A inexigência de CTC e DTC: Quando o INSS erra na exigência
Análise crítica dos erros do INSS ao exigir CTC/DTC de trabalhadores vinculados ao RGPS.
terça-feira, 16 de setembro de 2025
Atualizado às 13:21
No complexo universo do direito previdenciário brasileiro, a busca pela aposentadoria é, para muitos, uma verdadeira jornada de superação. Entre os inúmeros documentos e exigências, a CTC - Certidão de Tempo de Contribuição e a mais recente DTC - Declaração de Tempo de Contribuição surgem como peças-chave, mas também como fontes de uma burocracia que, por vezes, se mostra desnecessária e prejudicial ao segurado. A questão central, que aflige um número surpreendente de trabalhadores, reside na exigência indiscriminada desses documentos pelo INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, mesmo em situações onde o vínculo de trabalho, ainda que com um ente público, sempre esteve sob a égide do RGPS - Regime Geral de Previdência Social.
É fundamental compreender a natureza desses documentos para entender o cerne do problema. A CTC e a DTC são, em essência, instrumentos de comunicação entre diferentes sistemas de previdência. Elas funcionam como uma ponte, permitindo que o tempo de contribuição vertido a um RPPS - Regime Próprio de Previdência Social - aquele dos servidores públicos concursados de municípios, estados ou da União que possuem sistema próprio - seja transportado e averbado no RGPS, e vice-versa. Sua existência é crucial para garantir o direito à contagem recíproca, um mecanismo que impede que o trabalhador seja penalizado por transitar entre o serviço público estatutário e a iniciativa privada. A exigência é, portanto, lógica e indispensável quando um servidor estatutário, que contribuiu para um RPPS, deseja levar esse tempo para se aposentar pelo INSS.
Contudo, o que se observa na prática administrativa do INSS é uma aplicação equivocada e excessiva dessa regra, gerando um labirinto burocrático para segurados cujos vínculos com a administração pública nunca pertenceram a um Regime Próprio. Um dos casos mais recorrentes é o dos trabalhadores contratados em caráter temporário. Embora prestem serviço a um órgão municipal, estadual ou federal, a regra geral é que esses profissionais sejam vinculados diretamente ao RGPS. Suas contribuições mensais são destinadas ao INSS, e seus dados devem constar no CNIS - Cadastro Nacional de Informações Sociais. Exigir que esse trabalhador apresente uma CTC ou DTC de um órgão que, para aquele vínculo, não operava sob um RPPS, é um contrassenso. O tempo de serviço já pertence ao sistema do INSS; basta que seja comprovado pelo contrato e pelos registros existentes, sem a necessidade de uma certidão que, na prática, não tem o que certificar.
De forma análoga, encontramos os servidores públicos contratados sob o regime da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho. Com a carteira de trabalho assinada por um ente público, esses trabalhadores são, por definição, segurados obrigatórios do RGPS. Suas contribuições seguiram o mesmo fluxo de qualquer trabalhador da iniciativa privada, sendo recolhidas diretamente para o INSS. A comprovação desse tempo se dá pela própria CTPS, pelos contracheques e outros documentos do vínculo empregatício, que gozam de presunção de veracidade. Não há, nesses casos, um regime de origem do qual se deva 'exportar' o tempo de contribuição, tornando a exigência de uma CTC um obstáculo infundado.
Talvez o caso mais emblemático dessa falha administrativa seja o dos servidores concursados de municípios que, por sua pequena estrutura ou por opção legal, jamais instituíram um Regime Próprio de Previdência. Nesses cenários, todos os seus servidores, incluindo os efetivos, são obrigatoriamente filiados ao RGPS. O município atua como um empregador comum, recolhendo as contribuições de seus funcionários para o INSS. Como poderia tal município emitir uma CTC, um documento que certifica tempo de um RPPS que ele nunca teve? A exigência, aqui, beira o absurdo e impõe ao segurado uma busca por um documento juridicamente impossível, atrasando ou até mesmo inviabilizando a concessão de seu benefício.
As consequências dessa exigência indevida são profundamente danosas para o cidadão. A mais imediata é o atraso na análise e concessão da aposentadoria. O segurado se vê obrigado a peregrinar por repartições públicas em busca de um documento que não existe, perdendo tempo precioso e, muitas vezes, enfrentando a desinformação dos próprios órgãos empregadores. Em muitos casos, a não apresentação do documento leva à negativa sumária do benefício, forçando o trabalhador a ingressar com recursos administrativos ou, em última instância, a judicializar sua pretensão, sobrecarregando ainda mais o sistema judiciário com uma questão que poderia ser resolvida na esfera administrativa.
