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O papel da propriedade intelectual na revolução da impressão 3D na saúde e suas aplicações no SUS

Gabriela Neves Salerno, Renata Angeli, Kristina Bouskela-Svensjö, Janine Boniatti e Júlio Cesar Castelo Branco Reis Moreira

A manufatura aditiva transforma diagnósticos e terapias na saúde, mas exige repensar a proteção jurídica e os modelos de inovação no setor público.

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Atualizado às 07:42

Introdução

Nos últimos anos, a impressão 3D tem transformado profundamente o campo da saúde. Sua capacidade de produzir itens personalizados sob demanda - como biomodelos anatômicos, órteses, próteses e medicamentos - tem impactado fortemente desde o planejamento cirúrgico até a administração terapêutica personalizada. A primeira máquina 3D surgiu em 1984, quando Charles W. Hull depositou um pedido de patente para a produção de objetos tridimensionais a partir do processo de este reolitografia, que consiste em umas das técnicas deste sistema de impressão. A tecnologia deriva da evolução da impressora jato de tinta com a inovação do uso de bases digitais para a fabricação de objetos, que podem ser confeccionados a partir de plásticos, resinas, titânio, polímeros, ouro, prata, cimento e, até mesmo, alimentos (Palma e Kappler, 2015).

Carreira et al. (2022) fazem uma revisão da utilização e aplicação da impressão 3D na saúde. Dentre as várias possibilidades apresentadas no documento, se destaca a criação de peças e órgãos que potencializam a recuperação e cura do paciente como, por exemplo, a impressão de órteses de punho. Na cirurgia plástica, a manufatura aditiva auxilia no planejamento cirúrgico. A impressão de modelos tridimensionais permite melhor compreensão da estrutura patológica e, consequentemente, maior precisão nos diagnósticos, além de possibilitar melhor conhecimento anatômico do paciente antes da realização de 108 possíveis procedimentos operatórios necessários. O SUS, como maior sistema público de saúde do mundo, é terreno fértil para a adoção dessas tecnologias que podem melhorar a qualidade dos atendimentos, aumentar a eficiência do sistema e democratizar o acesso à saúde de precisão.

Contudo, o avanço da manufatura aditiva também impõe novos desafios. A propriedade intelectual, tradicionalmente es truturada em modelos industriais e centralizados, precisa ser repensada para acomodar fluxos descentralizados, digitais e colaborativos. Como proteger adequadamente uma prótese personalizada? Quem detém os direitos de um modelo digital de senvolvido por meio de software livre? Essas questões foram de batidas durante a mesa-redonda intitulada como este artigo, que teve a participação do presidente do INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial, pesquisadora da Fiocruz - Fundação Oswaldo Cruz e da ABPI - Associação Brasileira da Propriedade Industrial, moderada pela prof.ª Renata Angeli - representan te da área acadêmica especializada em Propriedade Intelectual aplicada às ciências biotecnológicas e biomédicas, que também atua como Coordenadora Adjunta da InovaHUPE da UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A discussão resultou nesse artigo com o foco na revisão bibliográfica e exemplos de experiências no SUS. O foco principal será o uso da impressão 3D em saúde pública e os impactos jurídicos e operacionais asso ciados à propriedade intelectual, especialmente no que se refere a dispositivos médicos e medicamentos.

Este capítulo introdutório visa contextualizar a aplicação da manufatura aditiva no setor de saúde pública, ressaltando os desafios e oportunidades específicos em relação a dispositivos médicos e medicamentos. São apresentados os fundamentos regulatórios, tecnológicos e de propriedade intelectual que permeiam o tema, além de destacar a importância de uma abordagem colaborativa entre órgãos reguladores, instituições científicas e sociedade civil para garantir a inovação sustentável e inclusiva na área da saúde.

Referencial teórico e técnico

A manufatura aditiva, nome técnico da impressão 3D, permite a fabricação de objetos a partir de modelos digitais tridimensionais, camada por camada. Desde a década de 1980, quando surgiram as primeiras patentes dessa tecnologia (Gibson et al., 2015), ela vem evoluindo e se disseminando. A área da saúde tem sido uma das mais impactadas, com aplicações que vão desde o uso de biomodelos em neurocirurgias até a bioimpressão de tecidos vivos (Murphy e Atala, 2014). A literatura nacional e internacional mostra que a impressão 3D oferece ganhos significativos em termos de custo-efetividade, precisão cirúrgica e experiência do paciente (Carreira et al., 2022).

