Vícios formais do PPP: Dever fiscalizatório do INSS
Estudo demonstra que meros erros formais no PPP não invalidam direito à aposentadoria especial. INSS omite fiscalização e transfere ônus ao trabalhador hipossuficiente.
sábado, 20 de setembro de 2025
Atualizado em 19 de setembro de 2025 09:53
Vícios formais do PPP: presunção de veracidade e dever fiscalizatório do INSS
Introdução
O PPP - Perfil Profissiográfico Previdenciário, instituído no ordenamento jurídico brasileiro como um documento histórico-laboral do trabalhador, desempenha um papel central na comprovação das condições de trabalho para fins de concessão de benefícios previdenciários, notadamente a aposentadoria especial. Concebido para ser um registro fidedigno das atividades desenvolvidas e, principalmente, da exposição a agentes nocivos à saúde ou à integridade física, o PPP é um instrumento de fundamental importância para a materialização do direito à proteção social do trabalhador.
Contudo, a despeito de sua relevância e da presunção de veracidade que lhe é inerente, o PPP tem sido alvo de controvérsias recorrentes na seara administrativa e judicial. O INSS - Instituto Nacional do Seguro Social, em sua análise dos requerimentos de benefícios, frequentemente opõe óbices ao reconhecimento do tempo especial com base em meros vícios formais de preenchimento do documento, tais como a ausência de indicação do responsável técnico em determinado período ou a utilização de metodologias de aferição de ruído supostamente conflitantes.
Essa postura da autarquia previdenciária suscita um debate de grande relevância jurídica e social: até que ponto meras irregularidades formais podem se sobrepor à presunção de veracidade de um documento técnico, elaborado em cumprimento de obrigação legal pelo empregador? Seria legítimo transferir ao segurado, parte hipossuficiente na relação, o ônus de sanar vícios pelos quais não concorreu e sobre os quais não possui, na maioria das vezes, conhecimento técnico para contestar?
O presente estudo propõe-se a analisar criticamente essa questão, defendendo a tese de que a impugnação do PPP pelo INSS, para ser válida, deve se basear em elementos técnicos robustos que infirmem o conteúdo do documento, e não em meras conjecturas ou formalismos exacerbados. Argumenta-se, ainda, que a postura do INSS representa uma omissão ao seu dever legal de fiscalizar a correta elaboração dos PPPs pelos empregadores, valendo-se de sua própria inércia para negar direitos aos segurados.
Para tanto, o artigo se estrutura em quatro seções principais. Inicialmente, será apresentada a fundamentação teórica que sustenta a natureza jurídica e a força probante do PPP. Em seguida, será realizada uma análise crítica da prática administrativa do INSS, à luz dos princípios que regem a Administração Pública. Posteriormente, serão examinadas as principais controvérsias jurisprudenciais acerca dos vícios formais do PPP, com a devida colação de precedentes dos tribunais superiores. Por fim, as considerações finais sintetizarão os argumentos desenvolvidos, reforçando a necessidade de uma interpretação teleológica das normas previdenciárias, que privilegie a verdade material e a proteção do trabalhador.
2. Fundamentação teórica
2.1. O Perfil Profissiográfico Previdenciário: Conceito e natureza jurídica
O PPP - Perfil Profissiográfico Previdenciário configura-se como um documento histórico-laboral individualizado do trabalhador, de caráter eminentemente previdenciário e trabalhista. Ele foi concebido para reunir, de forma sistemática, uma ampla gama de informações que delineiam o percurso profissional do segurado. Tais informações abrangem desde as atividades efetivamente desenvolvidas, detalhando as funções e tarefas cotidianas, até as condições ambientais de trabalho a que o empregado esteve submetido, com especial atenção aos agentes de risco - físicos, químicos, biológicos, ergonômicos e mecânicos - aos quais houve exposição durante sua vida laboral.
Sua relevância no ordenamento jurídico previdenciário não advém apenas de normas infralegais, mas encontra fundamento em diplomas legislativos hierarquicamente superiores, que conferem ao documento a autoridade e a presunção de veracidade que são objeto central deste estudo.
A gênese e a obrigatoriedade do PPP remontam diretamente à lei 8.213, de 24/7/1991 (lei de benefícios da previdência social). É o art. 58 dessa lei que estabelece a exigência da comprovação do tempo de trabalho permanente, não ocasional nem intermitente, em condições especiais. Mais especificamente, o § 3º do art. 58 da lei 8.213/91 determina que a empresa deverá elaborar e manter atualizado o perfil profissiográfico, abrangendo as atividades desenvolvidas pelo trabalhador, contendo informações sobre o ambiente de trabalho, o resultado de monitoração biológica e os dados do responsável pela monitoração ambiental e o controle biológico, bem como os resultados de exames médicos de saúde e de outros exames complementares.
