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A anistia de obras irregulares

A anistia de obras irregulares é uma prática comum nos municípios, mas que viola a ordem constitucional, além de não estar prevista em legislação Federal.

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Atualizado às 14:04

A anistia de obras irregulares ou de edificações irregulares afronta os arts. 30, VIII, 182 e 225 da CF/88, pois esvazia a política urbana municipal, incentiva o descumprimento das normas urbanísticas e viola a função social da propriedade e o meio ambiente equilibrado. Ademais, a competência para legislar sobre normas gerais de Direito Urbanístico é da União, que não previu na lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) a anistia de obras como um dos instrumentos da política urbana.

Capítulo I - Considerações iniciais

O fenômeno da anistia de obras consiste na edição de leis municipais destinadas a conceder perdão generalizado a edificações erguidas em desconformidade com a legislação urbanística, permitindo a sua regularização sem a observância integral das normas técnicas de planejamento e uso do solo.

Tal prática, embora recorrente em muitos municípios brasileiros, suscita fortes críticas no plano jurídico e urbanístico, uma vez que pode se configurar como verdadeiro desvirtuamento do planejamento municipal e violação ao princípio da legalidade urbanística, comprometendo a função social da cidade e da propriedade.

A palavra anistia carrega em sua essência a ideia de perdão e esquecimento oficial. No campo jurídico, o termo é empregado para designar o ato estatal que extingue a punibilidade de determinadas infrações, afastando suas consequências legais e permitindo que fatos antes considerados ilícitos deixem de produzir efeitos. Trata-se, portanto, de uma medida de caráter coletivo, distinta do indulto, que se dirige a situações específicas ou a indivíduos determinados.

Do ponto de vista etimológico, o vocábulo tem origem no grego antigo amnestía, que significa literalmente "esquecimento". O termo traduz a ideia de apagar da memória determinados atos. Tal raiz chegou ao latim como amnestia, passou ao francês amnistie e, posteriormente, incorporou-se ao português como "anistia".

Assim, tanto em sua acepção histórica quanto em sua aplicação contemporânea, a palavra mantém viva a noção de que, em determinadas circunstâncias, o Poder Público pode optar por lançar o manto do esquecimento sobre condutas passadas, promovendo um recomeço jurídico e político.

Capítulo II - O marco constitucional do planejamento urbano

A CF/88 estabelece um sistema normativo rígido para o desenvolvimento urbano. O art. 182 da CF, regulamentado pelo Estatuto da Cidade, impõe ao município o dever de elaborar o Plano Diretor como instrumento básico de desenvolvimento e expansão urbana.

O Plano Diretor não se reduz a um documento técnico, mas constitui um ato normativo vinculante, com hierarquia superior às leis ordinárias municipais que tratem de urbanismo. Portanto, qualquer medida legislativa que flexibilize indiscriminadamente parâmetros urbanísticos (como recuos, coeficientes de aproveitamento, gabaritos de altura, áreas verdes e permeabilidade) colide frontalmente com a ordem constitucional.

Assim, quando o município edita uma lei de anistia de obras, cria-se uma situação paradoxal: a mesma Administração que, por meio do Plano Diretor, estabeleceu normas urbanísticas obrigatórias, passa, por outro diploma, a perdoar a violação daquilo que foi planejado, esvaziando a sua eficácia normativa.

Capítulo III - A inconstitucionalidade da anistia ampla de obras

A anistia ampla e irrestrita de obras é, em regra, inconstitucional, por violar diversos princípios:

  1. Princípio da legalidade urbanística, pois o Poder Público só pode autorizar construções conforme as normas previamente estabelecidas no Plano Diretor e legislação correlata;
  2. Princípio da igualdade, pois a anistia cria privilégios injustificáveis aos que descumpriram a lei em detrimento dos que se submeteram às regras urbanísticas;
  3. Princípio da moralidade administrativa, porque a Administração não pode contradizer seus próprios atos normativos;
  4. Princípio da função social da cidade e da propriedade, já que anistiar indiscriminadamente compromete o ordenamento do espaço urbano, a infraestrutura e a qualidade de vida da coletividade, violando o art. 2º, I, do Estatuto da Cidade.

