Tarifaço e revisão contratual sob o signo da imprevisão
A necessidade de estabilidade e segurança jurídica para a atividade empresarial e como o mercado e o Judiciário podem atuar em prol da preservação da empresa.
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
Atualizado em 10 de setembro de 2025 15:01
Contextualização da imprevisão
O investimento, dentro de qualquer atividade empresarial, está ligado à capacidade de precificar riscos com razoável confiança. Sem um patamar mínimo de previsibilidade normativa e decisória, a atividade empresarial troca o cálculo por aposta, o planejamento por sobrevivência de curto prazo. A literatura jurídica empresarial, desde Fábio Ulhoa Coelho, que enxerga o direito como custo empresarial, já captou esse ponto: regras, interpretações e procedimentos compõem variáveis de preço e de viabilidade, especialmente em contratos relacionais de longa duração (bancários, de fornecimento contínuo, infraestrutura), que não conseguem "replicar" por anos as mesmas condições que existiam na origem. Logo, segurança jurídica não é um plus; é insumo de produção.
Quando o ecossistema jurídico oscila e atinge a atividade econômica, o efeito imediato é a elevação do custo de capital, a retração de investimento e a transferência de prêmios de risco ao preço final. O diagnóstico é conhecido no foro: a instabilidade de decisões que empresários tomavam como caminhos de reestruturação criou, por muito tempo, um ambiente de "jogo incerto" pouco compatível com negócios avessos a volatilidades institucionais e o resultado, previsivelmente, foi insegurança jurídica no ambiente de negócios.
É por isso que a estabilização institucional do último ciclo legislativo brasileiro foi tão relevante. A lei 11.101/05 inaugurou a lógica de preservação da empresa como norte da gestão de crises, conferindo ao sistema um vocabulário de continuidade e reequilíbrio que faltava ao modelo falimentar clássico. Em paralelo, o CPC/15 amarrou cooperação e negócios processuais, encurtando o caminho entre litígio e composição, e a lei 13.988/20 (transação tributária) trouxe ao eixo fiscal uma via negocial estável antes inexistente. O denominador comum é claro: substituir conflito aleatório por desenho institucional, reduzindo o custo empresarial especialmente nos momentos agudos da crise.
Do ponto de vista microeconômico contratual, segurança jurídica se traduz em quatro camadas práticas:
Estabilidade normativa e transicional: Mudanças de regra com vacatio razoável e critérios claros de transição reduzem "saltos" de custo e evitam que contratos caiam num buraco regulatório de um dia para o outro.
Previsibilidade interpretativa: Padrões decisórios estáveis permitem precificar perdas. O pior cenário, para a empresa, não é perder um pleito difícil; é não saber se a mesma tese vence ou perde conforme a composição da turma. O histórico de "stand by" diante de viradas de entendimento ilustra bem o custo dessa incerteza.
Instrumentos negociais confiáveis: Quando o ordenamento oferece canais padronizados de recomposição (recuperações, negócios processuais, transações fiscais), o mercado aprende a antecipar soluções e a tratar o conflito como um problema de engenharia, não de azar. Isso rebaixa o prêmio de risco sistêmico e estimula a conservação de valor em cadeias produtivas.
Alocação contratual de riscos: Cláusulas de hardship, change in law e material adverse change funcionam como "estabilizadores automáticos" do contrato. Quando o ecossistema jurídico valida tais ferramentas e limita a revisão judicial a hipóteses excepcionais e comprovadas, a liberdade de contratar e a função social da empresa deixam de rivalizar e passam a jogar no mesmo time (continuidade com accountability). O fio condutor, aqui, é a cultura de negociar antes, litigar depois.
Estabilidade e segurança jurídica não são sinônimos de imobilismo: significam regras claras, transições previsíveis, jurisprudência estável e arranjos negociais confiáveis.
Quando esses quatro pilares estão firmes, o empresário consegue transformar incerteza difusa em risco precificável que é, por definição, investimento viável.
É essa plataforma que legitima, mais adiante, soluções de reequilíbrio em face de choques extraordinários, mantendo o sistema produtivo de pé e preservando valor para credores, trabalhadores, consumidores e para o Estado.
Autoritarismo e imprevisibilidade: O caso do Governo Trump
Governos com traços autoritários tendem a governar por atos unilaterais, súbitos e de baixa previsibilidade.
