurança jurídica não apenas uma exigência decorrente da coexistência ordenada do homem, mas também um "elemento intrínseco do Direito", destinado a afastar o arbítrio e a garantir a igualdade, não se podendo sequer imaginar um ordenamento jurídico sem que subsista uma garantia mínima de segurança."

3 Excepciona-se a Constituição espanhola, que em seu artigo 9.3 estabelece que "La Constitución garantiza el principio de legalidad, la jerarquía normativa, la publicidad de las normas, la irretroactividad de las disposiciones sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales, la seguridad jurídica, la responsabilidad y la interdicción de la arbitrariedad de los poderes públicos"

4 VALEMBOIS, Anne-Laure Cassard. L'exigence de sécurité juridique et l'ordre juridique français: 'je t'aime, moi non plus...', (Disponível em: https://www.cairn.info/revue-titre-vii-2020-2-page-1.htm&wt.src=pdf, acesso em 27/08/2025). Ao comentar quanto à necessária observância do princípio da segurança jurídica como temperamento à aceleração normativa, em proteção ao direito adquirido pela limitação da retroatividade legislativa, a professora da Universidade de Bourgogne, após afirmar que o princípio se apresenta como um produto de importação do direito alemão, que aos poucos foi internalizado ao ordenamento jurídico interno pelas normas jurídicas da União Europeia e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,  assevera que "(...) La rétroactivité normative est du reste plus largement encadrée, tant par le Conseil d'État que par e Conseil constitutionnel. Le premier a reconnu que le principe de non-rétroactivité des actes administratifs est un principe général du droit. Le second a tout d'abord largement interprété l'interdiction des lois rétroactives en matière pénale qui résulte de l'article 8 de la Déclaration de 1789 en considérant qu'elle s'applique pour toute sanction ayant le caractère d'une punition".

5 Conselho Constitucional Francês: Decisão 2018-717/718QPC - Questão prioritária de constitucionalidade, 6 de julho de 2018. BARZOTTO, Luciane Cardoso. 2018-717/718 A justiça constitucional francesa e o princípio da fraternidade no Conselho Constitucional. Revista de direito do trabalho, v. 45, n. 204, ago. 2019, p. 1-20.

6 Os princípios constitucionais processuais foram listados e analisados por Nelson Nery Junior: do macroprincípio do devido processo legal (due process of law), o autor extrai os seguintes princípios que dele são derivados - o da isonomia, o do juiz e do promotor naturais, o da inafastabilidade do controle jurisdicional, o do contraditório e da ampla defesa, o da proibição da prova ilícita, o da publicidade dos atos processuais, o do duplo grau de jurisdição, o da motivação das decisões judiciais e administrativas, o da presunção de não culpabilidade e o da celeridade e da razoável duração do processo (NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017).

7 "Regra diretriz do comportamento das partes (e de todos quantos atuem no processo) está presente no art. 14 do CPC (LGL\1973\5), que prevê, dentre outros, o dever de proceder com lealdade e boa-fé. Constitui, tal dever, decorrência natural - no plano do direito processual civil - da cláusula geral da boa-fé que está na base de todo o sistema jurídico brasileiro" (WAMBIER, Luiz Rodrigues. Abuso do Procedimento Especial. Revista de Processo, vol. 204/2012, pp. 51-73, Fev. 2012).

8 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015, p. 89-91.

9 Sobre o tema, veja-se que a boa-fé está intimamente relacionada ao princípio da solidariedade (ou da fraternidade): "Como indicado (n. 3.3, acima), a boa-fé e a lealdade processual também tem direta fundamentação constitucional. Para os agentes públicos que participam do processo (juiz, MP, auxiliares da justiça, defensores e advogados públicos, partes do processo que integrem a Administração Pública etc.) aplica- se a imposição jurídica da moralidade (CF, art. 37, caput), de modo que, qualquer conduta deles contrária à boa-fé é, por determinação constitucional, igualmente antijurídica. Já quanto aos particulares, embora não se ponha norma constitucional equivalente a essa, que juridiciza em termos integrais a moralidade, põe-se de todo modo o princípio constitucional da solidariedade (CF, art. 3º, I) - o que também implica conduta leal dos sujeitos privados em suas relações" (WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado, v. 1: teoria geral do processo. 22. ed. rev., atual. e ampl. Londrina, Editora Thoth, 2025, p. 83).

10 MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Novos Direitos Contemporâneos. São Paulo: Atlas, 2008, p. 220-221.
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Referências Bibliográficas:

ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2017.

ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica, 6ª Edição, São Paulo: Malheiros, 2021;

BARZOTTO, Luciane Cardoso.2018-717/718 A justiça constitucional francesa e o princípio da fraternidade no Conselho Constitucional. Revista de direito do trabalho, v. 45, n. 204, ago. 2019.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 27/08/2025 2023;

BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Dispõe sobre o Código Civil. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília, DF, ano 142, n. 53, p. 1-74, 18 de março de 2015. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/507525 . Acesso em: 27/08/2025 2025

ESPANHA. Constituição (1978). Constituição Espanhola. Madrid, 1978;

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado. São Paulo: RT, 2015;

MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: TEPEDINO, Gustavo (coord.). Novos Direitos Contemporâneos. São Paulo: Atlas, 2008;

NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do processo na Constituição Federal. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.

VALEMBOIS, Anne-Laure Cassard. L'exigence de sécurité juridique et l'ordre juridique français: 'je t'aime, moi non plus...', (Disponível em: https://www.cairn.info/revue-titre-vii-2020-2-page-1.htm&wt.src=pdf, acesso em 27/08/2025 ;

WAMBIER, Luiz Rodrigues. Abuso do Procedimento Especial. Revista de Processo, vol. 204/2012, pp. 51-73, Fev. 2012;

WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso Avançado, v. 1: teoria geral do processo. 22. ed. rev., atual. e ampl. Londrina, Editora Thoth, 2025, p. 83;

Luiz Rodrigues Wambier

Luiz Rodrigues Wambier

Advogado, Doutor em Direito pela PUCSP, Professor nos Programas de Mestrado e Doutorado do IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa.

Cyntia Melo Rosa

Cyntia Melo Rosa

Mestre e Doutoranda pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP-DF).

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