O município que concede anistia de obras irregulares, sob o fundamento de exercer a competência constitucional privativa de ordenamento territorial, planejamento e controle do uso, ocupação e parcelamento do solo urbano, na verdade desvirtua os próprios valores que a CF lhe impõe resguardar.

Com efeito, a CF/88, em seu art. 30, VIII, e especialmente no art. 182, exige que exista uma política urbana municipal alicerçada em normas urbanísticas claras, estáveis e dotadas de eficácia, destinadas a assegurar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes. Assim, se o município extrapola dessa competência para simplesmente perdoar ou anistiar a legislação urbanística, pratica um verdadeiro contrassenso: o administrador desautoriza a si mesmo, enfraquecendo o ordenamento urbanístico e minando a autoridade normativa.

Ademais, a anistia de obras não encontra previsão no Estatuto da Cidade, tampouco em qualquer legislação Federal urbanística. Ressalte-se que a competência para legislar sobre normas gerais de direito urbanístico é da União (art. 24, I, CF), de modo que cabe aos municípios editar normas complementares e executivas, mas não esvaziar por completo a eficácia das normas urbanísticas já postas.

Não tem sentido, por exemplo, o município estabelecer em seu Plano Diretor ou Código de Obras que a taxa máxima de ocupação de um lote seja de 50% e, passados alguns anos, anistiar todos aqueles que ocuparam integralmente o lote, em afronta direta às regras anteriormente fixadas.

As sucessivas leis de anistia - frequentemente editadas sob o pretexto de regularização ou arrecadação - incentivam o descumprimento da lei, promovem a desordem urbanística e conduzem ao caos urbano, em total violação aos princípios constitucionais da função social da propriedade, da legalidade urbanística e do meio ambiente ecologicamente equilibrado, conforme o art. 225, caput, da CF/88.

O TJ/SP tem um julgado relevante sobre o tema. Vejamos:

Ação Direta de Inconstitucional idade - Lei n° 2.842/04, do Município de Campos do Jordão, que dispôs sobre anistia de obras e edificações, estabeleceu taxas e outras disposições - Anistia geral de obras e edificações, concluídas ou em andamento, embargadas administrativamente ou indeferidas, à revelia das diretrizes do Plano Diretor - (...) "Além do mais, a forma como se apresenta a redação da Lei é completamente dissociada de qualquer padrão mínimo de cuidado com o bem estar e segurança da população, pois uma anistia pura e simples, limitada, tão somente, por alguns poucos requisitos, não garante a manutenção da característica natural do Município, em especial por estar Campos do Jordão inserido em Área de Proteção Ambiental - APA, com grande parte do seu território qualificado como Área de Preservação Permanente - APP". (...) Violação dos artigos 111, 144, 180, II e V, 181, 191 e 196 da Constituição do Estado de São Paulo - Ação procedente. (TJSP; Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei 9025767-14.2005.8.26.0000; Relator (a): Laerte Nordi; Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Cível - São Paulo; Data do Julgamento: N/A; Data de Registro: 30/03/2006)

A anistia de obras irregulares pode assumir duas formas distintas: uma ampla e irrestrita, de caráter inconstitucional, e outra específica, fundada em critérios objetivos e juridicamente admissível.

Na primeira hipótese, o município, por meio de lei, decide considerar regulares todas as construções realizadas até determinada data, sem qualquer análise das condições urbanísticas ou ambientais. Assim, mesmo edificações em áreas de risco, sobre faixas de preservação permanente ou que desrespeitem totalmente os índices urbanísticos de recuo, altura e taxa de ocupação seriam automaticamente perdoadas. Trata-se de verdadeira afronta à CF/88, pois esvazia a política urbana municipal, viola a competência da União para legislar sobre normas gerais de Direito Urbanístico e compromete a proteção ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Por outro lado, a anistia pode ser concebida de forma específica e criteriosa, voltada à regularização de situações excepcionais. Exemplo disso seria a lei municipal que permita a regularização apenas de construções residenciais de pequeno porte, localizadas em áreas urbanas consolidadas, desde que respeitados parâmetros mínimos de segurança, salubridade, ventilação e iluminação, e desde que não estejam inseridas em áreas de preservação ou de risco. Nesse modelo, exige-se ainda a comprovação da titularidade ou posse legítima e o recolhimento das taxas correspondentes, garantindo-se que a medida não seja um perdão indiscriminado, mas sim uma regularização controlada, voltada à efetivação da função social da propriedade.

