Consulta aos povos indígenas: Entre a folha de papel e a força normativa
Análise sobre ADin 5.905 que reacende debate sobre a força normativa do direito de consulta prévia aos povos indígenas em obras que impactam seus territórios.
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Atualizado às 17:05
Muitos são os expedientes e subterfúgios para reduzir os direitos dos povos indígenas a uma mera folha de papel[1], sendo esvaziada sua força normativa[2] de status constitucional. Em meus ensaios, tenho denunciado as tentativas das forças políticas reacionárias no sentido de tornar inócuo o art. 231 da Constituição, que outorga aos povos indígenas os direitos originários às suas terras tradicionalmente ocupadas[3]. Desta vez, venho trazer à tona o julgamento da ADin 5905 pelo STF, a partir de 3 de setembro deste ano. Contextualizemos a ação.
Na oportunidade do ajuizamento, em 2018, o Governo do Estado de Roraima, por meio da Procuradoria-Geral do Estado, arguiu a inconstitucionalidade de dispositivos da Convenção nº 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Estado brasileiro, que entrou em vigor no país em 25 de julho de 2003, consolidada atualmente no Decreto 10.088, de 5 de novembro de 2019 (Anexo LXXII).
Em linhas gerais, o Governo mostrou-se inconformado com a necessidade de "consultar os povos interessados" quando da execução de "medidas administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente" (art. 6º, 1, "a"), em busca de "consentimento acerca das medidas propostas" (art. 6º, 2). Adiante, tratarei da interpretação do termo consentimento.
O Governo questiona justamente a exigência de consulta prévia aos povos afetados, "na hipótese de instalação de equipamentos de transmissão e distribuição de energia elétrica, redes de comunicação, estradas e demais construções necessárias à prestação dos serviços públicos"[4]. Os argumentos esposados foram - como é habitual - de ordem econômica: a consulta prévia estaria trazendo "prejuízos estruturais ao desenvolvimento socioeconômico de Roraima"[5].
Colocada em pauta a questão pelo relator, ministro Luiz Fux, basicamente se discutirá a constitucionalidade da consulta prévia aos povos indígenas quanto às obras que lhes afetem, nos termos da Convenção. Vários terceiros interessados manifestaram a necessidade de escuta, tais como Marcelo Vinícius Miranda Santos (AGU); Ricardo Sobrinho (Apib); Carlos Frederico Marés (representante de organizações quilombolas); Gabriel de Carvalho Sampaio (Conectas Direitos Humanos); e Deborah Duprat (AJD)[6].
Em suma, os terceiros interessados argumentaram que a consulta: a) garante o mínimo de autodeterminação e autonomia dos povos tradicionais e seus territórios; b) é compatível com uma concomitante garantia dos direitos indígenas e um desenvolvimento nacional justo e sustentável; c) equivale ao licenciamento ambiental; d) é instrumento necessário de diálogo institucional e democracia participativa; e e) privilegia a descolonização do direito brasileiro e valoriza o pluralismo e o direito à diferença.
No entanto, houve aqueles que relativizaram as potencialidades da consulta. Felipe Costa Camargo (CNA) defendeu que as consultas sejam obrigatórias tão somente se impactarem diretamente terras homologadas. Tal compreensão vai de encontro ao conceito de "terras" adotado pela Convenção - um dos dispositivos escrutinados na ADI -, para a qual "a utilização do termo 'terras' nos artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma" (art. 13, 2). A Convenção também incita a salvaguardar "terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência" (art. 14, 1).
Veja-se que a Convenção, assim como a Constituição brasileira e o STF, adotam o critério da tradicionalidade para fins de reconhecer as terras atribuíveis aos povos indígenas. Ora, o texto constitucional é claro ao franquear o inconteste direito originário dos povos indígenas às terras por eles tradicionalmente ocupadas (art. 231). Sempre que oportuno, saliento que tal norma tem eficácia plena e efeito imediato[7], revestindo-se de indubitável força normativa. No que tange ao STF, o tribunal manifestou-se no mesmo sentido em paradigmáticos julgamentos acerca da matéria, como o da terra indígena Raposa Serra do Sol[8] e o da Lei do Marco Temporal[9].
Não obstante, parece-me que o ponto nevrálgico desta ação é o caráter vinculante das consultas realizadas. É certo que a Convenção privilegia os diálogos institucionais e a democracia participativa. Entretanto, indago: a consulta é mera escuta, sem efeitos concretos? Há possibilidades concretas de os índios fazerem valer suas perspectivas em face dos não índios, que certamente influenciarão o debate como terceiros interessados? E, sobretudo, até que ponto os interesses econômicos não prevalecerão sobre o direito à consulta e a sua força normativa - à sua capacidade de irradiar efeitos jurídicos relevantes?
A tese da Procuradoria do Estado de Roraima não merece prosperar. Segundo o Procurador, a consulta engendrará efeitos vinculantes para o Estado somente quando os efeitos negativos do empreendimento forem superiores aos positivos[10]. Setores políticos ligados ao agronegócio tendem a analisar o empreendimento sob o prisma único do custo-benefício: se a obra gera lucro, deve conduzir à desconsideração dos interesses indígenas.
