Desjudicialização de litígios em massa: Disputas bancárias e consumo
O artigo explora a (des)judicialização de litígios de massa em disputas bancárias e de consumo. Examina bases normativas, aspectos econômicos e alternativas para sua resolução.
quarta-feira, 10 de setembro de 2025
Atualizado às 14:57
A judicialização em massa constitui um dos mais graves desafios atuais doPoder Judiciário brasileiro. O acúmulo processual que sobrecarrega os tribunais - atualmente com mais de 89 milhões de ações em trâmite - revela, de forma inequívoca, a incapacidade estrutural do modelo tradicional de resolução de conflitos de absorver a complexidade e a repetitividade dos litígios gerados por uma sociedade de consumo em larga escala. Esse fenômeno transcende estatísticas: representa a concretização de um problema sistêmico que ameaça a efetividade do direito fundamental de acesso à Justiça e compromete o próprio funcionamento das instituições judiciais.
Nesse cenário, a desjudicialização dos litígios de massa não deve ser compreendida como negação da jurisdição estatal, mas como reconfiguração do modo de tratamento, prevenção e resolução dos conflitos. Trata-se de um movimento alinhado ao modelo de Justiça Multiportas, amplamente consolidado no plano internacional e acolhido pelo Judiciário brasileiro, com o objetivo de assegurar racionalidade, eficiência e efetividade especialmente no enfrentamento das demandas bancárias e consumeristas, que representam parcela expressiva da litigiosidade.
A litigiosidade em massa é fenômeno estrutural. Mauro Cappelletti, ao analisar as ondas renovatórias de acesso à Justiça, afirma de modo incisivo: "A terceira onda do movimento de acesso à Justiça refere-se à necessidade de enfrentar problemas que transcendem os litígios individuais, ou seja, as demandas repetitivas ou padronizadas, que, pela sua própria natureza, desafiam a estrutura tradicional da jurisdição e exigem soluções coletivas e inovadoras" (CAPPELLETTI; GARTH, 1988, p. 91).
Essa constatação dialoga diretamente com a realidade brasileira, onde dados do relatório Justiça em Números 2024, do Conselho Nacional de Justiça, revelam que mais de 70% dos processos de primeiro grau concentram-se em cinco eixos: previdenciário, consumerista, bancário, trabalhista e fiscal.
O setor bancário, sozinho, responde por milhões de ações repetitivas, quase sempre relacionadas a contratos de adesão, tarifas ou crédito consignado. No campo do consumo, a judicialização massiva decorre de serviços de telefonia, planos de saúde e comércio eletrônico. Forma-se, assim, um ciclo perverso: a ausência de soluções estruturais adequadas fomenta a litigiosidade, ao mesmo tempo em que o excesso de demandas sufoca o Judiciário e mina sua função constitucional.
A Constituição Federal de 1988, marco da chamada "era de direitos", assegurou no art. 5º, XXXV, que nenhuma lesão ou ameaça a direito será excluída da apreciação judicial. Todavia, essa garantia não deve ser lida de maneira restritiva. O acesso à Justiça é conceito abrangente, que envolve todos os mecanismos aptos a assegurar tutela efetiva e adequada de direitos, desde que observados os princípios constitucionais. É nesse horizonte que a desjudicialização se legitima como instrumento de concretização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), da eficiência administrativa (art. 37, caput) e da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII). Não se trata de esvaziar o Judiciário, mas de reservá-lo aos casos que demandam sua intervenção, enquanto litígios repetitivos encontram vias mais adequadas de solução.
Os litígios bancários e consumeristas, marcados por forte padronização, evidenciam essa necessidade. Contratos de adesão - regulados pelo CDC - são a base da maioria dessas disputas. Relatório do Banco Central de 2023 confirma que operações de crédito constituem a principal fonte de reclamações no Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. A Febraban, por sua vez, reconhece que a judicialização em massa encarece o crédito e reduz a competitividade do setor financeiro.
A massificação dos contratos gera, assim, massificação da litigiosidade, demandando instrumentos coletivos e estruturais. Sem isso, o Judiciário permanece congestionado, as instituições financeiras vivem insegurança decorrente de decisões divergentes e fragmentadas, e o consumidor perde confiança no sistema protetivo.
Nesse contexto, a desjudicialização deve ser compreendida como política pública estratégica, capaz de racionalizar custos econômicos e processuais. Um exemplo promissor está no uso de plataformas digitais. O consumidor.gov.br, vinculado à Secretaria Nacional do Consumidor, registrou em 2024 índice de resolução superior a 80% e tempo médio de resposta de apenas sete dias - resultados que evidenciam a potência da tecnologia na entrega de soluções céleres, personalizadas e efetivas.