Dessa forma, percebe-se que enquanto a anistia genérica desautoriza a própria ordem urbanística e fomenta a desordem, a anistia específica, com critérios objetivos, pode ser admitida como instrumento de ajuste legal que respeita o interesse público e a CF.

Capítulo IV - O desvirtuamento do planejamento municipal

Ao conceder anistia ampla de obras, o município incorre em autonegação do seu planejamento. O Plano Diretor, concebido para orientar o crescimento urbano de forma sustentável, perde sua efetividade.

Se o zoneamento estabelece recuos, limites de gabarito e coeficientes de aproveitamento visando à segurança, salubridade, mobilidade e equilíbrio ambiental, a concessão de anistia legislativa que perdoa violações desses parâmetros significa, em última análise, a renúncia às diretrizes do próprio plano.

Em termos práticos, isso pode gerar sobrecarga em redes de água, esgoto e energia, comprometimento da ventilação e insolação urbanas, redução das áreas verdes e da permeabilidade do solo e aumento da densidade demográfica sem infraestrutura correspondente.

A anistia indiscriminada não apenas fere a ordem jurídica, mas também compromete a eficiência da gestão urbana.

O Estatuto da Cidade previu no art. 2º, I, dentre as diretrizes da política urbana a garantia de cidades sustentáveis, isto é, concebidas dentro do planejamento de desenvolvimento e expansão da infraestrutura e dos serviços sociais:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;

É competência constitucional privativa dos municípios o ordenamento territorial urbano. A outorga de sucessivas anistias de obras irregulares produz um efeito diverso do comando constitucional. A anistia é o "antiplanejamento". É a negação ao dever constitucional de importar regras para o uso e ocupação do solo urbano. O Estatuto da Cidade previu no art. 2º, VI, dentre as diretrizes da política urbana a obrigatoriedade de ordenamento territorial do solo urbano:

Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:

VI - ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:

a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;

b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;

c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana;

d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estrutura correspondente;

e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização;

f) a deterioração das áreas urbanizadas;

g) a poluição e a degradação ambiental;

h) a exposição da população a riscos de desastres.

O ordenamento territorial previsto no Estatuto da Cidade é essencial para garantir que as cidades cresçam de forma organizada, segura e sustentável. Ao disciplinar o uso do solo, os municípios asseguram que a infraestrutura urbana seja respeitada, prevenindo riscos, degradação ambiental e prejuízos à coletividade. As sucessivas anistias de obras irregulares comprometem a efetividade das normas urbanísticas, pois incentivam o descumprimento da lei, desautorizam a própria Administração e geram desordem no espaço urbano. Em vez de planejar, o município passa a corrigir de forma precária o que já foi feito de maneira ilegal, minando a função social da propriedade e a credibilidade da política urbana.

Capítulo V - Exceções admitidas

Apesar da regra da inconstitucionalidade, é possível reconhecermos exceções pontuais, em que a anistia de obras pode ser admitida de forma restritiva e fundamentada:

