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Onipresença fiscal: Como as normas americanas, brasileiras e multilaterais vêm diluindo o conceito de contribuinte no contexto transnacional

Análise comparada das normas tributárias dos EUA, Brasil e OCDE, revelando como essas vêm enfraquecendo a noção clássica de contribuinte.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Atualizado em 16 de setembro de 2025 13:58

1. Um retrofit tributário internacional

A arquitetura tributária internacional passa por uma transformação profunda. Movidos pela iniciativa da OCDE, países ao redor do mundo vêm revendo suas normas para combater a erosão de suas bases tributáveis e para garantir uma carga mínima global.

Esse movimento, porém, não nasceu na OCDE. Os Estados Unidos já imputavam (e importavam) a renda ultramarina desde os anos 1960, com a Subpart F de seu Internal Revenue Code, e mais recentemente com o GILTI (agora NCTI) e o BEAT. A OCDE, em certo sentido, cristalizou essa tendência em um modelo multilateral.

No Brasil, esse processo é mais recente, mas vem se consolidando com a promulgação das leis 12.973/14 (tributação dos lucros de controladas e coligadas no exterior de pessoas jurídicas brasileiras), 14.754/23 (tributação dos lucros de controladas no exterior de pessoas físicas brasileiras e de bens objeto de trust) e lei 15.079/24 (adicional da CSLL para grupos multinacionais brasileiros com subsidiárias em países de baixa tributação).

Em artigo anterior (sobre a reforma tributária mundial), discutimos como essas reformas apontam para um conceito de contribuinte com menos forma jurídica e mais substância econômica. Este artigo aprofunda essa discussão a partir de paralelos claros entre Estados Unidos, Brasil e OCDE.

2. O alcance internacional dos lucros de investidas

As regras de tributação dos lucros de certas investidas permitem à jurisdição olhar através de seu contribuinte e indiretamente alcançar entidades cuja renda ele provavelmente tenha a faculdade de fazer vir - ou não vir - a si.

Os EUA operam dois regimes principais para tributação de entidades controladas1 no exterior (controlled foreign corporations, ou CFCs): o Subpart F, que tributa certos tipos de rendimentos independentemente de distribuição, e o atual NCTI - Net CFC Tested Income, que rebatizou e modificou o GILTI - Global Intangible Low-Taxed Income com o advento da OBBBA - One Big Beautiful Bill Act.

O NCTI tributa o rendimento líquido (net tested income) de CFCs em determinada jurisdição (essas CFCs, juntas, configurando uma tested unit), permitindo apenas deduções diretamente atribuíveis ao rendimento, aplicando uma redução de 40% à base de cálculo e um direito ao crédito de 80% do imposto de renda pago na jurisdição estrangeira.

No Brasil, o tema surgiu com a lei 12.973/14, que consolidou a imputação de lucros de controladas e coligadas estrangeiras de pessoas jurídicas brasileiras, trazendo regras específicas dependendo da ligação societária (controlada ou coligada) e da localização (dentro ou fora de paraíso fiscal) da subsidiária estrangeira, com permissão de creditamento do imposto de renda pago no exterior e, de forma limitada, da compensação de prejuízos. Esse regime já trazia forte influência do modelo norte-americano de Subpart F.

Mais recentemente, a lei 14.754/23 impôs regra semelhante para pessoas físicas residentes no Brasil, que agora são obrigadas a tributar os lucros de suas entidades controladas no exterior mesmo que não recebam distribuição. A regra é objetiva e baseada em critérios de controle, tipos de rendimento e localização da entidade estrangeira.

3. Uma carga mínima para grandes grupos transnacionais

As normas de carga mínima restituem o lucro que (a) o contribuinte quis fazer desaparecer ao contratar com entidades ligadas ou (b) é apenas objeto de baixa tributação. Em vez de desconsiderar e reinterpretar as transações com essas entidades, elas simplesmente tributam o contribuinte outra vez (o chamado top-up tax) para lhe impor uma carga mínima, com isso jogando pela janela toda e qualquer análise de preço de transferência ou motivo negocial.

Nos EUA, o BEAT - Base Erosion and Anti-Abuse Tax aplica-se a grupos com receita bruta annual superior a 500 milhões de dólares. Ele busca reonerar empresas que, por meio de pagamentos dedutíveis a partes relacionadas no exterior, erodem a base de cálculo do imposto de renda Federal americano. Calcula-se um "imposto base", com adições específicas, e se o compara com o imposto efetivamente pago.

