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Muro, mureta e muralha: Instituições urbanísticas

O texto analisa as três barreiras imobiliárias como instituição urbanística.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Atualizado às 13:28

...o direito de propriedade (direito terrível e talvez desnecessário). Cesare Beccaria

Esta será uma tentativa de generalizar, a partir de conceitos precedentes, uma instituição urbanística que, faticamente, varia muito conforme cada município do país - e eles já somam 5.570 entes locais. É o tema das barreiras fixas, perpendiculares ao solo natural, que se levantam no entorno do lote para garantia da privacidade e da segurança do cidadão - que nele mora - e de sua família, e também da incolumidade de seus bens. No prumo, elas recortam o solo do território urbano como decorrência direta do direito de propriedade imobiliária - esse "direito terrível" (disse, de passagem, Beccaria) que exige toda uma maquinaria complexa para protegê-lo que vai da tecnologia da agrimensura até o registro de imóveis, passando pelo georreferenciamento, pelo crime de alteração de limites (art. 161 do CP), etc. Às vezes, os muros apresentam ornamentos, como na Babilônia, e hoje muitas vezes são suportes para publicidade, painéis, grafites. Às vezes as grades, no lugar dos muros, atenuam o impacto negativo na paisagem, embora cumprindo a mesma função.

Para fazer a distinção entre aqueles termos do título - muro, muro alto e muro baixo -, é preciso dizer antes que ao direito subjetivo de murar ou cercar um imóvel vigora o princípio da atipicidade tanto no tocante à disciplina das normas municipais (que regem principalmente o tema) quanto no tocante aos fatos concretos dos muros. Tratando do direito de tapagem, o art. 1.297 do CC dispõe: "o proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo o seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas".

"Cercar", "murar" ou "valar", em resumo, são verbos que designam, tradicionalmente, o ato humano voluntário de criar barreira física instransponível por outrem que não os autorizados pelo titular ou possuidor. É algo que, de acordo com a lei civil, pode ser feito com muro de tijolo, pedra, grade, cerca de madeira, cerca de arame, sebes vivas (árvores ou arbustos ou plantas), valas, tapumes divisórios, etc, de acordo com o costume do lugar ou com a lei local. A forma varia muito mas a função de separar, cortar, dividir não: está sempre presente porque é o núcleo do tema.

Na cidade privatizada, a divisa também poderá ser feita de acordo com o que dispuser o estatuto do loteamento de acesso especial ou condomínios de casa ou de lotes. Em regra, tais empreendimentos urbanísticos distintos, para pouparem espaço e garantirem alguma paisagem verde, determinam que as divisas dos lotes sejam feitas de cercas-vivas, com o plantio de hibiscos ou a murta ou o pingo-de-ouro. De fato, há empreendimentos até que pré-determinam o tipo de arbusto a compor a sebe ou cerca-viva, limitando ainda mais fortemente a autonomia da vontade do proprietário ao cercar seu lote. De outro lado, conjuntos habitacionais de interesse social podem ser entregues sem muro exatamente para baratear o preço do imóvel aos adquirentes dos lotes já ocupados com a edificação.

Portanto, o muro (ou o fosso, como no entorno dos castelos medievais) é o marco físico que define a linha divisória da propriedade imobiliária, seu limite, seus lindes, independente do elemento que seja utilizado para tal finalidade. O muro, num plano vertical, será sempre algo que divide, que corta, que secciona um imóvel e que se coloca, em perpendicular, no plano horizontal. Mas acontece que não temos uma espécie de muro apenas: há várias. Do ponto de vista da engenharia há muro de arrimo, portante, de arrimo com contraforte, de contenção, etc. Enfim, são várias as categorias de muro, mas o que nos interessa, aqui, é apenas definir, do ponto de vista do Direito Urbanístico, aquelas três espécies de muro anunciadas no título.  

A mureta é um muro pequeno assim como a edícula é uma edificação pequena e ambos são complementos de uma edificação principal, atual ou futura. Em matéria urbanística, a mureta - de até um metro de altura (ou cerca de) - é muitas vezes exigida pela lei local para ser erguida no alinhamento do lote quando ainda sem ocupação, ou seja, quando vazio. Isto faz com que fique perfeitamente separado o espaço público do espaço privado e, mais do que isso, obriga o proprietário do lote a dar uma destinação adequada para as águas pluviais, impedindo que sejam lançadas sobre a calçada ou passeio público - e nem se concentrar no interior do lote. A mureta, neste caso, significa o fechamento do lote em face da via pública e é uma obrigação do proprietário sua execução, sem, certamente, a divisão das despesas com o Poder Público (o que, nos termos do art. 1297 - v. acima - valerá apenas para os confinantes interiores do lote).