Importante ressaltar que o erro não advém apenas de servidores do INSS do quadro administrativo, mas da própria Procuradoria do INSS nos autos de ações judiciais que fazem tais exigências e contribuem para uma alta litigiosidade não apenas no primeiro quanto no segundo grau.
A jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais é consolidada no sentido de reconhecer a desnecessidade de CTC/DTC em diversas situações. O TRF da 1ª região, em decisão paradigmática, estabeleceu que 'o registro constante na CTPS goza da presunção de veracidade juris tantum' e que 'mesmo que inicialmente as contribuições previdenciárias tenham sido feitas ao IPSEMG, é forçoso concluir que o período em questão deve ser reconhecido como tempo de contribuição e efetivo labor da parte autora, independentemente da apresentação de CTC' (TRF-1 - AC: 00226948420164019199, Relator.: JUIZ FEDERAL RODRIGO RIGAMONTE FONSECA, Data de Julgamento: 29/7/2019, 1ª CÂMARA REGIONAL PREVIDENCIÁRIA DE MINAS GERAIS, Data de Publicação: 14/10/2019) . O fundamento é claro: quando há comprovação do recolhimento das contribuições previdenciárias ao INSS, mesmo que extemporaneamente, e reconhecimento do efetivo tempo de serviço pelo município-empregador, a exigência de CTC torna-se descabida.
O TRF da 3ª região foi ainda mais direto ao afirmar que 'tratando-se de vínculo celetista sujeito ao Regime Geral da Previdência Social, com recolhimentos, portanto, diretamente ao INSS, não há falar na necessidade de emissão de CTC' (TRF-3 - RecInoCiv: 00030727520204036304, Relator.: Juiz Federal TAIS VARGAS FERRACINI DE CAMPOS GURGEL, Data de Julgamento: 21/8/2023, 14ª turma Recursal da Seção Judiciária de São Paulo, Data de Publicação: DJEN DATA: 29/8/2023). Esta posição jurisprudencial reconhece a obviedade de que vínculos já submetidos ao RGPS não necessitam de certificação de tempo por parte de um regime próprio que nunca os abrangeu.
O TRF da 4ª região contribuiu com importante distinção ao estabelecer que é 'desnecessária a emissão de CTC para o período em que há informação do órgão empregador no sentido de que a vinculação e os recolhimentos previdenciários passaram a ser destinados ao RGPS' (TRF-4 - AC: 50100473720214049999 RS, Relator.: MARINA VASQUES DUARTE, Data de Julgamento: 11/6/2025, 11ª turma, Data de Publicação: 11/6/2025). Esta orientação é fundamental para casos em que houve mudança de regime durante o vínculo, esclarecendo que apenas os períodos efetivamente vinculados a RPPS demandam certificação.
Por fim, o TRF da 5ª região firmou entendimento específico sobre trabalhadores avulsos, determinando que 'como trabalhador avulso, não sendo necessária apresentação de Certidão de Tempo de Contribuição para fins de concessão de aposentadoria no RGPS' (TRF-5 - Ap: 08152943220204058100, Relator.: DESEMBARGADOR FEDERAL IVAN LIRA DE CARVALHO (CONVOCADO), Data de Julgamento: 07/10/2021, 3ª TURMA). Esta decisão reconhece que trabalhadores avulsos, mesmo quando prestam serviços a órgãos públicos, mantêm sua vinculação natural ao Regime Geral, tornando descabida qualquer exigência de certificação por parte de regime próprio.
Diante desse cenário jurisprudencial consolidado, a atuação do advogado previdenciarista torna-se crucial. É preciso, desde o requerimento administrativo, antecipar-se ao erro do INSS. A petição inicial deve detalhar a natureza do vínculo de trabalho, explicando didaticamente por que ele pertence ao RGPS e, consequentemente, por que a CTC ou DTC não são aplicáveis. Caso o INSS insista na necessidade de informações adicionais, cabe ao próprio instituto, conforme a lei do processo administrativo (Art. 29 e §2º da lei 9.784/99) e a IN 128/22 (Art. 573), oficiar o ente público para obtê-las, em vez de transferir esse ônus ao cidadão.
Em suma, a exigência indiscriminada de CTC e DTC revela uma falha sistêmica que precisa ser corrigida. É imperativo que os servidores do INSS sejam capacitados para diferenciar as naturezas dos vínculos com a administração pública, compreendendo que nem todo trabalho para o Estado significa contribuição para um Regime Próprio. A aplicação correta da lei não apenas garante a celeridade e a justiça na concessão dos benefícios, mas também reafirma o respeito ao direito do segurado, que, após uma vida inteira de contribuições, espera do Estado eficiência e razoabilidade, e não um labirinto de exigências descabidas.