Apesar de alguns avanços, o Brasil ainda carece de política estruturada eintegrada que combine mediação em massa, arbitragem simplificada e plataformas digitais em um ecossistema único. O problema não está na ausência de normas, mas na falta de efetividade prática, de governança e de coordenação entre os múltiplos atores. A autorregulação bancária, embora relevante, permanece insuficiente sem integração com órgãos públicos de defesa e fiscalização. Assim, o país vive a contradição de figurar como referência normativa em justiça multiportas, mas de permanecer prisioneiro de um modelo excessivamente judicializado.
O desafio, portanto, é construir modelo de governança capaz de integrar CNJ, Banco Central, órgãos de defesa do consumidor, associações civis e setor privado em uma engrenagem cooperativa, garantindo que a desjudicialização não signifique perda de garantias, mas sim reforço da efetividade dos direitos.
Ada Pellegrini Grinover advertia, já em 2016, que "a mediação e a arbitragem não podem ser vistas como substitutos do Judiciário, mas como instrumentos complementares, sob pena de enfraquecer o sistema de garantias" (GRINOVER, 2016, p. 47).
Essa preocupação encontra eco em Arenhart e Nunes, para quem "a adoção indiscriminada de mecanismos privados de resolução de conflitos, sem adequada regulação e fiscalização pública, pode resultar em exclusão dos consumidores mais vulneráveis, que não dispõem de condições de negociar em igualdade ou de fiscalizar eventuais abusos" (ARENHART; NUNES, 2021, p. 95).
As advertências citadas reforçam a necessidade de salvaguardas institucionais que assegurem transparência, imparcialidade e fiscalização. Sem tais garantias, a desjudicialização corre o risco de ser apropriada por interesses privados, tornando-se instrumento de desequilíbrio em vez de democratização.
A resposta, portanto, não reside na simples multiplicação de varas e juízes, que apenas amplia a lógica do mesmo sistema que já se mostrou incapaz de absorver a litigiosidade em massa. O verdadeiro desafio é mais profundo: exige o redesenho institucional da resolução de conflitos, em uma perspectiva cooperativa, que envolva o Judiciário, os órgãos de defesa do consumidor, as entidades reguladoras, o setor privado e a própria sociedade civil.
A desjudicialização, entendida como movimento de racionalização, não deve ser confundida com a transferênciada jurisdição para a esfera privada, mas sim concebida como estratégia de reconstrução do próprio ideal de Justiça. O que se propõe não é um esvaziamento do Poder Judiciário, mas uma reorganização de seu papel dentro de um ecossistema de tutela de direitos, em que a jurisdição do Estado se mantém como guardiã última das garantias fundamentais, enquanto meios adequados assumem protagonismo na resolução célere e eficiente das disputas repetitivas.
A superação do tema portanto, não se dará por soluções fragmentadas ou experimentos isolados, mas pela construção de uma política pública robusta, integradora e coerente, que una tecnologia, demandas em larga escala, arbitragem , bem como, instrumentos coletivos de tutela em um mesmo desenho institucional. A democratização do acesso à Justiça é um processo contínuo e inacabado, que exige adaptações permanentes às novas formas de conflito que emergem da vida social.
Portanto, vejo que o Brasil se encontra, assim, diante de uma encruzilhada histórica: ou permanece refém da retórica normativa, reproduzindo o paradoxo de um país que ostenta um dos maiores arcabouços legais sobre meios adequados de resolução de conflitos e, ao mesmo tempo, convive com tribunais sufocados por milhões de demandas repetitivas; ou inaugura, enfim, um novo paradigma, capaz de reconciliar eficiência, celeridade e efetividade com os valores constitucionais de dignidade, igualdade e justiça social e inclusivas, resgatando a legitimidade das instituições de Justiça perante a sociedade.
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CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1988.
GRINOVER, Ada Pellegrini. A mediação e o Poder Judiciário. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; LAGRASTA NETO, Caetano (Coord.). Mediação e gerenciamento do processo: revolução na prestação jurisdicional. São Paulo: Atlas, 2016. p. 43-55.
ARENHART, Sérgio Cruz; NUNES, Dierle. Fundamentos do processo coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números 2024. Brasília: CNJ, 2024. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/pesquisas-judiciarias/justica-em-numeros/. Acesso em: 8 set. 2025.
BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatório de reclamações e demandas do cidadão 2023. Brasília: BCB, 2023. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/. Acesso em: 8 set. 2025.
FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS - FEBRABAN. Relatório de autorregulação bancária. São Paulo: FEBRABAN, 2023. Disponível em: https://www.febraban.org.br/. Acesso em: 8 set. 2025.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/. Acesso em: 8 set. 2025.
BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Brasília: Presidência da República, 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/. Acesso em: 8 set. 2025.


