Recepcionista hospitalar: Tempo especial na aposentadoria
Recepcionista hospitalar e o direito à contagem do tempo especial. Uma análise crítica da profissiografia do PPP como critério para o não reconhecimento do direito.
sábado, 4 de outubro de 2025
Atualizado em 3 de outubro de 2025 14:17
Risco biológico e a contagem de tempo especial para aposentadoria
A concessão da aposentadoria especial representa um mecanismo de proteção social destinado aos trabalhadores que exercem suas atividades expostos a agentes nocivos à saúde ou à integridade física. No entanto, a aplicação deste direito encontra barreiras significativas para certas categorias profissionais, como a dos recepcionistas em ambientes hospitalares. Embora estejam na linha de frente do atendimento, em contato direto e indireto com pacientes potencialmente portadores de doenças infectocontagiosas, o INSS - Instituto Nacional do Seguro Social rotineiramente nega o enquadramento de sua atividade como especial.
A principal alegação da autarquia reside na análise da profissiografia contida no PPP - Perfil Profissiográfico Previdenciário, que, por vezes, omite a exposição a riscos biológicos, descrevendo a função como meramente administrativa.
O epicentro desse tipo de controvérsia reside, pois, na interpretação do PPP - Perfil Profissiográfico Previdenciário. A autarquia e as decisões judiciais que lhe seguem costumam atribuir um peso desproporcional ao campo da "profissiografia", a descrição textual das atividades. Quando este campo descreve a função como "administrativa" ou "de atendimento", sem mencionar o contato com agentes nocivos, encerra-se a análise e nega-se o direito. Tal abordagem é, contudo, uma falácia técnica e jurídica.
O PPP é o documento-chave para a comprovação da atividade especial. Sua força probatória, contudo, não é homogênea. Enquanto os registros ambientais, que detalham a exposição a agentes nocivos, são elaborados por engenheiros de segurança ou médicos do trabalho com base em LTCAT - laudos técnicos, a profissiografia - a descrição das atividades - é frequentemente preenchida por profissionais de recursos humanos, sem a mesma especialização técnica.
Atribuir à profissiografia o poder de invalidar os registros técnicos sobre a exposição a agentes nocivos é inverter a lógica e a hierarquia probatória do próprio documento. A descrição textual das tarefas não pode se sobrepor à análise qualitativa dos riscos, que constitui o núcleo da comprovação da atividade especial e é fruto de um rigoroso trabalho técnico-científico.
A força probatória do PPP não é uniforme; ela é diretamente proporcional à qualificação técnica exigida para o preenchimento de cada seção. Os registros ambientais, que atestam a presença de agentes biológicos, são o coração técnico do documento. Sua elaboração é de responsabilidade exclusiva de um engenheiro de segurança do trabalho ou médico do trabalho, com base em um LTCAT - laudo técnico. Este campo é, portanto, uma prova técnica qualificada, dotada de presunção de veracidade por emanar de profissionais com habilitação legal para identificar e avaliar riscos.
Em contrapartida, a profissiografia é, na vasta maioria dos casos, preenchida por profissionais do setor de recursos humanos ou departamento pessoal. Sem formação em higiene ocupacional, sua descrição se atém ao nomen iuris do cargo, e não à realidade do ambiente laboral. É uma prova meramente descritiva e leiga.
Atribuir a esta descrição leiga o poder de invalidar a constatação técnica da presença de agentes biológicos é uma inversão hermenêutica inaceitável. Viola a lógica e a hierarquia probatória. A profissiografia pode descrever o que o recepcionista faz (atende, cadastra, orienta), mas são os registros ambientais que descrevem onde e sob que condições ele o faz: imerso em um ambiente com risco biológico qualitativamente presente e de contágio imprevisível. A argumentação jurídica deve, portanto, martelar neste ponto: a análise do PPP não pode ser feita de forma horizontal; há uma clara hierarquia vertical onde a prova técnica especializada se sobrepõe à descrição genérica.
