Direito dos games no Brasil: Desafios e perspectivas jurídicas
O direito dos games no Brasil está em construção, unindo propriedade intelectual, LGPD, tributação e consumo para regular um mercado bilionário e em expansão.
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
Atualizado às 09:35
1. Introdução
A indústria dos games se consolidou como um dos setores mais relevantes da economia global, movimentando cifras bilionárias e atraindo investimentos que ultrapassam em muito os valores alcançados pela indústria cinematográfica e fonográfica.
No Brasil, esse fenômeno se intensificou na última década, com o país figurando entre os maiores mercados consumidores de jogos digitais do mundo. Esse crescimento revisitou a necessidade de uma análise jurídica mais refinada, capaz de oferecer segurança normativa e regulatória a desenvolvedores, publishers, jogadores e investidores.
Assim, o chamado "direito dos games" emerge nesse cenário como campo autônomo em construção, articulado com institutos tradicionais do direito digital, da propriedade intelectual, do direito empresarial e do direito do consumidor.
2. O enquadramento jurídico dos games no Brasil
O ponto de partida para compreender a disciplina é o enquadramento jurídico dos games.
Enquanto softwares, os jogos eletrônicos encontram fundamento normativo na lei 9.609/1998, que disciplina a proteção da propriedade intelectual de programas de computador. Nesse sentido, tais programas são protegidos pelo regime do direito autoral, o que garante ao desenvolvedor direitos patrimoniais e morais sobre sua criação.
Ainda, é importante destacar que a natureza híbrida dos games, que combinam código-fonte, elementos gráficos, trilha sonora, enredo narrativo e até performances de atores, permite também a aplicação da lei 9.610/1998, que regula os direitos autorais em obras artísticas e audiovisuais.
Assim, esse duplo enquadramento evidencia a complexidade da matéria e a necessidade de uma interpretação que reconheça a pluralidade de camadas criativas presentes nos jogos.
3. Marco Civil da Internet, LGPD e impacto regulatório
Além da propriedade intelectual, outros diplomas normativos desempenham papel central na disciplina.
O Marco Civil da Internet (lei 12.965/14) impõe às plataformas de games a observância de princípios como neutralidade de rede, liberdade de expressão e proteção da privacidade.
Por sua vez, a LGPD (lei 13.709/18), trouxe desafios adicionais, especialmente no que se refere à coleta e ao tratamento de dados pessoais de jogadores, na maioria menores de idade. Nesse ponto, ganha relevo a necessidade de políticas de compliance digital que assegurem transparência e consentimento adequado, mitigando riscos de sanções administrativas e responsabilização civil.
4. Distinção entre jogos de azar e jogos de habilidade
Outro tema sensível que integra a pauta do direito dos games é a relação entre jogos eletrônicos e jogos de azar.
Durante décadas, o ordenamento jurídico brasileiro manteve forte restrição às práticas relacionadas a apostas, com fundamento na lei de contravenções penais (decreto-lei 3.688/1941).
Contudo, a evolução jurisprudencial e doutrinária passou a distinguir o jogo de sorte do jogo de habilidade, reconhecendo que modalidades como o poker exigem técnica, raciocínio estratégico e capacidade de tomada de decisão, não podendo mais ser enquadradas como simples jogos de azar.
Essa mudança paradigmática teve impactos significativos, não apenas na legitimidade das competições profissionais de poker, mas também na percepção social sobre os e-sports em geral, os quais se firmam como práticas que demandam elevado grau de habilidade, concentração e disciplina.
5. Loot boxes, microtransações e proteção do consumidor
Neste mesmo sentido, a distinção entre sorte e habilidade é igualmente importante para o debate em torno das loot boxes e microtransações.
Tais mecanismos, largamente utilizados em jogos online, oferecem recompensas virtuais por meio de caixas de conteúdo aleatório, aproximando-se em certa medida da lógica dos jogos de aposta.
No entanto, o fato de serem destinados a consumidores, muitas vezes menores de idade, suscita preocupações de natureza consumerista e regulatória, em que pese tenham existido movimentos mais recentes no Congresso Nacional revisitando essa pauta, especialmente após o debate público sobre a "adultização".
Até o momento, a ausência de legislação específica no Brasil tem levado o tema a ser enfrentado pelo direito do consumidor, em especial no tocante à transparência da oferta e ao direito à informação, previstos no CDC (lei 8.078/1990).
6. Desafios tributários na indústria dos games
Do ponto de vista tributário, o setor de games enfrenta igualmente desafios relevantes.
A natureza híbrida dos jogos digitais, que podem ser considerados tanto softwares quanto serviços disponibilizados em nuvem, gera controvérsias sobre a incidência de ISS ou ICMS, a depender da forma de comercialização.
Essa falta de uniformidade tributária cria insegurança jurídica para empresas do setor, especialmente startups e desenvolvedoras independentes, que enfrentam dificuldades para planejar suas operações e investimentos.
De todo modo, o STF tem buscado oferecer parâmetros para a tributação de bens digitais, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido até a consolidação de um marco regulatório claro e estável.
7. Responsabilidade civil das plataformas e publishers
No campo da responsabilidade civil, a atuação das plataformas e publishers é também objeto de debate
Neste sentido, questões como o banimento de jogadores, a perda de contas, a suspensão de canais de transmissão e a veiculação de conteúdos ilícitos em plataformas de streaming têm chegado ao judiciário com frequência crescente.
Aqui, o desafio consiste em equilibrar a autonomia contratual e a liberdade das plataformas com a proteção de direitos fundamentais dos usuários, como a liberdade de expressão, o acesso à informação e o devido processo contratual.
Inclusive, a decisão recente do STF, que redefiniu os parâmetros de responsabilização das plataformas digitais por conteúdos de terceiros, repercute diretamente no universo gamer, impondo um novo padrão de diligência e moderação.
8. Considerações finais
Nesse contexto, observa-se que o direito dos games no Brasil se encontra, ainda, em processo de consolidação, exigindo do intérprete sensibilidade para lidar com um setor que combina inovação tecnológica, complexidade econômica e impacto cultural.
É importante destacar o ponto positivo referente à superação da visão estigmatizada que equiparava toda e qualquer prática de jogo a azar demonstra a capacidade do direito de evoluir diante da realidade social.
No mais, a necessidade de enfrentar desafios como a proteção de dados, a regulação das microtransações e a tributação dos bens digitais aponta para a urgência de uma legislação mais específica, capaz de conferir maior segurança jurídica ao mercado.
Portanto, não é forçoso admitir a necessidade de construção de um arcabouço normativo sólido para o setor de games para garantir o desenvolvimento sustentável da indústria, proteger consumidores e estimular a inovação.
É esperado que o direito dos games passe a não ser mais tratado pela soma de normas esparsas, mas sim como ramo autônomo em formação, que reflete a transformação cultural e econômica trazida pelo entretenimento digital, de modo a assegurar que o Brasil acompanhe a evolução global e se posicione como protagonista na regulação jurídica da indústria dos jogos eletrônicos.


