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A responsabilidade civil do cirurgião em erro médico atribuído ao anestesista: comentários ao REsp 2.034.495/MG

O julgamento do REsp 2.034.495 constitui importante marco jurisprudencial ao reforçar a necessidade de individualização da conduta culposa nos casos de erro médico.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Atualizado às 18:19

1. Introdução

A responsabilidade civil médica constitui um dos campos mais complexos do Direito Civil contemporâneo, dada a multiplicidade de agentes envolvidos na prestação dos serviços de saúde e a necessidade de individualização das condutas.

Em procedimentos cirúrgicos, especialmente, a atuação integrada de diversos profissionais - cirurgiões, anestesistas, instrumentadores, enfermeiros - impõe ao julgador o desafio de delimitar as fronteiras de responsabilidade de cada integrante da equipe médica.

Nesse cenário, o STJ vem consolidando entendimento de que não se admite a imputação automática de responsabilidade solidária ao médico-cirurgião por falhas técnicas cometidas de forma exclusiva pelo anestesista, reconhecendo-se a autonomia funcional deste último.

Tal posicionamento foi reafirmado no julgamento do REsp 2.034.495, relatado pela ministra Daniela Teixeira.

2. O caso concreto

No processo analisado, os pais de uma paciente ajuizaram ação de indenização contra o hospital e o médico-cirurgião em razão do falecimento de sua filha, ocorrido após complicações decorrentes de aspiração maciça de conteúdo gástrico durante a indução anestésica em laparotomia exploradora.

Embora o TJ/MG tenha mantido a condenação solidária do cirurgião e do hospital, sob o fundamento de que a cirurgia ocorrera sob a supervisão do primeiro, o STJ reformou a decisão.

Corte reconheceu a ilegitimidade passiva do cirurgião, concluindo que a morte resultara exclusivamente de falha na condução anestésica, não havendo prova de conduta culposa imputável ao profissional que chefiava a equipe cirúrgica.

3. Fundamentação jurídica

3.1. A responsabilidade subjetiva do profissional liberal

O ponto de partida da análise reside no art. 14, § 4º, do CDC, que consagra a responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais. Dessa forma, exige-se a comprovação de conduta culposa, nexo causal e dano para a configuração da obrigação indenizatória.

3.2. A autonomia técnica do anestesista

O STJ ressaltou que o anestesista atua com plena autonomia técnica e científica, sem subordinação direta ao cirurgião, razão pela qual deve responder isoladamente por falhas cometidas no âmbito de sua especialidade.

Esse entendimento já havia sido consolidado em precedentes paradigmáticos, como os embargos de divergência no REsp 605.435¹ e o REsp 1.790.014².

Assim, a responsabilidade civil deve recair sobre o profissional que efetivamente deu causa ao dano, afastando-se hipóteses de solidariedade presumida entre cirurgião e anestesista.

3.3. Doutrina aplicada

A decisão dialoga diretamente com a doutrina de Miguel Kfouri Neto, que distingue a responsabilidade do anestesista daquela atribuída ao cirurgião:

"A responsabilidade civil do anestesista não se confunde com a do cirurgião, porquanto aquele exerce função própria e especializada, com obrigações que se iniciam no momento da avaliação pré-anestésica e se estendem até o acompanhamento pós-operatório, sendo-lhe atribuída, inclusive, em determinados contextos, uma obrigação de resultado"³.

Nessa perspectiva, não há espaço para imputação automática de culpa ao cirurgião por falhas exclusivas do anestesista, cuja atuação é autônoma e especializada.

3.4. A responsabilidade do hospital

Diversa, entretanto, é a posição do hospital, cuja responsabilidade pode decorrer de forma objetiva, com fundamento nos arts. 932, III, e 933 do CC, em razão da disponibilização da estrutura hospitalar e da vinculação contratual com o paciente.

A jurisprudência do STJ mantém firme a imputação de responsabilidade solidária às instituições hospitalares, quando configurada a falha na prestação global do serviço de saúde.

4. Conclusão

O julgamento do REsp 2.034.495 constitui importante marco jurisprudencial ao reforçar a necessidade de individualização da conduta culposa nos casos de erro médico. O precedente reafirma três premissas fundamentais:

  • o anestesista responde de forma pessoal e subjetiva por falhas em sua esfera de atuação;
  • o cirurgião não pode ser responsabilizado por erros exclusivos daquele;
  • o hospital, por sua vez, pode ser responsabilizado objetivamente, em razão da prestação global dos serviços.

Trata-se de decisão de grande relevância prática, por garantir segurança jurídica tanto para pacientes quanto para profissionais de saúde, além de contribuir para a consolidação de um sistema de responsabilidade civil médica fundado na justa distribuição de deveres e ônus probatórios.

Referências

1. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. EREsp 605.435/RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. p/ Acórdão Min. Raul Araújo, Segunda Seção, j. 14 set. 2011, DJe 28 nov. 2012.

2. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.790.014/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 11 maio 2021, DJe 10 jun. 2021.

3. KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 208-212.

4. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 2.034.495/MG, Rel. Min. Daniela Teixeira, Terceira Turma, j. 05 ago. 2025 (acórdão ainda não publicado em repositórios oficiais).

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira

Vitor Eduardo Tavares de Oliveira

Assessor de Ministra do Superior do Tribunal de Justiça. Defensor Público do Estado do Paraná. Ex-Defensor Público do Estado do Maranhão. Mestrando pela Universidade de Buenos Aires. Pós-graduado pela FESMPDFT e Unitar (ONU). Organizador da obra Faixa Verde no Júri.

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