  1. Anistia casuística e limitada, sendo possível que a lei municipal autorize a regularização de situações não essenciais ou de menor impacto urbanístico, como: a) divergências pequenas de metragem (ex.: varanda, garagem, área de serviço); b) construções realizadas antes de determinada norma urbanística, impossíveis de atendê-la retroativamente; c) ajustes que não comprometam a segurança estrutural, a salubridade ou a acessibilidade;
  2. Compatibilidade com o Plano Diretor, pois a anistia de obras irregulares pode ser adotada como um procedimento que permite regularizar edificações construídas sem o devido alvará ou que não seguiram as leis de zoneamento e uso do solo vigentes na época; é uma forma de dar segurança jurídica aos proprietários ou posseiros, tornando suas construções "legalizadas", envolvendo prazos e critérios específicos, tal como a adaptação do prédio às normas técnicas e legais; neste caso, a anistia só se admite quando não contrariar os parâmetros centrais do Plano Diretor; é uma medida administrativa de ajuste, não de renúncia normativa;
  3. Regularização fundiária de núcleo urbano informal consolidado, considerando que o art. 11, §1º, da lei 13.465/17 permite que o município dispense os padrões urbanísticos e edilícios do núcleo urbano informal consolidado, tal como percentual e dimensão das áreas públicas, tamanho do lote, taxa de ocupação, coeficiente de aproveitamento, zoneamento, gabarito de altura, recuos, com fundamento constitucional no direito à moradia e na função social da propriedade, em conformidade com os arts. 5º, XIII, e 6º, caput, da CF/88. Além disso, o art. 35, parágrafo único, da lei 13.465/17 prevê que o projeto de regularização fundiária poderá estabelecer parâmetros urbanísticos específicos. A mesma lei que prevê a dispensa dos padrões urbanísticos, admite a indicação de padrões específicos. Aqui não se trata de anistia indiscriminada, mas de instrumento de inclusão social previsto pela lei Federal e dentro de critérios determinados pela legislação municipal.

Capítulo VI - Limites das exceções

Mesmo nos casos excepcionais, o caráter excepcional da anistia deve ser preservado, sob pena de a exceção se transformar em regra, esvaziando o planejamento urbano. Por isso, a anistia não pode: a) comprometer a segurança das edificações; b) violar normas de acessibilidade, proteção ambiental ou saúde pública; c) dispensar análise caso a caso, com fundamentação técnica; d) ser utilizada como instrumento arrecadatório ou político; e) ser o projeto de lei de anistia de iniciativa parlamentar, pois o controle do uso e ocupação do solo urbano é matéria de iniciativa do prefeito, reservando-se aos vereadores o direito de propor e aprovar emendas.

Capítulo VII - A anistia de obras e a outorga onerosa do direito de construir

A temática da anistia de obras, quando analisada em confronto com os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto da Cidade, notadamente a outorga onerosa do direito de construir e a alteração de uso do solo, suscita relevantes reflexões jurídicas acerca da coerência normativa, da efetividade do planejamento urbano e da observância ao princípio da legalidade.

A anistia de obras constitui medida legislativa excepcional pela qual o Poder Público municipal, por intermédio de lei específica, decide "perdoar" construções já erguidas em desconformidade com os parâmetros urbanísticos e edilícios então vigentes. Trata-se, em essência, de regularização ex post facto, cujo objetivo é conferir legalidade a situações já consolidadas, ainda que em desacordo com normas de zoneamento, recuos, coeficientes de aproveitamento ou mesmo destinações de uso.

Diversamente, a outorga onerosa do direito de construir e a alteração de uso do solo são instrumentos de natureza ex ante, isto é, concebidos no seio do planejamento municipal como mecanismos legítimos de flexibilização urbanística. O Estatuto da Cidade) prevê que o município poderá, mediante contrapartida financeira ou compensatória, autorizar o proprietário a construir além do coeficiente de aproveitamento básico ou a alterar a destinação de determinado imóvel, sempre dentro dos limites estabelecidos no Plano Diretor. Esses instrumentos, portanto, não traduzem perdão de ilegalidade, mas sim exercício programado do direito de propriedade, condicionado a limites e ônus previamente definidos pela coletividade.

A distinção fundamental entre os institutos é nítida. A anistia de obras atua de forma retroativa, perdoando infrações e conferindo legalidade a construções que, em princípio, violaram a ordem urbanística. Enquanto a outorga onerosa/alteração de uso operam de forma prospectiva, autorizando previamente uma flexibilização dentro de parâmetros previamente fixados. Por essa razão, não se pode afirmar, em termos absolutos, que a outorga possa substituir a anistia.