No Brasil, a lei 15.079/24 instituiu o adicional da CSLL, aplicável a grupos com receita global superior a 750 milhões de euros. O adicional alcança, na matriz, o lucro de subsidiárias sujeito a tributação inferior ao patamar mínimo da OCDE (15%). Um top-up tax, como o BEAT.

Ambos representam uma mudança de paradigma: a renda é tributada na residência da controladora a partir da estrutura global do grupo. Um alcance extraterritorial claro, justificado pela presença econômica transnacional.

4. Tentativa multilateral de harmonização

O Pilar 2 do projeto BEPS - Base Erosion and Profit Shifting da OCDE - Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico propõe um imposto de renda mínimo global de 15%, aplicável a grupos multinacionais com receita consolidada superior a 750 milhões de euros. Suas regras centrais permitem que a jurisdição de residência (por exemplo, da matriz) imponha um tributo adicional (top-up tax), se a jurisdição de fonte (por exemplo, da subsidiária) não tributar os lucros lá originados à alíquota mínima estabelecida globalmente (15%).

O modelo se alinha com o BEAT2 americano e com o adicional da CSLL brasileira. Sua ideia é promover uma harmonização global por meio de regras domésticas importadas via acordo multilateral. Na prática, essa harmonização vem ocorrendo de forma independente e assimétrica, país a país. Os EUA, embora não tenham aderido formalmente ao Pilar 2, negociaram uma isenção temporária para suas multinacionais, graças à similaridade funcional com seus regimes existentes.

5. Diluído por todos os lados?

Todas as regras acima pegam o contribuinte pessoa jurídica estrangeira, notadamente a subsidiária no exterior, e o tornam um apêndice do contribuinte nacional. Sua personalidade jurídica é aglutinada à do nacional para fins de se lhe medir os resultados e a tributação original, para então os agregarem aos resultados e à tributação doméstica deste. 

Note-se que não se está a falar das entidades ditas transparentes, enraizadas no sistema americano tanto para o contexto internacional quanto para o doméstico e só muito recentemente incorporadas ao sistema brasileiro, no limitado contexto de entidades controladas no exterior e bens objetos de trust mantidos por pessoas físicas residentes. Nos EUA, as regras diluidoras da pessoa jurídica estrangeira aplicam-se exclusivamente a corporations, entidades opacas por excelência. Já no Brasil, onde todas as empresas são opacas por natureza (salvo a exceção acima), as regras diluem todas as entidades estrangeiras. Aplica-se a lógica da transparência a estruturas que a ela não se destinavam, com isso tornando-a obrigatória, não mais opcional.

Mais do que a prevalência da substância sobre a forma, substituem os contornos jurídicos tradicionais a aparência de capacidade contributiva3 e a probabilidade de controle econômico. Afasta-se da personalidade jurídica e se adentra a probabilidade econômica. Uma vez que os Judiciários aprovem tal migração4, o caminho estará aberto para a imputação transpessoal da renda e para a cooperação fiscal internacional nessa imposição. Apenas os tratados bilaterais para evitar a dupla tributação da renda e as condutas individuais dos contribuintes (tanto asseverando seus direitos quando considerando a multilateral diluição de contornos em seu planejamento) ainda poderão fazer frente a essa iniciativa.

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1 Note-se que o termo controlada, no termo controlled foreign corporation, não tem a mesma acepção das normas brasileiras. Um acionista americano pode ter 10% de uma CFC e estar sujeito às normas Subpart F e NCTI. A corporation estrangeira é CFC quando mais de 50% de seu capital, ativos ou direito de voto pertence a acionistas americanos (no plural).

2 E, com boa vontade, também o NCTI (antigo GILTI).

3 Esta é inferida pela assunção da viabilidade do exercício de controle econômico ultramarino, e do seu exercício, pelo contribuinte.

4 Enquanto a Suprema Corte americana nunca enfrentou diretamente essa sistemática mas validou a tributação da renda extraterritorial do contribuinte (Comptroller of the Treasury v. Wynne, 575 U.S. 542), o Supremo Tribunal Federal brasileiro expressamente apreciou o tema (RE 541090/SC) e sua decisão serviu de base à Lei 12.973/2014.

José Rubens Scharlack

José Rubens Scharlack

Sócio-fundador dos escritórios de advocacia Scharlack Advogados e Scharlack PLLC.

Scharlack - Advocacia de Planejamento Internacional Scharlack - Advocacia de Planejamento Internacional

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