Preservando a vista interna para efeito de controle público1, o fechamento do lote não ocupado com a mureta é obrigação urbanística do proprietário do solo: é uma obrigação dita ob rem, em função da coisa, que nasce em razão dela, tal como fazer calçada e manter o imóvel limpo. Em São Paulo, a lei 11.442/11 dispõe no art. 2º: "os responsáveis por terrenos não edificados, com frente para vias ou logradouros públicos dotados de pavimentação ou de guias e sarjetas, são obrigados a executar, manter e conservar gradil, muro ou outro tipo adequado de fecho nos respectivos alinhamentos, observadas as regras a serem fixadas por meio de decreto". E, logo em seguida determina que o fechamento poderá ser "metálico, de pedra, de concreto ou de alvenaria revestida, devendo ter altura de 1,20m (um metro e vinte centímetros) em relação ao nível do logradouro e ser provido de portão". E ainda dispõe, no detalhe, que: "o fechamento poderá ter altura superior a 1,20m (um metro e vinte centímetros) desde que, a partir dessa medida, sejam executados com, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de sua superfície uniformemente vazada, de forma a possibilitar a total visão do terreno". A preservação do interior do lote é garantida, mesmo a barreira sendo mais alta, por causa de metade da superfície ser vazada2.

Já o muro ordinário refere-se tanto às divisas internas quanto externas (ou ainda ser muro isolado), marcando, no plano vertical, os limites perfeitos da área sobre a qual incide o domínio. E onde ele termina. Qual altura pode ter o muro divisório? Os muros laterais - e frontal, quando inexistente a mureta - têm, conforme a lei local, dois metros de altura e é um complemento da edificação principal, tal como uma piscina num imóvel residencial unifamiliar. Como diria Eça de Queiroz, indica um "ar habitado", sendo dupla sua função: em primeiro lugar: demarcar o espaço físico do lote, sua área, sua forma, seus limites. Em segundo lugar, vedar ou tapar o lote, impedindo o devassamento3, a visão externa - que se tem a partir da via pública com a qual o lote sempre divisa - garantindo, assim, a privacidade. É fato que o lote pode ser devassado seja por vizinhos, com janelas próximas, seja por plataformas aéreas como drones. Nestes casos, cada situação deve ser analisada de modo separado porque a legislação aplicável é diferente: no caso das janelas e sacadas, o capítulo sobre direito de vizinhança no CC; na questão dos drones, o velho Código Brasileiro de Aeronáutica, de 1986, que tem uma regra específica, no art. 16: "ninguém poderá opor-se, em razão de direito de propriedade na superfície, ao sobrevoo de aeronave, sempre que este se realize de acordo com as normas vigentes". Mas a regra é principiológica, não é absoluta e se houver dano desnecessário à privacidade certamente haverá possibilidade de indenização.

O muro divisório do lote fica, em regra, na divisa dos dois lotes contíguos. Porém isso pode não acontecer. Em não poucos casos, forma-se um contencioso sobre a linha onde, exatamente, passaria a divisa. Então, como solução, há duas possibilidades: ou a propositura de uma ação de demarcação - e um perito irá demarcar essa linha - ou então um dos proprietários confrontantes cede, submete-se ao outro e "diz que vai levantar o muro apenas no seu imóvel". É exatamente por isso que muitas vezes se discute se o muro é "meu" ou não. Ser "meu" significa que não há condomínio do muro com o proprietário lindeiro - como decorre da lei - porque ele foi levantado integralmente dentro da área de um dos confrontantes, que assim perde alguns centímetros da área disponível do lote. Há vantagens em inexistir o condomínio de parede-meia e, talvez, a maior delas será o direito de travejar (ou seja, de assentar traves ou vigas) sobre toda a espessura da parede e não apenas na metade dela, que lhe pertence de acordo com a regra civil.

É que o art. 1.306 da lei civil dispõe que o condômino da parede-meia ("medianería", em espanhol) "pode utilizá-la até ao meio da espessura, não pondo em risco a segurança ou a separação dos dois prédios, e avisando previamente o outro condômino das obras que ali tenciona fazer; não pode sem consentimento do outro, fazer, na parede-meia, armários, ou obras semelhantes, correspondendo a outras, da mesma natureza, já feitas do lado oposto". Sendo o muro totalmente de um dos proprietários lindeiros, não haverá, como é evidente, a vedação da parte final do dispositivo. Os civilistas antigos, como Lobão, falam longamente sobre o direito de travejar porque isso implicava diminuição do custo da obra, sobretudo em áreas ocupadas por população de baixa renda. Atualmente, com a necessidade urbanística dos recuos ou afastamentos do corpo da construção, o tema não tem mais a importância que tinha no passado, quando não havia regras urbanísticas.