No plano econômico, isso se traduz em "regras inseguras": mudanças drásticas, com vacatio mínima e justificativas elásticas ("segurança econômica", "reciprocidade", "soberania"). O resultado, para os agentes econômicos, é o encarecimento do prêmio de risco regulatório, retração de investimento e compressão de margens ao longo das cadeias produtivas. Quando a política pública vira montanha-russa, a empresa troca o planejamento por sobrevivência e o PIB sente.
No ciclo Trump, os EUA ofereceram um laboratório desse fenômeno. Em 2018, vieram as tarifas Section 232 (25% para aço; 10% para alumínio) sob o argumento de segurança nacional, seguidas das medidas contra a China (Section 301).
Em 2/4/25, a Casa Branca avançou mais um quadrante: invocando a IEEPA, anunciou tarifa-base de 10% a todas as importações, com escalonamentos "recíprocos" por país a partir de déficits bilaterais - e entrada em vigor em questão de dias. Trata-se de uma alteração horizontal e imediata do baseline de custos para milhares de contratos privados, com assimetria de informação e pouquíssimo tempo de adaptação.
Do ponto de vista econômico, tarifas são imposto sobre importações e, empiricamente, acabam repassadas a preços - direta ou indiretamente - ao consumidor e às indústrias que usam insumos importados. A literatura de referência documenta pass-through elevado das tarifas de 2018, com elevação de preços no ponto de fronteira e no varejo. No médio prazo, a ampliação de tarifas se associa a menor nível de produto: em junho de 2025, o CBO projetou PIB real 0,6% menor em 2035 (vs. cenário base) como efeito das altas de tarifas implementadas entre janeiro e maio de 2025. Receita sobe; eficiência e bem-estar caem, uma vez que aritmética política não substitui aritmética econômica.
No caso do Brasil, esse ponto é ainda mais sensível uma vez que a imposição de tarifas no patamar de 50% se deu alegadamente por motivos ideológicos, fora dos limites da legislação norte-americana e das normas internacionais que regulamentam o comércio entre nações.
O apelo político de medidas populistas e de impacto curto - "proteção imediata", "equilíbrio das contas pelo caixa das tarifas" - vem do efeito-placar: a arrecadação aparece rapidamente, o custo difuso (preços, investimento, produtividade) demora a se materializar. A própria atualização de cenário do CBO em 2025 quantifica o ganho fiscal de tarifas mais altas, mas também explicita os efeitos macro de segunda ordem (inflação de bens transacionáveis, desvio de comércio, menor investimento). Para a empresa real que compra, vende e financia, essa oscilação vira custo de capital mais alto, prazos estourados e covenants sob pressão.
Tratando especificamente do tarifaço de 2025, o elemento mais corrosivo para o ambiente de negócios não é só o valor; é a imprevisibilidade procedimental: circulares operacionais que alteram imediatamente a vida do importador e arruínam as empresas exportadoras, tomadas de assalto por apostas ideológicas que não estavam na conta dos custos mensais.
A teoria da imprevisão e o aumento da tarifa pelo Governo Trump
A questão que aqui se coloca diz respeito à resposta que o Direito brasileiro pode dar diante dos efeitos danosos do tarifaço às empresas exportadoras. Esse problema pode ser analisado sob dois prismas: o primeiro diz respeito aos contratos internacionais já firmados; o segundo, liga-se à questão da permanência da empresa dentro de um cenário competitivo dentro do Brasil. Em ambos os casos, temos por sustentação a possibilidade de aplicar-se a teoria da imprevisão. Todavia, os efeitos em um caso e em outro tornam-se diferentes uma vez que sob o prisma brasileiro, leva-se em consideração o princípio da preservação da empresa como mecanismo argumentativo seja nas negociações extrajudiciais seja pela intervenção do poder judiciário. Enquanto nos contratos internacionais, a solução vai se dar endocontratualmente, (através da aplicação da cláusula de hardship) quando falamos sobre imprevisão e as relações jurídicas da empresa que está suportando o custo da insegurança econômica, estamos ampliando os efeitos da imprevisibilidade para toda a cadeia produtiva de agentes econômicos que se relacionam com quem sofre com a ingerência ideológica e tarifária. Na verdade, todos sofrem. Mas é o exportador que sofre os maiores impactos. É ele que fez os arranjos com as traders, os financiamentos e adiantamentos com as instituições financeiras, a contratação de empregados a partir dos prognósticos que existiam antes da implementação tarifária desproporcional.
Nesse último cenário, o Direito brasileiro oferece repactuações extrajudiciais como é o caso da recuperação extrajudicial, negociações coletivas de trabalho, transações tributárias nos âmbitos federativos onde a empresa é contribuinte. Em todos esses arranjos empresariais, a imprevisão aparece no seu aspecto simbólico-argumentativo, ou seja, como elemento de convencimento dos players econômicos que as relações estabelecidas preteritamente precisam ser revistas e repactuadas.