Uma área emergente na literatura diz respeito à impressão 3D de medicamentos. Pesquisas demonstram que é possível fabricar comprimidos com liberação controlada, adaptados ao perfil metabólico de cada paciente, e até estruturas multicama das com diferentes princípios ativos (Mirsky et al., 2024). Essa personalização representa uma verdadeira ruptura com os pa radigmas da indústria farmacêutica e acrescenta novos desafios aos modelos de PI.

No campo jurídico, os desafios são igualmente complexos. A legislação brasileira prevê diferentes mecanismos de prote ção à PI, como patentes (lei 9.279/96), direitos autorais (lei 9.610/1998) e proteção a desenhos industriais. A proteção adequada de PI incentiva a inovação, permitindo que empresas e indivíduos recuperem os investimentos feitos em pesquisa e desenvolvimento. Isso estimula um ambiente competitivo saudável, onde novas ideias e tecnologias podem florescer (Gibson et al., 2015).

Entretanto, a natureza acessível da impressão 3D apresenta desafios para o sistema de PI como a facilidade de reprodução, a cópia não autorizada de modelos digitais e, também, a identifica ção e a fiscalização desses processos, uma vez que controlar infrações de PI é uma tarefa muito mais complexa. A legislação atual, de 1998, mostra-se limitada e, por vezes, insuficiente para lidar 110 com as novas dinâmicas de produção, como destacam Bechtold (2015), Mendis (2019) e Balasubramanian e Siddique (2018).

A propriedade intelectual desempenha um papel fundamental no ecossistema de inovação. Documentos de patentes têm sido amplamente reconhecidos como indicadores relevantes de atividade inventiva e de fluxos de tecnologia, pois funcionam como incentivo a uma contínua renovação tecnológica. As patentes são uma fonte de informação única por conter informações públicas e detalhadas sobre invenções, que podem ser com paradas a outros indicadores e prover insights sobre a evolução da tecnologia (WIPO, 2006).

As patentes são elementos estratégicos no avanço da impressão 3D, permitindo a proteção das invenções, incentivando e fomentando investimentos em P&D - pesquisa e o desenvolvimento, além de estabelecerem uma base sólida para a comercialização de novas tecnologias, como a transferência de tecnologias. O sistema de Propriedade Intelectual garante que inventores tenham direitos exclusivos sobre suas inovações por um perío do determinado, geralmente 20 anos. Isso é vital para proteger o desenvolvimento de novas técnicas de impressão, materiais avançados e melhorias em hardware (Zuniga e Cardewell, 2016).

Dentre os desafios que podem ser listados, estão a complexidade e custo do processo de obtenção de patentes que, muitas vezes, pode ser complexo e caro, especialmente para pequenas empresas e startups. Desde a preparação da documentação até a defesa das patentes contra infrações, os custos podem ser substanciais (Balasubramanian e Siddique, 2018).  

O sistema de PI foi criado oficialmente em 1623, pelo Estatuto dos Monopólios Britânico, para promover e encorajar a produção, concedendo direitos de exclusividade para a fabricação e a comercialização de determinado produto ou processo original em cada região. Com isso, pretendia-se incentivar a transferência e comercialização de tecnologia (Moura, 2022). 

A partir da Revolução Industrial, com o avanço da tecnologia e a transformação dos recursos naturais em bens de consumo, torna-se necessária a agregação de valor aos bens criados pelo intelecto humano, como uma forma de estímulo ao seu criador intelectual. Vários tratados internacionais foram firmados para reconhecer e valorizar a propriedade intelectual.

A proteção à PI no Brasil teve início com a transferência da Corte Portuguesa para o país. Em 1809, o Alvará do Príncipe Regente reconheceu que os inventores, os introdutores de alguma nova máquina e os criadores artísticos gozassem do privilégio exclusivo, além do direito pecuniário de suas obras. Outras le- gislações foram criadas ao longo dos anos e, atualmente, a pro- teção a PI é garantida pelo Art. 5° da Constituição Federal de 1988. Além da Carta Magna, outros atos regulatórios e acordos internacionais regem os direitos de proteção às atividades do intelecto, como a Convenção da União de Paris (decreto 635, de 21/8/1992), o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS - decreto 1.355, de 30/12/1994), a lei da propriedade industrial (lei 9.279, de 14/5/1996), a lei de proteção de cultivares (lei 9.456, de 25/4/1997), a lei de direitos autorais (lei 9.610, de 19/2/1998), a lei de proteção a programas de computador (lei 9.609, de 19/2/1998), entre outros (Scholze e Chamas, 2000). Os principais instrumentos de proteção da PI que podem ser aplicáveis à impressão 3D incluem:

  • Patentes

Protegem invenções novas e úteis, incluindo dispositivos, processos e designs. No campo da impressão 3D, podem ser usadas para proteção, tanto da tecnologia de impressão quanto dos produtos resultantes.