A lei local costuma dispensar a necessidade de licença para construir ou reconstruir muro fechamento do lote. Entretanto, se houver desnível acentuado entre os lotes contíguos e for necessária estrutura de contenção, a licença passa a ser absolutamente necessária porque o risco de acidentes aumentará muito, sendo a licença pressuposto da obra. Com efeito, a estabilização e segurança do solo exigirão medidas que ultrapassam em muito a complexidade tão-somente de estrutura de sustentação de um muro de tijolos. Já o revestimento, por certo, ficará por conta de cada um dos proprietários dos lotes lindeiros: a lei civil quando fala em muro fala em estrutura divisória - ou, melhor, alvenaria revestida de reboco - segura e estável, que é repartida entre eles quanto ao custo e quanto à propriedade. Mas um poderá revesti-lo de mármore rosa, por exemplo, cujo custo o outro não está obrigado a dividir. Diferentemente ocorre com a cornija4 ou cimalha, que é o acabamento da parte superior do muro destinado a desviar a água da chuva evitando que escorra, o custo dela também deve ser dividido porque integra a estrutura da obra.

Já a muralha - grande barreira com mais de 2m de altura - serve não só para, objetivamente, dividir como também para, subjetivamente, amedrontar. É um signo de temor, que esmaga o homem e cria passagens mortas ("a rua-corredor" de Le Corbusier). Sendo alto muro uma muralha, além de proteção de pessoas e bens, é mecanismo de defesa, uma barreira inexpugnável, que se destaca na paisagem da cidade, nos loteamentos de acesso controlado, porque remete imediatamente a presídios, onde elas também existem e são múltiplas, concêntricas. Além da Muralha da China com altura média de 7,6m5 ou da fortaleza da Bastilha com 24m (destruída pelo povo em 1789), o exemplo maior - porque mais deplorável -, é o Muro de Berlim ("Berliner Mauer"), com 3,6m de altura que foi levantado em 1961 para que os alemães orientais não fugissem para o lado ocidental da cidade. Foi uma inútil barreira, demolida em 1989. Do ponto de vista urbanístico, a muralha, por óbvio, exigirá sempre licença/ autorização edilícia pelos muitos impactos que causa: na paisagem, no ambiente que deveria ser um continuum, além de ser obra civil de grande porte que exige sólida estrutura e larga espessura. Altura e espessura do muro se relacionam diretamente com os materiais convencionais.

Fica claro que uma obra civil de grande porte como uma muralha só poderia ser levantada, no meio urbano, em havendo interesse público que a justificasse. Entretanto, nas cidades brasileiras, nos loteamentos controlados atuais, costuma-se ver com frequência muralhas de mais de 3,0m para cumprir duas finalidades básicas: a. dar a falsa sensação de segurança aos moradores da área recortada e b. intimidar quem pensar em transpô-la, pela altura que é, além do mais, acompanhada de câmera, concertinas, etc. No entanto, trazem inúmeros malefícios urbanísticos: é a cidade sendo privatizada mediante a "autossegregação" de alguns poucos, que prejudicam os demais na medida em que criam quistos ou bolhas no tecido urbano impedindo o trânsito. As muralhas, que deveriam ser excepcionais, então, tornam-se presentes e integrantes da paisagem urbana de nossas cidades que se tornam, "enclaves edificados", "cidade de muros" (Teresa Caldeira). 

Portanto, em suma, para fazer um quadro geral das diferentes espécies de muros divisórios de lotes aqui tratadas:

Quadro 1 - Critérios de distinção

 

 

Altura

Licença/Autorização

Devassamento do lote

Mureta

0,5m a 1m

Não

Sim

Muro

até 2,0m

Não

Não

Muralha

>2,0m

Sim

Não

_________________

1 Onde pode haver lixo, entulho, edificação clandestina, desenvolvimento de atividades antissociais ou ilícitas como desmanches não licenciados, etc.

2 Pode-se dizer, evidentemente, que, na disciplina paulistana, a altura maior do muro é compensada exatamente pela superfície não poder ser toda fechada.

3 O célebre dicionário de Moraes e Silva explica o termo "devassamento" assim: "'ação de penetrar no que não estava franqueado ao público e de ver o que lá passa" (10ª ed.)..

4 O Código Civil francês, de 1804, quando define a altura do muro - fazendo distinção dos muros divisórios em cidades pequenas e grandes - inclui a cornija ("compris le chaperon", art.. 663).

5 Altura que pode atingir 12m nas torres de vigilância. Esta muralha, construída ao longo de muitos séculos, é tão portentosa que poderia ser vista do espaço exterior considerando seus mais de 20 mil quilômetros de extensão.

José Roberto Fernandes Castilho

VIP José Roberto Fernandes Castilho

Professor de Direito Urbanístico e de Direito da Arquitetura da FCT/Unesp.

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