No entanto, tal modulação não se respalda em nenhum argumento constitucional ou convencional. Pelo contrário, a Convenção vale-se, no art. 6º, 2, da expressão consentimento. Há clareza, portanto, quanto às intenções insculpidas no texto convencional. Empregando os métodos de interpretação literal, histórico, sistemático e teleológico, chega-se à conclusão de que consentimento significa condição sine qua non para autorizar as "medidas legislativas ou administrativas suscetíveis" de afetar um povo.
Literalmente, consentimento significa licença: "permissão para que alguém faça algo; declaração de que não há objeção ou discordância"[11]. Nesse sentido, investe-se do caráter de autorização. Mais além, analisado o contexto de promulgação da Convenção, é certo que as partes envolvidas buscavam assegurar o máximo possível de força normativa aos direitos dos povos indígenas.
A Convenção, como um todo, compõe um sistema de princípios e regras que aponta para a evidência dessa máxima proteção jusfundamental. Daí ser forçoso reconhecer que a intenção do texto, interpretado à luz tanto da Convenção quanto de nossa Constituição, é conferir ao vocábulo consentimento máxima efetividade - o que significa dizer que a consulta prévia vincula as decisões ulteriores, no sentido de confirmar, negar ou condicionar a medida legislativa ou administrativa que afete o povo consultado.
Afora os argumentos jurídicos, há um exemplo alvissareiro de cooperação entre indígenas e o Poder Público, para a concretização de obra de desenvolvimento socioeconômico regional. Trata-se do Linhão do Tucuruí, concluído neste ano.
A mútua cooperação nessa obra atesta que a consulta prévia não é obstáculo intransponível ao desenvolvimento do Estado. A obra consistiu na instalação de torres de transmissão de energia gerada pela hidrelétrica de Tucuruí/PA, ao longo da rodovia federal BR-174.
O povo kinja, alojado na terra Waimiri Atroari, auxiliou na proteção da biodiversidade local durante a construção do empreendimento, diminuindo seu impacto ambiental. Todas as condicionantes apresentadas pelos indígenas foram produto de consulta prévia, em participação direta do povo kinja[12].
Em síntese: desenvolvimento e garantia dos direitos dos povos tradicionais não são um paradoxo inconciliável. Não raro, contudo, a questão é apresentada sob a roupagem de um conflito.
Na perspectiva do capital, a centralidade da questão é o custo-benefício traduzido em lucro: respeitam-se as terras indígenas, desde que o lucro não se veja prejudicado. Na perspectiva dos povos indígenas, a centralidade da questão é a ancestralidade, traduzida, na linguagem constitucional, como dignidade da pessoa humana. Não obstante, apenas um desses enfoques é consentâneo com o texto constitucional e sua força normativa.
Sob a égide de nosso constitucionalismo, toda esta discussão deve ser enxergada sob o prisma dos interesses indígenas: da ancestralidade, da proteção dos saberes e modos de vida tradicionais e das terras tradicionalmente ocupadas pelos indígenas.
De acordo com os parâmetros da democracia participativa, somente os afetados por determinada medida estão legitimados a opinar sobre ela - no caso que trago a lume, a consentir, com caráter vinculante. Assim é que o direito à consulta prévia deixará de ser mero artigo convencional, inscrito inertemente em folha de papel, para adquirir inexpugnável força normativa.
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[1] Conferir: LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Pref. e Org.: Aurélio Wander Bastos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2015.
[2] Conferir: HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor: Porto Alegre, 1991.
[3] Para aprofundar a discussão, remeto a meu artigo "Demarcação de terras indígenas e o marco temporal: entre a folha de papel e a força normativa". In: Portal Migalhas. Publicado em: 24/07/25. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/435328/demarcacao-indigena-e-marco-temporal-lei-e-forca-normativa.
[4] "ADI contra exigência de consulta a povos indígenas para execução de obras públicas terá rito abreviado". In: Portal STF. Publicado em: 22/03/18. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=373240&ori=1.
[5] Ibidem.
[6] "Plenário começa a discutir consulta prévia a povos indígenas sobre obras de impacto". In: Portal STF. Publicado em: 03/09/25. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-ouve-argumentos-sobre-consulta-previaa-povos-indigenas-em-empreendimentos-que-possam-afeta-los/.
[7] Conforme a clássica conceituação de José Afonso da Silva: "As normas de eficácia plena são aquelas que, desde a entrada em vigor da Constituição, produzem todos os seus efeitos essenciais, independentemente de regulamentação ulterior". In: Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2002 (p. 81).
[8] STF. Pet nº 3.388, Rel.: Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009.
[9] STF. RE 1.017.365/SC - Repercussão Geral - Tema 1.031, Rel. Min. Edson Fachin, Plenário, j. 18.09.2023, DJ 05.10.2023.
[10] "Plenário começa a discutir consulta prévia a povos indígenas sobre obras de impacto". In: Portal STF. Publicado em: 03/09/25. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/stf-ouve-argumentos-sobre-consulta-previaa-povos-indigenas-em-empreendimentos-que-possam-afeta-los/
[11] In: Dicionário Caldas Aulete. Disponível em: https://www.aulete.com.br/consentimento.
[12] "Como indígenas ajudaram na obra do linhão de Tucuruí". In: Nexo Jornal. Publicado em: 02/03/25. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/externo/2025/03/02/indigenas-ajudam-obra-linhao-de-tucurui