É paradoxal que, diante de uma aparente contradição no PPP, o INSS opte pelo indeferimento sumário do pedido em vez de exercer seu poder-dever de instrução processual. A lei 9.784/99, que rege o processo administrativo Federal, impõe à Administração a busca pela verdade material.
A própria IN INSS/PRES 128/22, em seus arts. 573 e seguintes, prevê instrumentos como a pesquisa externa e a justificação administrativa, que permitem à autarquia realizar diligências para sanar dúvidas e confirmar as reais condições de trabalho do segurado. Ao se omitir, o INSS transfere um ônus probatório desproporcional ao trabalhador e assume uma postura de parte litigiosa, em detrimento de sua função de gestor da previdência social.
Felizmente, o Poder Judiciário, em alguns precedentes, tem adotado uma visão mais alinhada à primazia da realidade. Alguns Tribunais Regionais Federais têm reconhecido o direito dos recepcionistas hospitalares à aposentadoria especial.
O TRF-1, por exemplo, já pacificou o entendimento de que a exposição a agentes biológicos em ambiente hospitalar, mesmo em função administrativa, caracteriza a condição insalubre. Em julgado recente (AC 1020924-79.2021.4.01.3600, JUIZ FEDERAL ALYSSON MAIA FONTENELE, TRF1 - SEGUNDA TURMA, PJe 09/07/2025 PAG), a 2ª turma destacou que "o simples exercício de função administrativa em ambiente hospitalar não descaracteriza o risco de exposição a agentes nocivos quando evidenciado o contato direto ou indireto com materiais e pacientes contaminados".
De forma ainda mais assertiva, o TRF-6 (TRF-6 - AC: 00314276820184019199 MG, Relator.: LUCIANO MENDONCA FONTOURA, Data de Julgamento: 25/08/2025, Data de Publicação: 28/08/2025) argumenta que, no caso de agentes biológicos, a exposição decorre do próprio local em que o segurado está inserido, e não apenas de suas atividades, visto que muitos desses agentes se propagam pelo ar. O tribunal também reforça a tese de que o fornecimento de EPI - Equipamento de Proteção Individual não neutraliza completamente o risco de contágio, sendo sua eficácia presumidamente relativa.
Esses precedentes reconhecem que a exposição não precisa ser ininterrupta durante toda a jornada, pois o risco de contágio é inerente ao ambiente e pode ocorrer a qualquer momento, caracterizando a habitualidade e permanência exigidas pela lei.
Conquanto existem precedentes favoráveis e mais garantistas ao reconhecimento da atividade especial do recepcionista hospitalar, é cediço que ainda existem muitas decisões mais restritivas ao acesso ao direito. É diante deste cenário que o advogado deve atuar de forma estratégica. A primeira medida é a análise minuciosa do PPP. Caso a profissiografia seja omissa ou imprecisa, deve-se buscar a retificação do documento junto ao empregador. Se a via administrativa falhar, a retificação pode ser pleiteada na Justiça do Trabalho.
Na ação previdenciária, é crucial não se limitar à juntada do PPP. Deve-se argumentar com base na jurisprudência consolidada e, se necessário, requerer a produção de prova pericial, invocando o Tema 213 da TNU - Turma Nacional de Uniformização e o Tema 1.090 do STJ. A perícia pode ser fundamental para demonstrar a realidade do ambiente de trabalho e a ineficácia dos EPIs fornecidos, dirimindo qualquer dúvida que o julgador possa ter.
A negativa do INSS em reconhecer o tempo especial para recepcionistas hospitalares, baseada em uma análise formalista da profissiografia do PPP, contraria a lógica técnica, o dever de instrução da autarquia e a jurisprudência pacificada. O risco biológico em um ambiente hospitalar é onipresente e não se restringe às áreas de isolamento ou aos profissionais de saúde que realizam procedimentos invasivos.
Cabe ao advogado previdenciarista, munido dos argumentos e das estratégias corretas, lutar pela demonstração da primazia da realidade e garantir que a proteção constitucional da aposentadoria especial alcance efetivamente aqueles que, como os recepcionistas de hospitais, dedicam sua vida profissional em um ambiente de risco constante à sua saúde.


