É possível ser condenado na Maria da Penha sem exame de corpo de delito?
Apesar de o exame de corpo de delito ser indispensável nos crimes com vestígios, condenações por violência doméstica têm ocorrido com base apenas na palavra da suposta vítima.
sábado, 20 de setembro de 2025
Atualizado em 19 de setembro de 2025 09:50
1. Introdução
O exame de corpo de delito, previsto no art. 158 do CPP, é tradicionalmente considerado prova indispensável para a condenação em crimes que deixam vestígios. No entanto, no contexto das ações penais por violência doméstica, essa exigência tem sido relativizada por parte da jurisprudência, que passou a admitir a substituição do laudo pericial por outros meios de prova - inclusive a palavra isolada da suposta vítima, muitas vezes amparada por diretrizes como o protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Este ensaio analisa criticamente essa flexibilização, apontando seus riscos à legalidade, ao contraditório e à presunção de inocência do acusado.
2. O papel do exame de corpo de delito nos crimes com vestígio
De acordo com o art. 158 do CPP, "quando a infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado". Trata-se de norma de ordem pública, cujo objetivo é impedir condenações baseadas apenas em narrativas ou impressões subjetivas. O laudo pericial é, portanto, o instrumento técnico que dá suporte à verificação da materialidade do delito.
3. A realidade prática: Ausência de laudo e flexibilização das garantias
Na prática forense, é comum que a suposta vítima de violência doméstica alegue agressões, mas não se submeta ao exame pericial no IML - Instituto Médico Legal. Muitas vezes, isso se dá por escolha pessoal ou orientação de terceiros. Diante dessa omissão, o Judiciário, apoiado em doutrina e jurisprudência feminista, tem aceitado outras formas de prova, como fotos, relatórios médicos particulares, e até mesmo apenas a versão da vítima. Essa tendência se intensificou com a difusão do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero, que preconiza a valorização da palavra da mulher, especialmente nos crimes de violência doméstica praticados em contexto íntimo e privado.
4. O risco da condenação sem perícia
A substituição do exame técnico por testemunhos subjetivos ou documentos unilaterais coloca em xeque o direito fundamental à prova. Não se trata de descredibilizar a palavra da mulher, mas sim de evitar que ela, sozinha, tenha força probatória plena em crimes que, por definição legal, exigem prova técnica da materialidade. Quando o exame não é realizado - mesmo sendo possível - e o Judiciário admite sua substituição por outros meios frágeis, corre-se o risco de condenações injustas, e amesquinhamento do direito fundamental à prova.
5. A inversão do ônus da prova
A situação se agrava quando a ausência da perícia decorre da própria escolha da suposta vítima, que, mesmo tendo condições de se submeter ao exame, opta por não o fazer. Nesses casos, admitir a condenação com base apenas em sua versão implica transferir o ônus da prova ao acusado, que passa a ter que provar que não agrediu, contrariando frontalmente o princípio da presunção de inocência. Isso representa uma distorção grave do devido processo legal, onde, por lógica, cabe à acusação comprovar os fatos imputados.
6. A crítica à jurisprudência permissiva
A jurisprudência que relativiza o art. 158 do CPP sob o argumento de proteção à mulher ignora o limite entre proteção e violação de garantias processuais. A lógica do "em caso de dúvida, a palavra da vítima prevalece" não pode justificar o afastamento de regras processuais e fundamentais claras. O discurso de gênero não pode servir como licença para exceções perigosas que, se aceitas, corroem a imparcialidade do sistema penal e desestimulam o cumprimento das obrigações probatórias por parte do Estado.
7. A proteção não pode justificar o desequilíbrio
A proteção da mulher em situação de violência é um dever do Estado, mas não pode ser exercida à custa da integridade das garantias penais. O uso do protocolo de gênero deve respeitar os limites legais e constitucionais e não pode ser invocado como substituto de provas técnicas. A defesa não pode ser fragilizada por uma presunção de culpa travestida de sensibilidade institucional. Justiça com parcialidade não é justiça - é ativismo judicial contra legem.
8. Conclusão
Condenar alguém por crime com vestígio sem exame de corpo de delito representa grave violação ao devido processo legal. A ausência dessa prova não pode ser suprida pela palavra isolada da suposta vítima, ainda que embasada por discursos de gênero. A justiça deve ser equilibrada, técnica e baseada em provas consistentes. Proteger a mulher é essencial, mas condenar sem perícia é romper com a legalidade, com o contraditório e com a própria ideia de justiça penal garantista. O verdadeiro enfrentamento à violência doméstica deve ocorrer com rigor, mas também com respeito às garantias fundamentais do acusado, pois proteger à mulher é também proteger a lei, a Constituição e os direitos humanos.