Não obstante, em situações concretas, a outorga onerosa e a alteração de uso podem servir como meios de regularização, afastando a necessidade de anistia. É o que se verifica quando:

  1. a construção excedeu o coeficiente básico, mas não ultrapassou o coeficiente máximo admitido no Plano Diretor, caso em que a irregularidade pode ser sanada mediante pagamento da contrapartida prevista;
  2. o imóvel foi destinado a uso diverso daquele permitido originalmente, mas a lei urbanística admite alteração de uso mediante procedimento de outorga onerosa.

Nesses casos, a obra não é propriamente anistiada, mas sim enquadrada nos instrumentos urbanísticos vigentes, aplicando-se tardiamente aquilo que já estava previsto no ordenamento municipal.

Todavia, a outorga onerosa e a alteração de uso não têm alcance ilimitado. Não podem ser utilizadas como válvula de escape para toda e qualquer irregularidade. Questões como: ocupação de áreas públicas, construção em áreas de proteção ambiental, supressão de recuos obrigatórios, desrespeito às normas de segurança e salubridade.

Capítulo VIII - Edificações toleradas e anistia de obras irregulares

As edificações toleradas constituem uma categoria importante dentro do licenciamento urbanístico, justamente porque representam uma forma de o Poder Público lidar com a realidade consolidada das cidades sem, ao mesmo tempo, renunciar ao ordenamento territorial.

Em linhas gerais, são construções que não obedecem integralmente aos parâmetros urbanísticos vigentes - como recuos, altura máxima, taxa de ocupação ou índice de aproveitamento - mas que, por estarem consolidadas e não oferecerem riscos estruturais, de salubridade ou ambientais, são registradas nos cadastros municipais como "toleradas". Essa inscrição tem natureza precária e transitória: o imóvel pode permanecer como está, mas não se legitima como se fosse regular.

O aspecto central da tolerância é que ela não confere direito adquirido à manutenção da irregularidade. Afirma José Afonso da Silva que "a tolerância não constitui um direito subjetivo do titular, mas uma liberalidade legal". Sempre que o proprietário pretender reformar, ampliar ou reconstruir a edificação, será obrigado a adequar-se integralmente à legislação urbanística em vigor. Assim, a tolerância funciona como um ato de pragmatismo administrativo, reconhecendo que seria inviável ou socialmente indesejável demolir edificações consolidadas, mas deixando claro que a irregularidade não se projeta para o futuro.

Outro ponto relevante é a distinção em relação à anistia. Enquanto a anistia apaga a irregularidade e converte a edificação em "regular", a tolerância apenas admite sua permanência temporária, sem lhe conferir status de conformidade jurídica. Por isso, as edificações toleradas não podem ser tomadas como paradigma para novas construções nem servir de justificativa para descumprir a legislação.

Do ponto de vista da política urbana, esse instituto é um meio-termo entre a rigidez legal e a realidade social. Evita tanto o caos de sucessivas anistias quanto a insensibilidade de exigir a imediata demolição de bairros inteiros que, embora irregulares, estão consolidados e integram a malha urbana. Em suma, é uma solução de equilíbrio, cujo objetivo é permitir a transição da cidade real para a cidade legal.

Capítulo IX - Considerações finais

A anistia de obras é um tema sensível no Direito Urbanístico brasileiro. Se, por um lado, a sua concessão ampla e irrestrita representa grave violação constitucional e urbanística, por outro, admite-se que, em hipóteses excepcionais e bem delimitadas, possa servir como instrumento de ajuste e inclusão social.

A distinção entre a anistia inconstitucional (genérica e irrestrita) e a anistia excepcional (pontual, justificada e compatível com o Plano Diretor) é fundamental para garantir equilíbrio entre segurança jurídica, desenvolvimento urbano sustentável e proteção do interesse coletivo.

Em última análise, o município deve compreender que a anistia não pode ser um atalho político para resolver ilegalidades em massa, mas apenas um mecanismo subsidiário, quando absolutamente necessário, para harmonizar situações concretas com os princípios do Direito Urbanístico e da CF/88.

Jamilson Lisboa Sabino

VIP Jamilson Lisboa Sabino

Mestre e Doutor pela PUC São Paulo. Autor, dentre outros livros, do Tratado de Regularização Fundiária Urbana (Editora Forum) e do Tratado sobre Parcelamento do Solo Urbano (Editora Lumen Juris).

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