Como falamos em artigos anteriores, o direito das obrigações, sejam elas civis, sejam elas públicas, têm se encaminhado para um novo paradigma onde as negociações
Imaginemos os produtores de manga do sertão pernambucano que destinavam toda sua produção para os Estados Unidos e acabaram surpreendidos com o aumento de 50% das tarifas cobradas pelo país norte-americano inviabilizando sua operação. No caso, podemos acrescentar os contratos de empréstimo específicos para viabilização comercial da safra, a mobilização de empregados para colheita, os contratos com fornecedores que gravitam em torno do objetivo principal da exportação. Obviamente que o empresário terá um déficit que poderá inviabilizar sua permanência no mercado.
O padrão-ouro de solução para uma eventual inviabilização da empresa é a socialização dos prejuízos pontuais pelo mercado, com o objetivo de cumprir o princípio da preservação empresarial. O argumento da teoria da imprevisão aqui serve como norte argumentativo para novas linhas de crédito, revisão dos contratos de trabalho junto aos sindicatos, transações tributárias específicas para o setor.
Caso o padrão de negociação não seja atingido, a tendência é haver uma judicialização do problema, quando a teoria da imprevisão deixa de ser mero argumento e se torna fundamento para decisão judicial. Nesse aspecto, a recuperação extrajudicial se torna judicial, as ações revisionais dão a tônica dos embates com as instituições financeiras e com os fornecedores, tendo efeitos negativos na continuidade das relações empresariais doravante.
A judicialização dos efeitos do tarifaço, embora prevista como válvula de escape sistêmica, não pode ser confundida com uma naturalização da revisão judicial como etapa ordinária da vida dos contratos. A teoria da imprevisão, tal como construída na doutrina e consagrada na jurisprudência do STJ, é uma ferramenta de exceção, aplicável em hipóteses de alteração superveniente, extraordinária e imprevisível das circunstâncias contratuais, com onerosidade excessiva para uma das partes e vantagem desproporcional para a outra.
O problema que se coloca, entretanto, é que a reiteração de instabilidades institucionais, como as promovidas por governos de viés populista e pouco afeitos à racionalidade procedimental, pode corroer, na prática, os critérios de excepcionalidade. Quando a exceção vira regra, o contrato perde sua função estruturante e a judicialização se torna crônica. Cria-se, assim, um ciclo vicioso: quanto mais instabilidade normativa e procedimental, maior a litigiosidade contratual; e quanto maior a litigiosidade, menor a confiança nos mecanismos privados de precificação e de alocação de riscos.
É nesse ponto que o papel do Poder Judiciário adquire centralidade estratégica. Sua atuação deve evitar tanto a rigidez insensível que ignora o impacto das disrupções tarifárias nos contratos de exportação, quanto o laxismo excessivo que desestimula a diligência prévia das partes. O reequilíbrio contratual não pode ser convertido em anistia de riscos ordinários nem em prêmio à má gestão - mas tampouco pode ignorar que medidas como a imposição unilateral de tarifas de 50% por motivação ideológica transcendem o radar do risco contratual ordinariamente assumido. Trata-se de um típico "choque exógeno disruptivo" não internalizado ex ante na curva de risco.
Conclusões
O tarifaço de 2025 não é apenas um problema para os contratos internacionais firmados por exportadores brasileiros: é um alerta sobre os limites estruturais da arquitetura contratual em tempos de regressão institucional e volatilidade geopolítica. A resposta jurídica, seja via repactuação privada, seja via tutela jurisdicional, precisa combinar flexibilidade com responsabilidade, adaptação com critérios técnicos claros.
A teoria da imprevisão, nesse contexto, não é panaceia, mas instrumento de modulação racional da crise. Seu uso exige diagnóstico preciso, prova robusta e, sobretudo, maturidade institucional dos agentes envolvidos, desde o empresário até o julgador. Quando bem aplicada, ela permite que a lógica de cooperação supere a lógica de colapso. Quando banalizada, porém, transforma o contrato em mera hipótese provisória, dissolvendo a confiança que sustenta o mercado.
A crise tarifária, portanto, impõe ao direito a tarefa de ser não apenas regulador da exceção, mas também guardião da previsibilidade. Pois, como já dizia Ulpiano, "a essência da justiça está em viver honestamente, não prejudicar ninguém, e dar a cada um o que é seu", inclusive o direito de planejar.