  • Marcas registradas

Protegem símbolos, nomes e slogans usados para identificar produtos ou serviços, sendo aplicadas inclusive para propriedades tridimensionais como as garrafas do refrigerante Coca-Cola® e a embalagem do chocolate Toblerone®. Na impressão 3D, marcas registradas podem proteger a identidade de produtos e garantir a autenticidade.

  • Desenho industrial

Protege o aspecto ornamental ou estético de um produto. Na impressão 3D, o design dos objetos pode ser registrado como desenho industrial, garantindo a proteção contra cópias não autorizadas.

  • Direitos autorais

Protegem obras criativas originais, como softwares e os modelos digitais desenvolvidos para realização da impressão tridimensional. Uma vez obtido, impedirá a cópia e distribuição não autorizadas desses materiais.

Desde 2001, foram registradas mais de 50.000 famílias de patentes internacionais para tecnologias de impressão 3D em todo o mundo (EPO, 2023). Um estudo elaborado no âmbito do Programa Ibero-Americano de Propriedade Industrial e Promoção do Desenvolvimento (IBEPI) mostra que a Espanha é o país com maior número de patentes sobre impressão 3D publicados entre 2014 e 2018 (296 documentos, 72,37% do total). Na segunda posição, aparece o México, com 51 documentos desta tecnologia depositados (12,47%), enquanto o Brasil vem em seguida, no terceiro lugar, com 38 documentos de patente depositados (9,29%) (IBEPI, 2021). Logo, os países nas três primeiras posições do ranking totalizam mais de 94% dos documentos de patente re- lativos à Impressão 3D. A figura 1 mostra as possíveis aplicações da tecnologia no SUS.

Tabela

O conteúdo gerado por IA pode estar incorreto.Conclusão

A disseminação da impressão 3D no SUS representa uma oportunidade singular de democratizar o acesso à saúde de alta complexidade. Contudo, essa expansão deve ser acompanhada por um modelo de governança que respeite a PI sem impedir o acesso. A impressão sob demanda de medicamentos requer uma revisão ou, no mínimo, uma discussão aprofundada da legislação, principalmente, sobre farmácias de manipulação. É preciso definir e estabelecer os critérios de obtenção das formas farmacêuticas, áreas, avaliações quanto aos equipamentos utilizados, bioequivalência, controle sanitário e atribuição de responsabilidade civil, com a participação ativa de agências reguladoras como a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, de modo a garantir a segurança, eficácia e conformidade legal nas aplicações da impressão 3D em saúde.

As licenças abertas, consórcios de patentes e bancos públicos de modelos digitais podem ser caminhos promissores. A experiência do repositório de modelos 3D dos Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH - National Institutes of Health) e as recomendações da OMS - Organização Mundial de Saúde (2020) sobre impressão local de dispositivos devem inspirar a formulação de políticas públicas no Brasil.

A impressão 3D está revolucionando a saúde, e sua incorporação ao SUS pode ampliar o acesso, personalizar tratamentos e reduzir custos. Para isso, é fundamental desenvolver políticas integradas de inovação e propriedade intelectual. O direito à saúde e o direito à proteção das criações humanas não devem ser excludentes. Recomenda-se a criação de uma agenda nacio- nal para tecnologias de manufatura aditiva em saúde pública, com participação do INPI, ANVISA, instituições científicas e sociedade civil. Somente com diálogo e regulação adaptativa, será possível garantir que a revolução 3D seja, de fato, inclusiva e sustentável. Além disso, propõe-se a formação de um consórcio de patentes entre SUS, universidades e centros de pesquisa, além do desenvolvimento de políticas públicas de acesso aberto, fomentando a produção nacional e estadual de dispositivos médicos personalizados.

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Referências

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BECHTOLD, S. 3D printing and the intellectual property system.

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Gabriela Neves Salerno

Gabriela Neves Salerno

Sócia do escritório Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Mello e lidera a área técnica do departamento de patentes.

Renata Angeli

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Kristina Bouskela-Svensjö

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Janine Boniatti

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