Complementarmente, o § 4º do mesmo artigo prevê que a empresa que não mantiver o PPP atualizado, ou que o emitir em desacordo com o que a lei ou o regulamento estabelecer, sujeitar-se-á às penalidades previstas em lei, especialmente o art. 133 da própria lei 8.213/91, que comina multa pela infração. Essa previsão legal de penalidade já evidencia o caráter obrigatório e a seriedade com que o legislador trata o documento.
Descendo um degrau na hierarquia normativa, o decreto 3.048, de 6/5/1999 (regulamento da previdência social), em seu art. 68, § 8º, reitera e detalha a obrigatoriedade da empresa de elaborar e manter atualizado o PPP, abrangendo as atividades desenvolvidas e fornecendo ao segurado, quando da rescisão do contrato de trabalho ou quando da solicitação do benefício, cópia autêntica do documento. Este dispositivo regulamentar reforça a responsabilidade patronal pela fidedignidade das informações e pelo fornecimento do PPP, servindo como uma ponte entre a lei e as normas de execução.
Foi nesse cenário de imposição legal e regulamentar que a disciplina detalhada do PPP emergiu nas normas infralegais do próprio Instituto Nacional do Seguro Social. A instituição formal do documento, com sua padronização e exigência a partir de 2004, ocorreu por meio da IN INSS/DC 99, de 5/12/03.
Esta IN inicial foi fundamental para operacionalizar as exigências da lei e do decreto. Embora a IN INSS/PRES 77, de 21/1/15, tenha desempenhado um papel relevante ao longo de muitos anos, detalhando as diretrizes para o preenchimento e a análise do PPP, é crucial destacar que esta foi revogada e sucedida pela IN INSS/PRES 128, de 28/3/22.
Atualmente, a IN 128/22 se constitui na principal norma a detalhar a formatação, os dados exigidos e os procedimentos relativos ao PPP. Assim, a estrutura e o detalhamento do PPP são reflexos de uma cadeia normativa que começa na lei, passa pelo decreto e culmina nas Instruções Normativas.
2.3. A presunção de veracidade dos documentos técnicos
O PPP não é apenas um documento; ele goza de uma presunção relativa de veracidade, especialmente no que se refere ao seu objeto principal: a constatação da insalubridade ou periculosidade a que o segurado está exposto. Essa presunção, conhecida no Direito como juris tantum, é uma característica intrínseca não só aos documentos públicos, mas também, e de forma acentuada, aos documentos particulares que são elaborados em cumprimento de uma expressa obrigação legal, como é o caso do PPP. Sua força probatória advém da base normativa sólida que o exige, conforme detalhamos, e, primordialmente, do rigor técnico imposto à sua elaboração.
A robustez dessa presunção decorre de diversos fatores intrínsecos ao documento. Primeiramente, o PPP é construído a partir de informações técnicas especializadas, extraídas, em regra, do LTCAT - Laudo Técnico de Condições Ambientais de Trabalho, documento este que deve ser elaborado por profissionais legalmente habilitados em segurança e medicina do trabalho - como engenheiros de segurança e médicos do trabalho. A expertise desses profissionais na identificação, avaliação e, se for o caso, quantificação dos agentes nocivos presentes no ambiente laboral, confere ao PPP uma certa fidedignidade que transcende a mera declaração. É um atestado técnico-científico das condições de exposição.
É crucial entender que a presunção de veracidade que reveste o PPP não significa, de forma alguma, que o documento seja absoluto ou incontestável. Significa, isso sim, que para desconstituí-lo ou infirmar seu conteúdo principal (exposição ao agente nocivo, insalubre ou perigoso), não bastam meras dúvidas, suposições ou análises superficiais de aspectos isolados como recorrentemente faz o INSS.
A impugnação do PPP, para ser legítima e juridicamente válida, deve estar fundamentada em elementos técnicos específicos, robustos e idôneos, capazes de contraditar as informações nele contidas. Não se admite a desqualificação do documento com base em "conjecturas", "meros vícios formais de preenchimento" desprovidas de base técnica.
Esta característica da presunção de veracidade é fundamental para a segurança jurídica de todo o sistema previdenciário e, em última instância, para a proteção dos direitos sociais dos trabalhadores. Ela assegura que os segurados que foram, de fato, expostos a condições nocivas durante sua trajetória profissional tenham seus direitos à aposentadoria especial reconhecidos com base em documentação técnica especializada e formalmente exigida. Ao se adotar essa presunção, evita-se que a análise da matéria previdenciária recaia sobre critérios subjetivos, interpretações desarrazoadas ou desprovidas de embasamento científico, garantindo-se que a concessão do benefício reflita a realidade das condições de trabalho e não a mera conveniência administrativa.
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